Curadoria de Marcelo Reis de Mello
Detalhe da pintura Angelus Novus (1920) de Paul Klee
Você talvez conheça o artista suíço Paul Klee (1879-1940) por seus desenhos e pinturas. Talvez conheça também o Angelus Novus, renomeado por Walter Benjamin como o anjo da história: patas de pássaro, cabelos cacheados, que são também papiros enrolados, e olhos esbugalhados. Ou talvez tenha se deparado – ao pesquisar sobre o impacto decisivo da obra de Klee nas teorias do design e das cores – com a mistura de técnicas de desalinho e mancha (geralmente a aquarela, que seca rápido sobre o papel) com técnicas de extrema precisão (como o uso das formas puras da geometria). Bem, você pode aproveitar esse saber para ler um Paul Klee poeta.
Poeta? Talvez não seja bem assim. Ele nunca publicou esses escritos em vida. Na verdade, boa parte dessas coisas só foram reveladas depois de sua morte em 1940. Estavam dispersas em várias anotações, hoje reunidas nos seus “diários”, ou em volumes de “poesia reunida” ou de “alguns poemas”, em edições em alemão e em inglês.
O que aprendemos com Paul Klee? Frequentemente, que forma e força não são pares opositivos – se encontram no ato de “dar-forma”. Como na união entre aquarela e geometria, entre mancha e contorno, seus “poemas” aqui reunidos apresentam aquele fino equilíbrio entre a experiência e o método. A aparente simplicidade desses textos esconde uma complexidade simbólica – e esse complexo simbólico funciona como um suporte para as questões mais fundamentais. Como em “Lema”, onde Klee relê o legado do movimento de juventude alemão Sturm und Drang (tempestade e ímpeto).
Antes de apresentar os poemas traduzidos, acrescento um pequeno manuscrito que Paul Klee escreveu provavelmente em 1926 e que serve como introdução à “poética”:
Aproximar-se é o que conta, o que determina o caráter do trabalho. O caráter pode ser determinado apenas uma vez. A forma é definida pelo processo de dar forma, que é mais importante que a forma ela mesma.
Forma não deve nunca ser considerada como alguma coisa a ser superada, como se fosse um resultado, como um fim, mas deve ser tomada como gênese, crescimento, essência. Forma como semblante é um espectro maligno e perigoso. O que é bom é forma como movimento, como ação, como forma ativa. O que é ruim é forma como imobilidade, como um fim, como alguma coisa que deve ser tolerada e resolvida. O que é bom é dar-forma. O que é ruim é a fôrma. A fôrma é o fim, morte. Dar-forma é movimento, ação. Dar-forma é vida.
***
Der Wolf spricht…
Der Wolf spricht, am Menschen kauend, und im
Hinblick auf die Hunde:
Sag mir wo ist dann
sag mir wo?
ist dann ihr Gott?
wo ist ihr Gott? nach dem...
du siehst ihn hier
ganz dicht bei dir
liegen im Staub vor dir
den Gott der Hunde
Sehn und wissen ist eins
daß wer von mir zerrissen
ein Gott nicht ist.
Wo ist dann ihr Gott?
O lobo fala…
O lobo fala, enquanto mastiga um homem
e se dirige aos cães:
Digam-me, onde está, então –
digam-me, onde?
o deus deles?
onde está o deus deles? depois disso...
vocês podem vê-lo aqui
pertinho de vocês
misturado à areia
o deus dos cães
Ver e saber é o mesmo,
esse que eu dilacerei
não é nenhum deus.
Então, onde está o deus deles?
***
Ich bin gewappnet
Ich bin gewappnet,
ich bin nicht hier,
ich bin in der Tiefe,
bin fern ....
ich bin so fern ....
Ich glühe bei den Toten.
Eu estou com a minha armadura
Eu estou com a minha armadura,
eu não estou aqui,
eu estou no fundo,
estou longe...
eu estou tão longe...
Eu brilho com os mortos.
***
Motto
Sturm und Wurm
Sang und Drang
Wurm und Sang
Drang und Sturm
Lema [1]
raio e verme
verso e rasgo
verme e verso
rasgo e raio
Lema [2]
raio e forma
força e rasgo
forma e força
rasgo e raio
Lema [3]
tempestade e majestade
ínfero e ímpeto
majestade e ínfero
ímpeto e tempestade
***
In Herzens Mitte
In Herzens Mitte
als einzige Bitte
verhallende Schritte
von der Katze ein Stück:
ihr Ohr löffelt Schall
ihr Fuss nimmt Lauf
ihr Blick
brennt dünn und dick
vor ihrem Antlitz kein Zurück
schön wie die Blume
doch voller Waffen
und hat im Grunde n i c h t s mit uns zu schaffen
No meio do coração
No meio do peito
o único anseio
é um passo atrás
uma gata aos pedaços:
as orelhas comem o som
as patas um frisson
o olho
queima fino e grosso
e desde o rosto
não tem volta:
é linda mas
é uma flor cheia de armas
e isso basicamente n ã o t e m n a d a a ver conosco
No meio do coração mutilado
No meio
do coração
a única
oração
são passos
recuando
linda
feito flor
mas cheia
de armas
e francamente
não tem
n a d a
a ver
conosco
Paul Klee, 1911, por Alexander Eliasberg
Rafael Zacca é poeta e crítico. Professor no departamento de Filosofia da PUC-Rio. Publicou O menor amor do mundo (7Letras, 2020), A estreita artéria das coisas (Garupa, 2018) e Mini Marx (7Letras, 2016), também publicado na argentina pela Grumo. É coautor do livro de oficinas Almanaque rebolado. Colabora com o Jornal Rascunho e com a Revista Pessoa. Ministra oficinas de poesia na editora 7Letras.
Adorei este artigo! Sou estudante da UFPR Litoral e estou desenvolvendo um projeto onde me baseio em Paul Klee, Tim Ingold e outros, e gostaria de saber se há alguma fonte para a frase de Klee "A fôrma é o fim, morte. Dar-forma é movimento, ação. Dar-forma é vida" para que eu possa referenciar. meu email para contato: sanches.juliasp@gmail.com Parabéns pelo trabalho! - Jules Sanches