Marcelo Reis de Mello e Flávio Morgado
em meio ao grande complexo do estádio do Maracanã, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, a Aldeia Maracanã simboliza hoje umas das mais instigantes formas de resistir no território urbano. Fomos até lá, eu e Marcelo, entrevistar a liderança indígena dessa rexistência, José Urutau Guajajara.
José Urutau Guajajara (ao centro). Fotografia: George Magaraia
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APS - Boa tarde, Urutau. Como liderança indígena aqui da Aldeia Maracanã, a gente gostaria de saber como você define a ocupação: o que é a Aldeia hoje?
URUTAU - Karuk Pàtywà (Boa tarde a todos), ‘He rer Urutau tate’harihe (Meu nome Urutau, sou do povo Guajajara), Purumu’e ma’eihe (Sou professor de línguas e cultura Tupi-Guarani na Universidade Aldeia Marakanã), Tutxau tekohaw Maracanã pe (Liderança da Aldeia Maracanã).
A aldeia Maracanã hoje é uma referência nacional e internacional de luta. De resistência indígena em grandes centros urbanos.
Algo que sempre conversei com outros parentes e sempre foi uma lacuna: a questão da presença indígena no Estado do Rio de Janeiro. Pela própria literatura indígena a partir do século XVIII, deu-se como extinto aqui na região do Rio de Janeiro, no Sudeste em geral. Mas eis que esses parentes teimaram em retornar e recontar essa história: como é essa história do último Tupinambá? Eu sempre ouvi essa história e fiquei muito irritado.
Tem um documentário da UERJ, do Pró-Indio, diz que foi exterminado ao longo desses 521 anos, mais de 300 etnias entre São Paulo e Espírito Santo. Uma pesquisa que mostra o tamanho dessa devastação. O que nesse sentido, torna a presença, a existência (a “rexistência”) da Aldeia Maracanã é um registro desse holocausto brasileiro, uma prova aguerrida.
Existe um mito em torno do “índio original”, aquele de 1500, de biótipo amazonense, que não fala a língua, não se comunica. Mas esse indígena, a história explica por A mais B, tende a não existir mais. Caso contrário, não estaríamos crescendo tanto. E a Aldeia Maracanã é essa forma de recontar, de reafirmação, de ressurgimento dos povos. Hoje, através da Aldeia Maracanã, nós conseguimos ver o crescimento do povo Puri (originário aqui do Rio de Janeiro), bem como Tupinambá.
Onde já se ouviu falar de Goytacaz? Dados como extintos. Mas não se fala da diáspora Goytacaz. Os que não morreram, fugiram, sobreviveram na mistura: tornaram-se os lavradores da região de Campos, do Rio Pombas, Paraíba do Sul. Ficaram invisibilizados, e até a literatura tem a sua função, de invisibilizar. São povos que estão aí, encobertos pela miscigenação, vivos e sem contar a sua história.
Quando surge a Aldeia Maracanã, começa um resgate dessa função. Apanhamos muito. A sociedade nacional nos condena: como assim índio urbano? No meio do Rio de Janeiro? Isso não pode, é como se soasse a eles um erro do seu processo de civilização, é inconcebível.
APS - O que é o indígena em contexto urbano no Brasil hoje? E você pensa, como acabou de dizer, em recontar essa história, recompor esse fio da história dos povos originários em relação aos indígenas diásporos. Como pensar isso?
URUTAU - A gente toma muita porrada. Mesmo os indígenas que frequentam a Grande Mídia estavam ligados de alguma forma ao Estado. Falo também dos grandes antropólogos, que ainda preferem ir ao Xingu, à bacia amazônica, aos parentes aldeados - que estão perdendo seu território, e isso é calamitoso. Na guerra contra o garimpo, apoiado por esse Estado genocida que aí está.
Perdi até algumas amizades, mas a verdade que pedi socorro a muitos antropólogos, muitos eram meus colegas, e muitos não vieram, no máximo, ficavam nas notas. Para muitos antropólogos, somos “fabricadores de índio”, “ressuscitadores de índio”.
A cobrança do biótipo ainda é muito cruel: aquele índio vendido na literatura europeia, pelado, de 1500. Mas existem outras etnias, e o próprio movimento da história. O Estado só reconhece o indígena aldeado, não reconhece o indígena autônomo, na universidade, produzindo conhecimento. A sociedade é o Estado e ela não reconhece.
E essa divergência é o que move muito dos preconceitos em torno da Aldeia Maracanã. Mas é essa a nossa justa importância: reivindicar essa autonomia ao indígena que está em diáspora, que está misturado, que está nos grandes centros.
APS - Por que esse território da Aldeia Maracanã ainda está em disputa? Qual o interesse do Estado nesse microterritório ocupado por indígenas?
URUTAU - O processo da Aldeia Maracanã é o processo mais fraudado da História do Brasil! Mas nós temos um advogado (Arão Guajajara, advogado da Aldeia e irmão de Urutau) que é muito bom no que ele faz. Esse amparo jurídico, é importante que seja dito, é fundamental para a Aldeia. Até mesmo os advogados de movimentos sociais, muitos inclusive que apoiaram a Aldeia, não conseguiriam resistir, é pancada de tudo que é lado.
Ainda esses tempos mesmo, ganhamos o apoio dos Juízes pela Democracia, em que magistrados renomados, como o Ciro Darlan, estão lendo o nosso processo.
Há uma proteção à Caneta Maior, juízes e desembargadores que agem como semideuses, e Arão sempre foi solitário nessa luta jurídica. Mas amplamente fundamentado no processo! Uma cobertura de 521 anos à Caneta Maior.
Nós não temos grana, apoio, poder de fogo, então a nossa força se sustenta nessa base jurídica e de resistência diária (muitos anos sem água, sem luz, sem esgoto). Mas nós temos duas coisas (os olhos de Urutau marejam e a fala se torna de guerra)...que vocês jamais vão tirar de nós: primeiro, o poder de constranger vocês apenas por estarmos vivos! E depois, a espiritualidade. A espiritualidade primária, primeira. Que quando vocês chegaram, já estava aqui! E vocês não vão tirar, vocês não vão tirar! Não mexa com Caiuré! Não mexa com Caiuré!
A Caneta Maior precisa terminar o seu extermínio. Tirar terra. E esse nosso nanoterritório é uma delas.
O interesse de preservação do patrimônio é dos indígenas. O projeto da Caneta Maior é a demolição do patrimônio. O que se pretendia aqui em 2013 era Mc’Donalds, estacionamento. Demolição do Museu do Indio. Então se há algum interesse em preservação, ele parte da Aldeia.
A passagem desse território na licitação da Oderbretch em 2012/2013 é totalmente fraudada. E aí é onde a Caneta Maior se rasura, porque mexeu num patrimônio nacional, e que para além de ser um patrimônio brasileiro, entra também o patrimônio espiritual. Como dizer que não há mão de Kaywré aí? Onde estão todos esses: Marcelo Oderbretch, Cabral, Pezão?
Hoje o processo está no meio do caminho. E nós também.
APS - No que consiste esse projeto, defendido desde o início da ocupação, de uma Universidade, ou melhor dizendo, Pluriversidade Indígena da Aldeia Maracanã?
URUTAU: Desde que nós assumimos, na época até foi uma coisa interessante. Lá em 2006 já se pensava em algo assim. Uma espécie de Embaixada dos Povos Originários, algo até grandioso assim, mas ainda tudo de início, não se falava nem em aldeamento ainda. Vamos entrar aqui para fazer um Instituto, uma Fundação. Isso em outubro de 2006.
Nós já tínhamos o CESAC (Centro de Etnoconhecimento Sociocultural e Ambiental Caiuré), então já havia um certo amparo jurídico do nosso lado. Primeiro pensamos em Instituto Tamoios dos Povos Originários, e logo em seguida, até pela proximidade com o pessoal da UERJ, o Pró-Indio também tentou uma colaboração, uma parceria. E o nosso intuito, apesar de muito interesse em parcerias, é ter autonomia para abrir mais parcerias, com outras universidades. Mas mantendo a nossa autonomia.
E até hoje temos apoiadores frequentes. O departamento de Artes, por exemplo, foi o que mais abraçou a Aldeia.
A ideia da Pluriversidade chamou muita atenção de outros povos do continente, por exemplo. Nossa universidade tem como matrícula a vivência.
Hoje temos projetos em torno de plantas comestíveis, agroecologia, o pessoal da Biologia também chega muito aqui. E é o que eu digo, não dê uma muda de planta e pense “ah, doei uma planta para a aldeia, vou me salvar”, não, doe e venha cuidar dela todos os dias. Participar, estar aqui.
APS - Você é um indígena com ampla formação acadêmica, e ainda é algo um pouco incomum no Brasil. Você, inclusive, é um dos poucos Guajajaras que consegue fazer a transcrição fonética da língua. Isso é importante?
URUTAU - Na minha saída do Maranhão (Urutau era um aldeado), eu sempre saí trabalhando com a minha cultura, ensinando a minha cultura. E meus próprios parentes Guajajara são resistentes a ensinar a nossa língua.
E eu me senti cobrado em me especializar na escrita da minha língua fonética (o ze’egté), precisei dar conta disso cientificamente, é também uma estratégia de rexistir.
Estudei em Brasilía nessa época, com o Arão Rodrigues na UNB.
O desafio da transcrição está inclusive no dinamismo da língua. É claro que nem todos os Guajajaras falam iguais. Assim como Tupi, a língua está em movimento, na sua relação de fronteira, de coexistências com outras línguas. As grafias mudam para cada aldeamento, e isso até que os Guajajaras, por uma questão geográfica, têm uma menor influência, por exemplo, do espanhol como há no Tupi.
Eu sou cobrado para escrever mais. E esse ensino é o motivo da universidade existir também. Hoje ainda dou aulas.
APS - O que você acha que vai ser o destino da Aldeia Maracanã?
URUTAU - Sempre que estou com alguns apoiadores e advogados das questões sociais, eu discuto sobre a questão jurídica da aldeia. E algo que é sempre lembrado, afinal é o cerne dessa disputa: é que enquanto estamos confabulando sobre as formas de resistir esse espaço, em Angra dos Reis, em espaços caríssimos, a Caneta Maior discute a nossa demolição, o nosso extermínio. Rindo da nossa cara o tempo todo.
E o trabalho do lado de lá sempre vai ser empenhado.
E na parte jurídica, vale lembrar o caso de toda aquela cagada feita para nos prejudicar, o juiz Marcos Abraham. E aí quando eu cito nomes, tem todos esses magistrados que vem me cobrar uma postura ética. Mas qual foi a ética que eles tiveram com o nosso povo em 1500? Então cito nomes sim, quem está por trás da canetada. Ele não nos deu nosso pedido de reintegração de posse.
O relator atual, Alcides Martins, na penúltima decisão determinou que o Estado assumisse, mas aí o Arão entrou de sola. Ele queria fazer outra audiência virtual, sem as partes envolvidas. Resolver tudo na surdina da canetada. E além de determinar essa posse do Estado, recomenda que se faça uma pesquisa aqui para saber se os indígenas que estão aqui são os mesmos de 2006. Nunca obedeceram às restrições da pandemia em relação aos despejos e desocupações, nunca respeitaram. Mas nós resistimos com esse amparo jurídico. O Arão vigia 24 horas o processo.
Estamos avaliando que assim que virar o ano, eles voltaram a atacar. Só que na penúltima decisão pediram a reintegração dos 1500 metros quadrados. Porque em 2013, existia o laboratório do estudo de sementes, e a área construída era de 1500 metros (esse número vai aparecer também lá no relatório do Marcos Abraham). E o Arão vem dizer: vocês podem assumir os 1500 metros, mas mande uma diligência, vamos demarcar esse território e saber o que vocês já assumiram com todas as construções ao redor desde então. Muito mais do que 1500 metros. Eles vão querer fazer essa auditoria territorial? Jamais.
O Estado, provável, que não use mais a truculência de 2013. Ficou feio. Mas eles vão usar outros meios. Plantando situações. Trabalhando sorrateiramente, marginalizando o espaço. Querer justificar a ocupação a partir de usuários de drogas ao redor da ocupação, de torcedores que atacam a Aldeia em dia de jogo. O Estado vai trabalhar minando. Difícil fazer qualquer projeção em uma luta que se dá diariamente e de maneira desleal. Mas estamos aqui.
A pequena Mayumi com sua mãe, Potira, 2021. Fotografia: George Magaraia
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José Urutau Guajajara é um dos grandes líderes no movimento pelos direitos indígenas na cidade do Rio de Janeiro. Criado na Aldeia Guajajara no estado de Maranhão, ele veio para o Rio ainda jovem para estudar e trabalhar. Em 2006, ele participou do grupo de indígenas de várias etnias que fundou a Aldeia Maracanã no prédio abandonado do antigo Museu do Índio, ao lado do Estádio do Maracanã. Embora tenha sofrido múltiplas remoções durante os megaeventos–Copa do Mundo e Jogos Olímpicos– a Aldeia Maracanã ainda ocupa o prédio e está em processo de formar uma universidade indígena no local. José foi pesquisador de linguística do Museu Nacional da UFRJ e professor de língua e cultura indígena na FAETEC-ISERJ. Ele mora no Centro de Etnoconhecimento Sociocultural e Ambiental Caiuré (CESAC) em Tomás Coelho, um espaço comunitário da população indígena urbana.
Para conhecer mais sobre o processo da Aldeia Maracanã, acesse.