Anne Carson nasceu em 1950 em Toronto, Canadá. É poeta, ensaísta, professora de Letras Clássicas e tradutora, traduziu peças de Sófocles, Eurípedes e poemas de Safo. Seu nome figura entre os principais escritores da atualidade, sendo uma das favoritas nas apostas ao Prêmio Nobel de Literatura nos últimos anos. Carson é conhecida por turvar os limites entre o verso, a prosa e o ensaio, com novelas em versos como Autobiografia do vermelho (1998) e A beleza do marido: um ensaio ficcional em 29 tangos (2001). Sua única obra publicada no Brasil foi O método Albertine, com tradução minuciosa de Vilma Arêas e Francisco Guimarães, pelas Edições Jabuticaba, 2017.
_______________
Ensaio sobre o que eu mais penso
O erro
E as suas emoções
À beira do erro há a condição do medo
No meio do erro há um estado de loucura e de fracasso
Perceber que você cometeu um erro traz vergonha e remorso
Ou não é?
Vamos dar uma olhada nisso
Muitas pessoas, incluindo Aristóteles, pensam que o erro
é uma tarefa mental interessante e valiosa.
Na discussão sobre a metáfora em sua Retórica
Aristóteles afirma que existem três tipos de palavras.
Estranhas, comuns e metafóricas.
“Palavras estranhas simplesmente nos confundem;
palavras comuns exprimem o que já sabemos;
é através da metáfora que alcançamos algo novo e revigorante”
(Retórica, 1410b10-13.)
Em que consiste a novidade da metáfora?
Aristóteles diz que a metáfora torna a mente consciente de si mesma
ao cometer um erro.
Ele imagina a mente se deslocando por uma superfície lisa
de linguagem comum
quando de repente
a superfície se quebra ou se complica.
O inesperado aparece.
No começo ele parece esquisito, contraditório ou errado.
Depois começa a fazer sentido.
E nesse ponto, de acordo com Aristóteles,
A mente se volta para si mesma e diz:
“Tão verdadeiro, e, no entanto, eu interpretei errado!“
A partir dos verdadeiros erros da metáfora podemos aprender uma lição.
Não apenas que as coisas são diferentes do que parecem,
e, portanto, as confundimos,
mas que tais erros são valiosos.
Se atentem a isso, Aristóteles diz,
há muito para ser visto e sentido aqui.
Metáforas ensinam a mente
a aproveitar o erro
e a aprender
com a justaposição daquilo que é com aquilo que não é assim.
Há um provérbio chinês que diz,
O pincel não pode desenhar dois caracteres na mesma pincelada.
E ainda assim
isso é exatamente o que um bom erro faz.
Aqui segue um exemplo.
Há um fragmento de um antigo poema grego
que contém um erro de aritmética.
O poeta parece não saber
que 2 + 2 = 4.
Álcman fragmento 20:
[?] fez três estações, verão
e inverno e outono a terceira
e quarta a primavera quando
há florescimento mas o suficiente para comer
não há.
Álcman viveu em Esparta no século VII a.C.
Esparta era um país pobre
e é improvável
que Álcman tivesse levado uma vida saudável e bem alimentada.
Este fato funciona como pano de fundo de suas observações
cujo assunto final é a fome.
A fome sempre parece
um erro.
Álcman nos faz experienciar esse erro
com ele
através do eficiente uso de um erro computacional
Para um miserável poeta espartano sem nada
sobrando na despensa
no fim do inverno
vem a primavera
como uma reflexão tardia da economia natural,
quarta em uma série de três,
desequilibrando sua aritmética
e enjambemando o verso
O poema de Álcman é interrompido no meio de um metro jâmbico
sem explicar
de onde veio a primavera
ou por que os números não nos ajudam
a controlar melhor a realidade.
Há três coisas que eu gosto no poema de Álcman.
Primeiro o fato dele ser pequeno,
leve
e mais que perfeitamente econômico.
Segundo por parecer sugerir cores como verde pálido
sem nomeá-las.
Terceiro que ele consegue trazer para primeiro plano
algumas das maiores questões metafísicas
(como Quem criou o mundo)
sem uma análise explícita
você percebe que o verbo “fez” no primeiro verso
não tem sujeito: [?]
Não é comum na língua grega
que verbo que não tenha sujeito, na verdade
isso é um erro gramatical.
Alguns filólogos vão nos dizer
que este erro é só um acidente de tradução,
que o poema da forma como vemos
é seguramente um fragmento separado
de um texto mais longo
e que Álcman com certeza
nomeou o agente de criação
nos versos anteriores ao que temos aqui.
Bom, isso pode ser verdade.
Mas como todos sabem o principal objetivo da filologia
é reduzir todo o encanto do texto
a um acidente histórico.
E eu fico inquieta diante de qualquer afirmação de que se sabe
exatamente o que o poeta quis dizer.
Então vamos deixar o ponto de interrogação ali
no começo do poema
e admirar a coragem de Álcman
em confrontar o que ele coloca entre parênteses.
A quarta coisa que eu gosto
no poema de Álcman
é a impressão que ele dá
de deixar escapar a verdade apesar dela mesma.
muitos poetas aspiram esse tom de lucidez inadvertida
mas poucos alcançam isso tão genuinamente quanto Álcman.
É claro, a sua simplicidade é falsa.
Álcman não é de todo simples,
ele é um mestre da invenção –
ou aquilo que Aristóteles chamaria de imitador
da realidade.
Imitação (mimesis em grego)
é o termo coletivo que Aristóteles usa para os verdadeiros erros da poesia.
O que eu gosto neste termo
é a facilidade com que ele aceita
que o que nos engaja quando fazemos poesia é o erro,
a criação intencional do erro,
a quebra deliberada e complicação dos erros
dos quais pode surgir
o inesperado.
Então um poeta como Álcman
evita o medo, a ansiedade, a vergonha, o remorso
e todas as outras emoções bobas associadas a cometer erros
a fim de atingir
a verdade nua e crua.
A verdade nua e crua para os humanos é a imperfeição.
Álcman quebra as regras da aritmética
e coloca em perigo a gramática
e bagunça a forma métrica do seu verso
a fim de nos guiar para a verdade.
No final do poema a verdade permanece
e a fome de Álcman provavelmente não ficou menor.
No entanto, alguma coisa mudou no quociente de nossas expectativas.
Pois errando,
Álcman aperfeiçoou alguma coisa.
Na verdade, ele fez mais
do que aperfeiçoar algo.
Dando apenas uma pincelada.
***
Essay on What I Think About Most
Error.
And its emotions.
On the brink of error is a condition of fear
In the midst of error is a state of folly and defeat.
Realizing you’ve made an error brings shame and remorse
Or does it?
Let’s look into this.
Lots of people including Aristotle think error
An interesting and valuable mental event.
In his discussion of metaphor in the Rhetoric
Aristotle says there are 3 kinds of words.
Strange, ordinary and metaphorical.
“Strange words simple puzzle us;
ordinary words convey what we know already;
it is from metaphor that we can get hold of something new & fresh”
(Rhetoric, 1410b10-13).
In what does the freshness of metaphor consist?
Aristotle says that metaphor causes the mind to experience itself
in the act of making a mistake.
He pictures the mind moving along a plane surface
of ordinary language
when suddenly
that surface breaks or complicates.
Unexpectedness emerges.
At first it looks odd, contradictory or wrong,
Then it makes sense.
And at this moment, according to Aristotle,
the mind turns to itself and says:
“How true, and yet I mistook it!”
From the true mistakes of metaphor a lesson can be learned.
Not only that things are other than they seem,
and so we mistake them,
but that such mistakenness is valuable.
Hold onto it, Aristotle says,
there is much to be seen and felt here.
Metaphors teach the mind
to enjoy error
and to learn
from the juxtaposition of what is and what is not the case.
There is a Chinese proverb that says,
Brush cannot write two characters with the same stroke,
And yet
that is exactly what a good mistake does.
Here is an example.
It is a fragment of ancient Greek lyric
That contains an error of arithmetic.
The poet does not seem to know
That 2 + 2 = 4
Alkman fragment 20:
[?] made three seasons, summer
and winter and autumn third
and fourth spring when
there is blooming but to eat enough
is not.
Alkman lived in Sparta in the 7th century B.C.
Now Sparta was a poor country
and it is unlikely
that Alkman led a wealthy or well-fed life there.
This fact forms the background of his remarks
Which end in hunger.
Hunger always feels
like a mistake.
Alkman makes us experience this mistake
with him
by an effective use of computational error.
For a poor Spartan poet with nothing
left in his cupboard
at the end of winter—
along comes spring
like an afterthought of the natural economy,
fourth in a series of three,
unbalancing his arithmetic
and enjambing his verse.
Alkman’s poem breaks off midway through an iambic metron
with no explanation
of where spring came from
or why numbers don’t help us
control reality better.
There are three things I like about Alkman’s poem,
First is that it is small,
light
and more than perfectly economical.
Second that it seems to suggest colors like pale green
without ever naming them.
Third that it manages to put into play
some major metaphysical questions
(like Who made the world)
without overt analysis.
You notice the verb “made” in the first verse
has no subject: [?]
It is very unusual in Greek
for a verb to have no subject, in fact
it is a grammatical mistake.
Some philologists will tell you
that this mistake is just an accident of translation,
and the poem as we have it
is surely a fragment broken off
some longer text
and that Alkman almost certainly did
name the agent of creation
in the verses preceding what we have here.
Well that may be so.
But as you know the chief aim of philology
is to reduce all textual delight
to an accident of history.
And I am uneasy with any claim to know exactly
what a poet means to say,
So let’s leave the question mark there
at the beginning of the poem
and admire Alkman’s courage
in confronting what it brackets.
The fourth thing I like
about Alkman’s poem
is the impression it gives
of blurting out the truth in spite of itself.
Many a poet aspires
to this tone of inadvertent lucidity
but few realize it so simply as Alkman.
Of course his simplicity is a fake.
Alkman is not simple at all,
he is a master contriver—
or what Aristotle would call an imitator
of reality.
Imitation (mimesis in Greek)
is Aristotle’s collective term for the true mistakes of poetry.
What I like about this term
is the ease with which it accepts
that what we are engaged in when we do poetry is error,
the willful creation of error,
the deliberate break and complication of mistakes
out of which may arise
unexpectedness.
So a poet like Alkman
sidesteps fear, anxiety, shame, remorse
and all the other silly emotions associated with making mistakes
in order to engage
the fact of the matter.
The fact of the matter for humans is imperfection.
Alkman breaks the rules of arithmetic
and jeopardizes grammar
and messes up the metrical form of his verse
in order to draw us into this fact.
At the end of the poem the fact remains
and Alkman is probably no less hungry.
Yet something has changed in the quotient of our expectations.
For in mistaking them,
Alkman has perfected something.
Indeed he has
more than perfected something.
Using a single brushstroke.
Camila Assad nasceu em Presidente Prudente (SP) em 1988. É autora de Cumulonimbus, Eu não consigo parar de morrer e Desterro, obra contemplada pelo ProAC/SP na categoria criação literária. Tem obras publicadas em mídias impressas e digitais em Portugal, México, EUA, entre outros. Atualmente mora em São Paulo e pesquisa a relação entre poesia, cidade e feminismo.
Comments