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Foto do escritora palavra solta

03 poemas de Patti Smith na tradução de Fergath

curadoria de Marcelo Reis de Mello


***

Artesã do amor

Eu vi você, que era eu boca assobiando em entretom sacola de couro e calça marrom caminhando longe pelo campo nu por debaixo da roupa, vi seus ossinhos eram eles e eu, mas não sozinhos no meio da tarde da noite mais longa brilha no céu a sua careca redonda te vi como um fantasma lamurioso por detrás do grande fogo ancestral suas cicatrizes ainda visíveis e frescas tão necessárias a sua narrativa galgando o campo todo até o limite da Providência às montanhas, que chamamos de colinas corações de ardósia cortados em lâminas Eu vi você meter a mão em sua sacola e deixar cair sementes estrada afora como o lenhador que segue seu caminho por freixos de carvalho e pinheiros variados por escrivaninhas que devem refletir um feixe de linhas que falam de árvores todas as esperanças sóbrias requerem a embriaguez como nado sagrado um livro na estante, no quase breu eu vi você, que era eu por fim, em sua sacola vazia eu vi sua sombra que me estendia



The Lovecrafter


I saw you who was myself slightly stopped whistling mouth with leather sack and breeches brown striding the naked countryside with summer bones long and dry into the breadth of our glad day mid afternoon the longer night as you tread bareheaded bright I saw you a wraith bemoan stir the fires of ancien tones scarred with sticks pome and haw as the néctar for their script I saw you walk the length of fields Far as the finger of Providence far as the mouns we call hills ranges cut from the heart of slate I saw you dip into your sack scattering seed where they may as the woodsman hews his way through oak ash and variant pines for writing desks that shall reflect a sheaf of lines that speak of trees all sober hopes requires within all drunkenness as sacred swims I saw the book upon the shelf I saw you who was myself I saw the empty sack at last I saw the branch your shadow cast


***


Eermo


Choram os animais como humanos

quando um membro de seu bando

cambaleia beira d’água

e é sugado rio abaixo


Ulula a fêmea

como loba em sofrimento

uivando à procura do filhote

capturado por sua pele e pelo


Choram os animais como humanos

como eu tendo te perdido lamentam

curvados em si mesmos


É assim que

atravessamos o campo de gelo

descalços e de mãos vazias

nada humanos


Negociando um ermo

ainda por conhecer

é onde o tempo para

à beira do arrefecer



Wilderness


Do animals make a human cry

when their loved one staggers

fowled dragged down

the blue veined river


Does the female wail

miming the wolf of suffering

do lilies trumpet the pup

plucked for skin and skein


Do animals cry like humans

as I having lost you yowled flagged

curled in a ball


This is how

we beat the icy field

shoeless and empty handed

hardly human at all


Negotiating a wilderness

We have yet to know

this is where time stops

and we have none to go



***



Véspera de Todos os Santos


O escritor que não escrevia comovido pela solidão, foi comido por suas próprias palavras, pelas bebidas, a própria mão contornada em um traço, no desenho de um rio vazio. Ele sentiu um brilho, que não era dele, envolvendo-o na taverna — uma saudação silenciosa dos estranhos que ele amava e que o amavam.

O escritor que não escrevia sofreu para voltar, arrastando o pé. Os salgueiros balançavam uma saudação, bem de leve. Os gritos das crianças pedintes, com seus sacos e jack o'lanterns, se espalharam no crepúsculo enquanto corriam por ele, pisoteando as margaridinhas que cresciam selvagens na rua sem saída.

Então segurou a porta de tela aberta, enquanto ele se aproximava da risada de seus filhos, dos restos de fronhas, frutas e bolinhos de alma espalhados pelo chão. Pisoteou as máscaras deles — lenços com buracos para os olhos — e sapatos gastos. As batatas ainda não tinham sido descascadas. Suas camisas estavam de molho no tanque. Ele apalpou a bochecha e extraiu um dente, um amuleto de marfim, para seu amor embrulhar em papel prateado. Colocou-o na mão dela, pulsando como um tamborzinho.

O escritor que não escrevia subiu as escadas. Seus filhos o observaram titubear, tropeçando em si mesmo. Ela o seguiu e se deitou ao seu lado. Ele apoiou a cabeça no ombro dela. O ambiente foi tomado por uma magia macabra. Os pequenos pedintes corriam de casa em casa, gritando “gostosuras ou travessuras”, tocando sinos, amarrando os arbustos com longos véus de tecido. Ele sonhava com um torneio de pesca, um almiscarado amarrado na carroceria de um caminhão. Foi um dia de sorte para o velho pescador, que se sentia tenso e ainda brilhava. Isso aconteceu em ondas durante o sono — parto sem dor. Sem vida. Sem vida em lugar nenhum e na mão com sangue um cheiro metálico como um retábulo recém-pintado emoldurado, esculpido em açúcar.

Ela cortou uma mecha de seu cabelo castanho e o embrulhou no papel prateado, junto ao dente dele e um anel de ouro. Fez disso um relicário. Ela escoou sua lata meio vazia na beira do rio. Fechou-a e pintou nela um peixe pendurado num céu verde. Ela sentou na grama onde eles se sentavam durante a noite. Os salgueiros balançavam uma saudação, bem de leve, enquanto ela orava. Não para Deus, mas para ele. As estrelas se espalharam como um rosário repentinamente desatado. Medalhas com santos gravados choveram sobre a grama. Os pequenos pedintes encheram seus sacos com eles e entregaram um a ela — São Federico, o escritor que não escreve, o protetor dos campos abandonados.

Meu pombinho, seu nome é água em minha mão.

Vou oferecê-la com sal e pão e o amuleto extraído

sem resistência de sua boca silenciosa.

Vou canonizar seu nome para mistérios não resolvidos,

palavras não nascidas,

porque você sofreu, minha calavera, meu triste, triste santo,

meu escritor que não escreveu.

Porque sua bela tristeza apontou da terra

e desabrochou em caligrafia.



Eve of All Saints


The writer who did not write moved by feel alone, was eaten by his words, by drinks, his own hand casting a line, drawing empty river. He felt a glow, not his, wrapping around him in the taverna – a silent salute from the strangers he loved and who loved him.

The writer who did not write suffered to return, dragging his foot. The willows swayed a greeting, ever so slightly. The shouts of little beggars, woth their sacks and jack o’ lanterns, spilled through the dusk as they flew past him, trampling the marigolds growing wild on his dead end street.

So held the screen door open, as he approached the laughter of their chliden, the spoils of their pillowcases, fruits and candy soul cakes spread across the floor. He stepped over their masks – handkerchiefs with holes for eyes - and hobo shoes. The potatoes had yet to be peeled. His shirts were rising in the sink. He felt within his cheek and extracted a tooth, na ivory charm, for his love to wrap in silver paper. In her hand, beating like a small drum, he placed it.

The writer who did not write mounted te stairs. His children watched him faltering, his feet going on him. She followed and lay beside him. He rested his head on her shoulder. A macabre magic filled the air. Little beggars raced from house to house, calling “trick or treat”, ringing bells, lacing the bushes with long veils of tissue. He dreamed of fishing tournament, a musky strung upon the back of a truck. It was a lucky day for the old fisherman and he felt strung up as well and still aglow. It came in waves in his sleep – labor without pain. No life. No life anywhere and the blood hand a metallic smel like a freshly painted retablo framed, carved in sugar.

She clipped a lock oh his brown hair and wrapped it in the silver paper, with his tooth and a gold ring. She made a reliquary of him. His half-empty can she draines into the mouth of the river. She falttened the tin and painted a fish hanging in the green sky. She sat in the grass where they sat in the night. The willows swayed a greeting, ever so slightly, as she praydes. Not to God, but to him. The stars scattered like a rosary suddenly unstrung. Medals embossed withs saints rained upon the grass. The little begars filled theis sacks with them and handed one to her- St. Federico, the writer who does not write, the patron of forsaken fields.

My dove, your name is water in my hand.

I will offer it with salt and bread and the charm extracted

without resistance from your silente mouth.

I wil canonize your name for mysteries unsolved,

words unborn.

because you suffered, my calavera, my sad, sad saint,

my writer who did not write.

Because your beautiful sorrow sprouted like a stalk,

blossoming calligraphy.



Foto: Steven Sebring / Divulgação


Patti Smith (75) é poeta, escritora, cantora, compositora, musicista e fotógrafa norte-americana, muito conhecida por sua participação artística no movimento punk dos anos 70. Esteve no Brasil pela última vez em 2019, em turnê musical e lançamento de seu livro O ano do macaco. Outras obras traduzidos no Brasil são Só Garotos (2010), Linha M (2015) e Devoção (2017).


Auguries of Innocence é um livro de poemas lançado pela primeira vez em 2005, pela Harper Collins, sem tradução no Brasil. Nesse livro, Patti registra seus versos oraculares em baladas, hinos e canções, visivelmente inspirada pela poesia de William Blake, Rimbaud, entre outros.


Fergath é poeta paranaense, tradutora, professora de língua inglesa e literatura e terapeuta de mulheres. Formou-se em Letras (UEPG) e estudou escrita criativa no College of Saint Rose (NY). Um cosmo no caos. Lançou seu primeiro livro de poemas, Polka, em 2020, pela editora independente Olaria Cartonera.



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