curadoria de Marcelo Reis de Mello
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Artesã do amor
Eu vi você, que era eu boca assobiando em entretom sacola de couro e calça marrom caminhando longe pelo campo nu por debaixo da roupa, vi seus ossinhos eram eles e eu, mas não sozinhos no meio da tarde da noite mais longa brilha no céu a sua careca redonda te vi como um fantasma lamurioso por detrás do grande fogo ancestral suas cicatrizes ainda visíveis e frescas tão necessárias a sua narrativa galgando o campo todo até o limite da Providência às montanhas, que chamamos de colinas corações de ardósia cortados em lâminas Eu vi você meter a mão em sua sacola e deixar cair sementes estrada afora como o lenhador que segue seu caminho por freixos de carvalho e pinheiros variados por escrivaninhas que devem refletir um feixe de linhas que falam de árvores todas as esperanças sóbrias requerem a embriaguez como nado sagrado um livro na estante, no quase breu eu vi você, que era eu por fim, em sua sacola vazia eu vi sua sombra que me estendia
The Lovecrafter
I saw you who was myself
slightly stopped whistling mouth
with leather sack and breeches brown
striding the naked countryside
with summer bones long and dry
into the breadth of our glad day
mid afternoon the longer night
as you tread bareheaded bright
I saw you a wraith bemoan
stir the fires of ancien tones
scarred with sticks pome and haw
as the néctar for their script
I saw you walk the length of fields
Far as the finger of Providence
far as the mouns we call hills
ranges cut from the heart of slate
I saw you dip into your sack
scattering seed where they may
as the woodsman hews his way
through oak ash and variant pines
for writing desks that shall reflect
a sheaf of lines that speak of trees
all sober hopes requires within
all drunkenness as sacred swims
I saw the book upon the shelf
I saw you who was myself
I saw the empty sack at last
I saw the branch your shadow cast
***
Eermo
Choram os animais como humanos
quando um membro de seu bando
cambaleia beira d’água
e é sugado rio abaixo
Ulula a fêmea
como loba em sofrimento
uivando à procura do filhote
capturado por sua pele e pelo
Choram os animais como humanos
como eu tendo te perdido lamentam
curvados em si mesmos
É assim que
atravessamos o campo de gelo
descalços e de mãos vazias
nada humanos
Negociando um ermo
ainda por conhecer
é onde o tempo para
à beira do arrefecer
Wilderness
Do animals make a human cry
when their loved one staggers
fowled dragged down
the blue veined river
Does the female wail
miming the wolf of suffering
do lilies trumpet the pup
plucked for skin and skein
Do animals cry like humans
as I having lost you yowled flagged
curled in a ball
This is how
we beat the icy field
shoeless and empty handed
hardly human at all
Negotiating a wilderness
We have yet to know
this is where time stops
and we have none to go
***
Véspera de Todos os Santos
O escritor que não escrevia comovido pela solidão, foi comido por suas próprias palavras, pelas bebidas, a própria mão contornada em um traço, no desenho de um rio vazio. Ele sentiu um brilho, que não era dele, envolvendo-o na taverna — uma saudação silenciosa dos estranhos que ele amava e que o amavam.
O escritor que não escrevia sofreu para voltar, arrastando o pé. Os salgueiros balançavam uma saudação, bem de leve. Os gritos das crianças pedintes, com seus sacos e jack o'lanterns, se espalharam no crepúsculo enquanto corriam por ele, pisoteando as margaridinhas que cresciam selvagens na rua sem saída.
Então segurou a porta de tela aberta, enquanto ele se aproximava da risada de seus filhos, dos restos de fronhas, frutas e bolinhos de alma espalhados pelo chão. Pisoteou as máscaras deles — lenços com buracos para os olhos — e sapatos gastos. As batatas ainda não tinham sido descascadas. Suas camisas estavam de molho no tanque. Ele apalpou a bochecha e extraiu um dente, um amuleto de marfim, para seu amor embrulhar em papel prateado. Colocou-o na mão dela, pulsando como um tamborzinho.
O escritor que não escrevia subiu as escadas. Seus filhos o observaram titubear, tropeçando em si mesmo. Ela o seguiu e se deitou ao seu lado. Ele apoiou a cabeça no ombro dela. O ambiente foi tomado por uma magia macabra. Os pequenos pedintes corriam de casa em casa, gritando “gostosuras ou travessuras”, tocando sinos, amarrando os arbustos com longos véus de tecido. Ele sonhava com um torneio de pesca, um almiscarado amarrado na carroceria de um caminhão. Foi um dia de sorte para o velho pescador, que se sentia tenso e ainda brilhava. Isso aconteceu em ondas durante o sono — parto sem dor. Sem vida. Sem vida em lugar nenhum e na mão com sangue um cheiro metálico como um retábulo recém-pintado emoldurado, esculpido em açúcar.
Ela cortou uma mecha de seu cabelo castanho e o embrulhou no papel prateado, junto ao dente dele e um anel de ouro. Fez disso um relicário. Ela escoou sua lata meio vazia na beira do rio. Fechou-a e pintou nela um peixe pendurado num céu verde. Ela sentou na grama onde eles se sentavam durante a noite. Os salgueiros balançavam uma saudação, bem de leve, enquanto ela orava. Não para Deus, mas para ele. As estrelas se espalharam como um rosário repentinamente desatado. Medalhas com santos gravados choveram sobre a grama. Os pequenos pedintes encheram seus sacos com eles e entregaram um a ela — São Federico, o escritor que não escreve, o protetor dos campos abandonados.
Meu pombinho, seu nome é água em minha mão.
Vou oferecê-la com sal e pão e o amuleto extraído
sem resistência de sua boca silenciosa.
Vou canonizar seu nome para mistérios não resolvidos,
palavras não nascidas,
porque você sofreu, minha calavera, meu triste, triste santo,
meu escritor que não escreveu.
Porque sua bela tristeza apontou da terra
e desabrochou em caligrafia.
Eve of All Saints
The writer who did not write moved by feel alone, was eaten by his words, by drinks, his own hand casting a line, drawing empty river. He felt a glow, not his, wrapping around him in the taverna – a silent salute from the strangers he loved and who loved him.
The writer who did not write suffered to return, dragging his foot. The willows swayed a greeting, ever so slightly. The shouts of little beggars, woth their sacks and jack o’ lanterns, spilled through the dusk as they flew past him, trampling the marigolds growing wild on his dead end street.
So held the screen door open, as he approached the laughter of their chliden, the spoils of their pillowcases, fruits and candy soul cakes spread across the floor. He stepped over their masks – handkerchiefs with holes for eyes - and hobo shoes. The potatoes had yet to be peeled. His shirts were rising in the sink. He felt within his cheek and extracted a tooth, na ivory charm, for his love to wrap in silver paper. In her hand, beating like a small drum, he placed it.
The writer who did not write mounted te stairs. His children watched him faltering, his feet going on him. She followed and lay beside him. He rested his head on her shoulder. A macabre magic filled the air. Little beggars raced from house to house, calling “trick or treat”, ringing bells, lacing the bushes with long veils of tissue. He dreamed of fishing tournament, a musky strung upon the back of a truck. It was a lucky day for the old fisherman and he felt strung up as well and still aglow. It came in waves in his sleep – labor without pain. No life. No life anywhere and the blood hand a metallic smel like a freshly painted retablo framed, carved in sugar.
She clipped a lock oh his brown hair and wrapped it in the silver paper, with his tooth and a gold ring. She made a reliquary of him. His half-empty can she draines into the mouth of the river. She falttened the tin and painted a fish hanging in the green sky. She sat in the grass where they sat in the night. The willows swayed a greeting, ever so slightly, as she praydes. Not to God, but to him. The stars scattered like a rosary suddenly unstrung. Medals embossed withs saints rained upon the grass. The little begars filled theis sacks with them and handed one to her- St. Federico, the writer who does not write, the patron of forsaken fields.
My dove, your name is water in my hand.
I will offer it with salt and bread and the charm extracted
without resistance from your silente mouth.
I wil canonize your name for mysteries unsolved,
words unborn.
because you suffered, my calavera, my sad, sad saint,
my writer who did not write.
Because your beautiful sorrow sprouted like a stalk,
blossoming calligraphy.
Foto: Steven Sebring / Divulgação
Patti Smith (75) é poeta, escritora, cantora, compositora, musicista e fotógrafa norte-americana, muito conhecida por sua participação artística no movimento punk dos anos 70. Esteve no Brasil pela última vez em 2019, em turnê musical e lançamento de seu livro O ano do macaco. Outras obras traduzidos no Brasil são Só Garotos (2010), Linha M (2015) e Devoção (2017).
Auguries of Innocence é um livro de poemas lançado pela primeira vez em 2005, pela Harper Collins, sem tradução no Brasil. Nesse livro, Patti registra seus versos oraculares em baladas, hinos e canções, visivelmente inspirada pela poesia de William Blake, Rimbaud, entre outros.
Fergath é poeta paranaense, tradutora, professora de língua inglesa e literatura e terapeuta de mulheres. Formou-se em Letras (UEPG) e estudou escrita criativa no College of Saint Rose (NY). Um cosmo no caos. Lançou seu primeiro livro de poemas, Polka, em 2020, pela editora independente Olaria Cartonera.
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