por Pérola Mathias
Leiam ouvindo: Playlist 1967
Lydia Lunch em loft na Delancey Street, onde Teenage Jesus and the Jerks, Mars, DNA e Contortions ensaiavam. Foto: Godlis. Fonte: Thurston Moore e Byron Coley
A visceralidade de Lydia Lunch está estampada no seu visual, em sua música, em seus escritos, atuações, performances e, sobretudo, na sua história. Lunch é uma figura central no pós-punk, desde seu nascimento e até os desdobramentos pelas décadas seguintes, para além de sua vertente nova-iorquina, que ficou conhecida como No Wave, do qual ela é uma das principais representantes. Inclusive, pela versatilidade de linguagens artísticas com as quais se expressou e continua se expressando.
Ao olharmos as fotografias do período do No Wave, em fins da década de 1970 e meados de 1980, vemos sempre uma Lydia Lunch estilosa, cabelos pretos lisos, curtos ou mais longos, com uma franja espessa ou desfiada, salto alto, maquiagem escura e batom. Ela e os demais artistas do entorno do Lower East Side eram raios de personalidade e criatividade em meio ao caos de uma cidade degradada e violenta. E, em seu caso, de sobrevivente— assim como, de alguma forma, também fora Patti Smith.
Lydia chegou a Nova York, vinda de Rochester, aos 16 anos. Fugiu da casa do pai, onde foi morar depois de ter sido abandonada por sua mãe, e de um ambiente nada afetuoso, mas degradante e desestruturado. Trabalhou como empregada para conseguir juntar dinheiro para a empreitada e, chegando em Nova York, fez de um tudo. É o que ela conta em sua autobiografia Paradoxia: a predator’s diary (1997) e em seus livros subsequentes, como Will work for drugs (2009).
As cenas de sexo, drogas e violência que Lydia vai narrando nos capítulos de Will work for drugs nos ajudam a entrar no universo doido e subterrâneo da roteirista que escreveu Fingered e The right side of my brain, curtas-metragens, ambos dirigidos por Richard Kern. No primeiro, além de roteirizar junto a Kern, atua e participa como musicista; no segundo, lê e interpreta um texto seu e assina a trilha sonora. As trilhas são ruidosas, desconcertantes. O que os filmes têm em comum é a pornografia sob uma abordagem violenta e fetichista, numa Nova York que era uma estação do inferno.
Lydia Lunch no curta Fingered
Lydia Lunch e Richard Kern
No entanto, o que pretendo aqui, é mostrar a vocês o que trago em seguida: a tradução de um trecho de Will work for drugs intitulado“1967” — no qual ela trata de um episódio ou período específico de sua infância: seus oito anos, vividos no ano em questão.
Nesse fragmento, lemos uma descrição bonita de como a música pode transformar uma pessoa de fora para dentro e de dentro para fora. Como se plantasse um embrião de força vital e, no caso, gestasse um futuro artista. Lydia descreve seu testemunho de um episódio dentre as muitas revoltas raciais que tomaram os Estados Unidos nos anos de 1960. E, a ele, associa o que ouvia na rádio da época: as músicas que eram trilha do Verão do Amor, do festival de Monterey, do programa de Ed Sullivan. Motown, Psicodelia, Rock e Soul. Além dos artistas que ela própria cita ao longo do texto, listei mais algumas da canção que ficaram entre as mais tocadas naquele ano na playlist apresentada no início desta coluna.
Talvez o mais impactante do testemunho de Lydia seja como ela se descreve: desde que nasceu, uma pessoa que encara a morte de frente e a desafia em todas as oportunidades. Quem sabe isso explique sua relação com o underground; sua busca desenfreada pelo desejo e sua satisfação; seu vício em orgasmos e adrenalina; e sua conexão real, viva, com os submundos. Mas Lydia não se tornou conhecida só por essas características. Em So real it hurts, prefaciado por Anthony Bourdain, por exemplo, ela abre o livro com um texto polêmico e ingênuo sobre as eleições de 2016 nos Estados Unidos, ano em que Trump saiu eleito, no qual ela fala que não acredita em eleições.
Em sua atuação na música, Lydia sempre esteve ligada ao pós-punk, seja com a sacralizada Teenage Jesus and the Jerks, solo ou em parceria com nomes como Sonic Youth, Rowland Howard e Nick Cave; ou pela junção da linguagem com a poesia, como na participação do disco Better An Old Demon Than A New God, uma compilação de John Giorno, de 1984, ao lado, por exemplo, de William Burroughs e Richard Hell, do Television. E foi também por isso que achei interessante saber qual foi o som que formou a garota que mandaria às favas toda e qualquer convenção. A tradução abaixo foi feita de forma freestyle, pois não sou tradutora nem nada, sendo fruto da mera curiosidade e vontade de compartilhar com vocês.
1967
O sangue escorre por paredes ondulantes. Punhos invisíveis se enfurecem com força sobre-humana e martelam a porta. A moldura de madeira antiga se dobra, se enruga e se agita. O berçário vazio reverbera com o uivo triste de uma criança que não pode ser localizada. Estou sentada de pernas cruzadas no chão, segurando minha garganta, tremendo. Boca seca. Incapaz de respirar. The Haunting of Hill House[1] é o filme mais assustador que eu já vi. Eu tenho oito anos.
Uma umidade sufocante satura o ar noturno. A eletricidade estática faz vibrar os folículos capilares. O zumbido brando de um telefone Motorola preto e branco é engolido pelo latido ofegante de um cachorro de rua, que berra como um pregoeiro em algum lugar no quintal de alguém. Seus latidos esganiçados são imediatamente imitados e amplificados por todos os vira-latas da vizinhança em um round-robin de latidos e uivos. Um grito de alerta desesperado sinaliza o turbilhão que se aproxima.
A atmosfera se consolida. Os cães recuam. O tempo se curva. Em uma explosão repentina de white noise,[2] centenas de vozes frenéticas vêm gritando do nada. Como se toda a fúria do inferno, numa expulsão repentina desde o centro da terra, se materializasse, aumentando meu terror.
Homens, mulheres e crianças, colocados sob as costas de irmãos mais velhos, todos gritando palavras de ordem em um fervor evangélico demoníaco. Equal work! Equal pay! Say it loud! We’re black and we’re proud![3]
As revoltas de 1967 desviaram-se da Clifford Avenue[4] e estão estourando bem na frente da minha casa. Martelos, tacos de beisebol, canos e tijolos, todos empregados na destruição de carros, janelas, vitrines. Uma horrível ópera industrial de barulho insuportável. Meu pai fuma um cigarro atrás do outro, soltando uma ladainha de maldições. Soca o ar no seu melhor estilo Marlon Brando enquanto sua van sofre sucessivos ataques. A ambulância e os caminhões de bombeiros avançam, dividindo a multidão furiosa em duas. Suas sirenes formam uma sinfonia ensurdecedora que exageram a cacofonia. Helicópteros da polícia cercam a periferia. Insetos mecânicos gigantes cujo o zumbido diabólico cobre o som estridente.
Meu medo é afogado em som, mas renasce como alegria em chamas. O carro da família é incendiado. Eu começo a rir. Maniacamente. Dançar. Cantar. Come on baby LIGHT my FIRE. Try to set the night on FIRE!!!! Meu pai presume que eu perdi a cabeça e, contra o meu protesto insistente, me manda para o meu quarto.
Eu me esgueiro escada acima desanimada. “Kind of a drag”, murmurei baixinho. Uma rebelião barulhenta de violência. Zunindo. Batendo. Excitando. E eu estou trancada! Eu realmente não consigo compreender o que está acontecendo, mas parece tão certo. Não estou mais com medo, estou animada! Me localizando na urgência coletiva. A paixão. A determinação. Eu vou para o sótão, meu refúgio escondido. Ligo o rádio. O top 40 em 1967 era uma loucura. “White Rabbit”, “7-Rooms of Gloom”, “Funky Broadway”, “The Hunter Gets Get Captured by the Game”, “Are You Experienced?”. Um atrás do outro. Eu não tinha ideia a o quê qualquer uma dessas canções estava se referindo. O que elas realmente significavam. Quão subversivas elas realmente eram.
Eu usava o rádio para desaparecer. Para fugir da minha família. Entrar em outra dimensão. Derreter dentro de um palco de som psicodélico que se espalhou pelas ondas do rádio, enchendo minha psique já fraturada com música soul latejante, furtiva e funkificada, em que ritmos crescentes e guitarras estranguladas me tiravam de mim mesma e me arrepiavam.
“I break out… in a cold sweat” me estimulou de maneiras que eu só poderia expressar sacudindo minha bunda, batendo os braços e batendo os pés. Jimmy Lee Johnson, o garoto negro de sete anos da casa ao lado, “pernas finas e tudo”, sabia tudo sobre James Brown e usa seu moletom como uma capa[5] com destreza. É a primeira vez que alguém flerta comigo. Fiquei surpresa com sua imitação. Sua fluidez. Seu minúsculo corpo deslizando pelo ar com tanta paixão e controle. Ele deve ter visto JB no The Ed Sullivan Show. Todo mundo ficava grudado na TV nas noites de domingo. Os Rolling Stones, The Animals, George Carlin — tudo penetrou na minha psique informe, cortesia do Sr. Sullivan. Mesmo a infame controvérsia do Doors, em que Morrison se recusou a mudar “Girl, we couldn’t get much higher”, responsável por, posteriormente, bani-lo de aparições futuras, atingiu um ponto central na minha consciência adolescente.
A música é o tecido conectivo entre protesto, rebelião, violência, consciência sexual e comunidade. Apenas do jeito que é. O Verão do Amor. Que mentira escancarada! Reagan foi eleito governador da Califórnia. Lyndon B. Johnson aumentou a presença de tropas no Vietnã, ignorando as manifestações massivas que abalaram o noticiário noturno. Várias centenas de milhares apenas na cidade de Nova York. Motins raciais assolaram Cleveland, Detroit, Watts, Birmingham, Alabama, Rochester, Nova York e dezenas de outras cidades dos Estados Unidos, inflamando as tensões. Muhammad Ali foi banido do Campeonato Mundial de Pesos Pesados por recusar o recrutamento. Carl Wilson, dos Beach Boys, também não iria para a guerra e ficou preso a uma batalha legal de cinco anos — que acabou vencendo. O estrangulador de Boston foi condenado à prisão perpétua e fugiu da instituição em que foi mantido.
O pão custava vinte e dois centavos, um galão de gasolina custava vinte e oito centavos, e o gueto do centro da cidade que eu chamava de lar estava repleto de pessoas trabalhadoras com atitude e convicção cujo desejo pela vida não poderia ser tirado mesmo por meio das péssimas condições de moradia, dos péssimos salários, da polícia ou dos políticos. Eles me ensinaram a lutar pelo que eu acreditava, a ter orgulho do que fiz, a nunca desistir, manter a fé e a, quando esperar um amanhã melhor não for suficiente, aumentar a maldita música e dançar o blues.
Bem, você pode tirar o wigger[6] do gueto, mas não pode tirar o gueto do wigger. Afinal, “o mundo é um gueto”. E mesmo que eu nunca esqueça minhas raízes, eu me recusei a permitir que elas me estrangulassem pelos tornozelos, porque mesmo que tivesse que “implorar, pedir emprestado e roubar”, esta “Lightning’s Girl” iria ter certeza de que estava “fazendo valer cada minuto”. Exatamente como o rádio me ensinou.
1967 ajudou a definir quem eu iria me tornar. Posso ter sido muito jovem para compreender totalmente as implicações políticas da época, mas isso me deu um comichão por dentro que ainda hoje me move com mais intensidade do que nunca. A Organização Nacional para Mulheres foi oficialmente incorporada em 1967. Grace Slick e Janis Joplin se apresentaram no Monterey Pop Festival. Shirley Temple concorreu ao Congresso. Eu era apenas uma criança atentada gritando e desviando meu sangue para “Funky Broadway”, já planejando minha fuga para a cidade grande.
Lydia Lunch & The Swans, 1983
Notas
[1] Filme de 1963 dirigido por Robert Wise.
[2] Ou ruído branco.
[3] Trabalho igual! Pagamento igual! Diga em voz alta! Somos negros e estamos orgulhosos!
[4] Em Rochester, Nova York
[5] Referência à performance de Brown quando cantava “Please, Please, Please”: www.youtube.com/watch?v=vruy2GRUsV8&ab_channel=JamesBrown
[6] Pessoa branca que tenta emular ou adquirir um comportamento cultural e gostos atribuídos aos afro-americanos.
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