curadoria Marcelo Reis de Mello
Rafael Cadenas é um poeta contemporâneo fundamental sobre o qual só ouvi falar em 2015, depois de participar de um festival de poesia com muitos poetas de diferentes países da América Latina. É impressionante, infelizmente, o desconhecimento de boa parte da produção poética de poetas latinos contemporâneos por nós (a recíproca tende a ser verdadeira). A partir desse momento, passei a tentar estar muito mais atento ao que se faz no nosso entorno também, para além de acompanhar a produção de poetas daqui, que sempre foi algo que busquei fazer. Assim que cheguei ao Brasil, aliás, comprei as duas únicas edições (em espanhol) que encontrei à época do seu trabalho em sebos.
Esta pequena contribuição, com poemas de algumas de suas fases, procura dar uma primeira amostra da sensibilidade, da potência e da fluidez da escrita de Rafael Cadenas. Sua poesia, que desdobra um ampliado pensamento sensível (ou uma ampliada sensibilidade pensante) sobre as coisas, sobre o mundo e sobre estar nesse mundo diante da realidade, é um irrecusável convite à leitura.
***
FLOR
De que profundidade surges
como chama
para escondê-la.
FLOR
Desde qué profundidad surges
como llama
para esconderla.
***
VENHO de um reino estranho,
venho de uma ilha iluminada,
venho dos olhos de uma mulher.
Desço pelo dia pesadamente.
Música perdida me acompanha.
Uma pupila carregadora de frutas
adentra no que vê.
Minha fortaleza,
minha última linha,
minha fronteira com o vazio
caiu hoje.
VENGO de un reino extraño,
vengo de una isla iluminada,
vengo de los ojos de una mujer.
Desciendo por el día pesadamente.
Música perdida me acompaña.
Una pupila cargadora de frutas
se adentra en lo que ve.
Mi fortaleza,
mi última línea,
mi frontera con el vacío
ha caído hoy.
***
OLHAR
Vejo outra rota, a rota do instante, a rota da atenção, desperta, incisiva, sagitária! Pico de víscera, diamante extremo, falcão, rota relâmpago, rota de mil olhos, rota de magnificência, rota de linha que vai ao sol, reflexo do raio vigilância, do raio agora, do raio isto, rota real com sua legião de frutas vivas cujo remate é esse lugar em todas as partes e nenhuma.
MIRAR
Veo otra ruta, la ruta del instante, la ruta de la atención, despierta, incisiva, ¡sagitaria! Pico de víscera, diamante extremo, halcón, ruta relámpago, ruta de mil ojos, ruta de magnificencia, ruta de línea que va al sol, reflejo del rayo vigilancia, del rayo ahora, del rayo esto, ruta real con su legión de frutos vivos cuyo remate es ese lugar en todas partes y ninguna.
***
Pássaros.
Cruzam
o sossego.
Talvez
encontrem
o que buscam.
Pájaros.
Cruzan
el sosiego.
Tal vez
encuentren
al que buscan.
***
O amanhecer
encontra teu rosto,
atinge-o com seus galhos amarelos.
Assim, esvaziado de repente, é muito.
Torna-o digno da vida: estranho.
El amanecer
encuentra tu rostro,
lo golpea con sus ramas amarillas.
Así, vaciado de repente, es mucho.
Lo hace digno de la vida: extraño.
***
Quem deixa de se opor?
Quem sai do jogo?
Quem vive no vazio?
Quem faz do desabrigo refúgio?
Quem se dissolve no perceber?
Quem se expõe sem amparo ao descampado?
Quem abandona a andança pela hora solitária?
Quem pode comer com talheres de absoluta piedade?
Quem concorda em trocar seu dia por um rosto que não há de ver?
¿Quién deja de oponerse?
¿Quién se sale del juego?
¿Quién se vive en el vacío?
¿Quién hace del desabrigo refugio?
¿Quién se disuelve en el percibir?
¿Quién se expone sin arrimo al descampado?
¿Quién abandona el trajín por la hora solitaria?
¿Quién puede comer con tenedores de absoluta piedad?
¿Quién accede a trocar su día por un rostro que no ha de ver?
***
VOZ
I
Terra
recuperada da seca.
II
Cunhar quimeras
como sóis mortos
para os olhos de um fantasma,
não é tua tarefa.
III
Se calas
tu ainda te ouves,
o muito cheio,
que nada vales
(ou somente vales em tua errância).
IV
Ela não procura ninguém
e ao encontrá-lo se vai.
V
Como ninguém responde
assim o fazes.
Mas antes quantas noites tem que atravessar tua voz!
humildes noites perdidas na secura dos lábios
que enfim aprendem
(aprendem
e sempre estão em perigo).
VI
Quando em verdade calas
outra é a voz,
mas que estranha então!
com seu velado requerimento,
seu murmúrio de noite,
sua escassez.
Escândalo de pobreza.
VII
Uma ausência te funda.
Uma ausência te recolhe.
VIII
Por cima do luxo, a beleza, o brilho.
Em uma austeridade,
no pudor titubeante,
na continência da insinuação.
Como desenho que não se pode pegar,
mas existe.
Obscuro corredor que conduz, mostra e abandona.
IX
Voz antiga,
ocultavas a estrada.
Agora ocupas teu posto.
Já não há feitiço.
X
Amorna a noite a fala
que busca adaptar-se
para além de todo efeito.
XI
Linguagem
emanada
pontual
fidedigna,
não o engano
da palavra que serve a alguém.
XII
Palavras não quero.
Somente
atenção,
atenção,
atenção.
Voz
I
Tierra
ganada a las sequedades.
II
Acuñar quimeras
como soles muertos
para los ojos de un fantasma,
no es tu tarea.
III
Si callas
todavía te oyes tú,
el muy lleno,
que nada vales
(o sólo vales en tu errancia).
IV
Ella no busca a alguien
y al encontrarlo se marcha.
V
Como nadie responde
lo haces tú.
Pero antes ¡cuántas noches tiene que atravesar tu voz!
humildes noches perdidas en la sequedad de los labios
que al fin aprenden
(aprenden
y siempre están en peligro).
VI
Cuando en verdad callas
otra es la voz,
pero ¡qué extraña entonces!
con su velado requerimiento,
su murmullo de noche,
su escasez.
Escándalo de pobreza.
VII
Una ausencia te funda.
Una ausencia te recoge.
VIII
Por encima del lujo, la belleza, el brillo.
En una austeridad,
en el pudor titubeante,
en la continencia de la insinuación.
Como dibujo que no se puede asir,
pero existe.
Entreoscuro corredor que conduce, muestra y abandona.
IX
Voz antigua,
ocultabas la ruta.
Ahora ocupas tu puesto.
Ya no hay conjuro.
X
Templa la noche el habla
que busca ajustarse
más allá de todo efecto.
XI
Lenguaje
emanado
puntual
fehaciente,
no el engaño
de la palabra que sirve a alguien.
XII
Palabras no quiero.
Sólo
atención,
atención,
atención.
Rafael Cadenas (1930–) é poeta, ensaísta e professor universitário venezuelano. Uma das vozes mais respeitadas das letras latino-americanas, recebeu, entre outros, o Premio Reina Sofía de Poesía Iberoamericana e o Premio de Literatura y Lenguas Romances de la FIL de Guadalajara. Publicou vários livros de poesia, como Los cuadernos del destierro (1960), Memorial (1977), Amante (1983), Dichos (1992) e o mais recente Contestaciones (2018). Publicou também muitos livros de ensaio desde a década de 70. Dono de uma obra densa, extensa e variada, Cadenas trabalha uma série de temas e problemas da poesia, não se limitando, aliás, a um metro ou a uma forma de versificação em particular, mas experimentando e aprofundando sua pesquisa de escrita em dicções as mais variadas, passando do verso de corte rápido ao verso mais longo e ritmado, não deixando, ainda, de explorar o poema em prosa.
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Thiago Ponce de Moraes (1986–) é poeta, tradutor e professor, autor de, entre outros, Dobres sobre a luz (2016, Lumme Editor, finalista do prêmio Jabuti) e Glory Box (2016, Carnaval Press, coletânea bilíngue traduzida pelo poeta britânico Rob Packer). Seu novo livro de poemas, Espacelamentos, será lançado pela Gralha Edições esse ano e trará desenhos de Priscilla Menezes.
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