por Flávio Morgado
Nossa edição#28, em homeagem à imensa cantora Elza Soares, também é uma edição, que por vir em maio, abre a possibilidade de debate em torno do dia 13, a Abolição da Escravatura no Brasil. Uma data se não vazia, se pensada perante às urgências de emancipação e absorção da população negra no país, é no mínimo discutível: a quem interessa uma rememoração sem resistência? Em um mundo que cada vez mais é aprofundada a questão da representatividade, quais são as armadilhas, os atalhos?
Conheci a professora Jamile Borges (UFBA) em uma de suas fundamentais aulas sobre a questão racial nas mídias e no contemporâneo. Assim que acabou sua aula, fui imediatamente convidá-la para essa conversa.
“Raízes Nº 2 – Tributo a Aguinaldo Camargo” (1988), obra de Abdias Nascimento em exibição no Itaú Cultural. Foto: Jorge Almeida
- Professora Jamile, quando conheci seu trabalho, seu campo de atuação, me dei conta de que, ao mesmo tempo que ele traduz um avanço considerável em relação às discussões étnicas e raciais na universidade, fruto de um tempo mais progressista que vivemos; por outro, tive a chance de ter sua aula no contexto mais hostil do Estado em relação aos investimentos acadêmicos, e, sobretudo, ao diálogo com a população negra. Eu gostaria que me falasse um pouco desse trajeto, que de alguma maneira ganha força ao longo da sua trajetória, mas, ao ocupar a cadeira de Professora Doutora de uma universidade federal, isso se dá em uma chave de grande conflito com os interesses conservadores que nos assolam nos últimos quatro anos, como é atuar no cerne dessa diferença?
JB - Minha presença numa das mais antigas universidades brasileiras é, inequivocamente, um marcador que revela o quanto ainda precisamos avançar em termos de igualdade racial e representatividade em instancias decisórias da vida pública. Como docente da UFBA desde 2004, tendo já passado por outras duas universidades estaduais (UNEB 1999-2001 e UEFS 2001 a 2003), celebro vinte anos como professora universitária e investigadora numa instituição ainda eminentemente branca e masculina em suas instancias decisórias e distribuição de poder. Fui coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos/Posafro, situado no Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, onde sigo desenvolvendo diversos projetos de cooperação e intercâmbios com diferentes universidades africanas e latinomericanas privilegiando o eixo Sul-Sul, envolvendo trânsitos de estudantes, professores e discentes em projetos individuais e coletivos.
Em 2017-2018 realizei uma estância pós-doutoral na Universidade de Lisboa/Portugal com passagem pela Universidade de Mar Del Plata/Argentina. Nessas duas instituições pude ampliar e intensificar uma nova rede de alianças intelectuais e afetivas que foram fundamentais para incorporação em meus trabalhos de categorias e autoras – mulheres latinas e africanas e intelectuais trans – que tem me estimulado a pensar em novas pedagogias do desejo para fabricação de outras sensibilidades analíticas e investigativas.
Faculdade de Educação, onde também atuo, tenho buscado operar na perspectiva de desenvolver uma pedagogia anticolonial - desse lado de cá do Atlântico. Uma pedagogia que ajude a fabricar e difundir outras narrativas críticas à continuidade desse passado colonial (atávico), construindo outros enquadramentos teóricos e metodológicos para romper fronteiras para além dos hífens (afro-brasileiros, afro-americanos, afro-colombianos ou afro-portenhos, por exemplo).
Quero dizer que há inequivocamente dois processos em curso em meu entender: de um lado há mulheres e homens intelectuais negras e negros que conseguiram furar a bolha da vida acadêmica e promover o protagonismo dessa escrita racialmente marcada nos corpos, nas letras, nas formas narrativas e nos recursos estilísticos. De outro lado, há o tradicional establishment da vida universitária que entendeu a urgência de promover em seus currículos o discurso da diversidade, ainda que seja na gôndola secundária desse mercado de símobolos. Mas isso também é interessante porque nós podemos aprender com se faz e se organiza o poder a partir do topo, não somente a partir das bases que é como historicamente nós temos feito. Então, dialogar com quem detém os modos de produção das narrativas e disputar essas narrativas de dentro das academias é ainda melhor que de fora. São situações de ônus e bônus. Corremos riscos nessa arena de disputas identitárias e políticas, mas ganhamos experiência e podemos criticar as tecnologias de visibilidade/ invisibilidade produzidas contra nossos corpos e cabeças.
Tenho dito que qualquer diálogo entre o topo e as bases precisa assumir de partida que nós não vivemos em um mundo de relações horizontais. A pandemia acirrou contradições socioeconômicas e desvelou a profunda assimetria racial desse país. Portanto, antes de estabelecer qualquer diálogo é preciso começar reconhecendo as desigualdades, os privilégios e a cumplicidade de quem sempre teve no conjunto do 1% da população em relação a toda exploração que os 99% sofrem desde sempre.
Nesse sentido, o avanço do fascismo, do racismo, do encarceramento em massa e do genocídio do povo negro com a ascensão da ultradireita conservadora no Brasil, nos diz que avançamos pouco em relação ao 14 de maio de 1888.
Ainda há muito por fazer e as instituições educacionais têm um imenso desafio pela frente que é disputar espaço com as fronteiras do quarto e do que poderíamos chamar de um ‘quinto poder’: isto é, a imprensa e as corporações de mídias digitais.
FM - A Fundação Palmares, a mais importante instituição federal de resgate e construção da memória negra no país, hoje é ocupada por um aliado desse pensamento conservador, e o impacto nas suas ações são altamente simbólicos. Como ler esses ataques à memória negra? Em que medida, construir uma contranarrativa a essa versão oficial que exclui e apaga?
JB - Em relação à Fundaçao Palmares e o trato com as histórias e memórias das populações negras, eu tenho chamado atenção para o fenômeno de que no Brasil há uma tendência a se fazer aquilo que eu chamo de musealização da dor, ou seja, a gente patrimonializou a dor ao invés de patrimonializar a luta. Por quê? Nossas instituições acadêmicas nossos lugares de memória, nossos espaços de poder ainda são profundamente brancos, heteropatriarcais e coloniais. Ainda comprometidos com uma mentalidade colonialista, com a ideia de que os museus, quando deixaram de ser gabinetes de curiosidade, se converteram em espaço para egonarrativas, musealizaçao de biografias escravistas e opressoras. Gradualmente, isso vem se modificando, mas nossas instituições de memória ainda têm um comprometimento muito maior com estabelecer um retrato do passado do que em construir resistências baseados na coleta do tempo presente e nas diversas formas de lutas que as populações historicamente subalternizadas vêm desenvolvendo.
Para construir contranarrativas, é urgente fazer dos lugares de memória espaços de fricção, de disputa, em lugar de ser espaço de consenso sobre o passado atávico colonial. O que pode ajudar nesse processo? Não temos um projeto nacional de política patrimonial, mas, de alguma maneira, as pessoas estão se apropriando das ferramentas de memória. As tecnologias digitais trouxeram a possibilidade de que a fabricação da memória não esteja mais na mão de uma elite. Qualquer pessoa pode produzir sentidos sobre as memórias e produzir seus artefatos museais. É a hora de nos aproximarmos das pessoas e entendermos como elas lidam com suas histórias e como podemos aproximá-las da história coletiva.
Será preciso realizar um processo que eu chamo de (re)semantização da memória, isto é uma especie de cirurgia. Uma cirugia metodológica, epistemológica e ontológica que consiga compreender e delimitar a proximidade e o distanciamento entre o profundo sentimento de dor associado aos traumas da diáspora africana e o reconhecimento dos modos como as instituições canónicas de memória – os museus, os arquivos e as bibliotecas lidam com o presente e o passado dessas populações afro-diaspóricas . Então, (re)semantizar a memória é tratar essa memoria que é de dor mas também é de resistência.
Autorretrato com anjos, Maria Auxiliadora
FM - Ainda em relação à memória, outro ponto interessante nessa discussão, é a escolha em relação às rememorações. Existe um grande debate em torno da comemoração do dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) em detrimento ao dia 13 de maio (Dia da Abolição da Escravidão). Gostaria que me falasse um pouco mais sobre isso...
JB - O 13 de maio só faz sentido hoje como parte de uma historiografia crítica às narrativas hegemônicas fabricadas e difundidas sobre as nossas histórias. Os movimentos pela derrubada de estátuas e monumentos em todo o mundo, representam também metaforicamente a necessidade de produzir uma iconoclastia crítica e séria sobre personagens que habitam nossos livros didáticos e nosso imaginário, como o caso da Princesa Isabel e de outras figuras que teriam sido responsáveis pelo fim da escravidão de modo benevolente, ocultando as articulações, resistências e estratégias extremamente sofisticadas levadas a cabo por diversos grupos, sociedades de alforria e lideranças negras que foram cruciais para o processo do fim ‘legal’ do tráfico de pessoas e da escravidão, reconhecendo que a colonialidade e as diversas formas de opressão sobre as populações negras permanecem e ainda são uma expressão da vergonha e da ferida colonial.
Nesse sentido, o 20 de novembro é mais condizente com essa leitura crítica da historiografia oficial, porque ele é fruto das lutas dos movimentos negros, de intelectuais e ativistas que dedicaram parcela considerável de suas vidas para construir um Brasil mais justo racialmente e menos desigual. A assunção dessa nova data como momento comemorativo e evocativo das lutas do povo negro é mais que uma transição de datas em um calendário. É a travessia de um 13 de maio de abandono das populações, agora ex-escravizadas, à sua própria sorte, para um 20 de novembro com altivez e clareza dos desafios que ainda nos aguardam no horizonte desse Brasil continental.
“The Cocoon of Dread”, gravura de 1831 referente à Revolta de Nat Turner, rebelião escrava ocorrida na Virgínia.
FM - Recentemente, dois professores, Flávio Gomes e José Reis, lançaram uma coletânea de ensaios sob o título "Revoltas Escravas no Brasil", e um dos intuitos da obra, já evidente em seu prefácio, é trazer à tona a premissa da resistência, uma vez que a historiografia reafirmou desde então a lógica da pactuação, da absorção e da passividade. Por outro lado, cresce no mercado editorial o número de escritores negros que publicam sobre o afrofuturismo, também preenchendo outra lacuna deixada pela literatura branca, o de se autorizar construir uma fabulação de futuro. Como a senhora lê esses movimentos?
JB - Eu tenho insistido que já passamos da hora de desprovincializar nossas instituições e nosso olhar a respeito de temas fundamentais para ler o Brasil. Nesse sentido, a grande onda de publicações sobre relações raciais, por exemplo, durante muito tempo leu esse tema a partir de nosso alter-ego, espécie de espelho do processo de racialização, os EUA.
Esse olhar produzido por intelectuais brancos e do norte global produziu uma série de problemas para nosso entendimento dos modos de fabricação de nosso próprio percurso enquanto um país que seria o último a abolir a escravidão.
Isto significa trabalhar para que o discurso hegemônico sobre a construção de nossas identidades/etnicidades/racialidades deixe de ser menos centrado na universalização das agendas e interesses dos países anglo-saxônicos. De outro lado, a circulação e intercâmbio de pesquisadores do universo afro-brasileiro, afro-latino e africanos - e entre estes e os pesquisadores em outras áreas do Atlântico negro – tem estimulado novas áreas de investigação, novos temas e problemas, ao tempo em que recuperam e redefinem categorias e contextos que dávamos por definidos. Nesse debate, que ainda não cessou, podemos perceber a emergência de novos temas como o Afrofuturismo, a partir do diálogo com os estudos literários e com o cinema, mostrando que esse é ainda um campo fértil para compreensão das formas de ser e habitar a contemporaneidade enquanto mulheres e homens negros e negras, precisando reivindicar o direito a narrar nosso futuro já que nosso passado e nossas memórias foram subtraídas de nós à nossa revelia, sendo contadas nos museus ainda coloniais como a expressão da velha dicotomia barbárie x civilização.
Falar de Afrofuturismo é mais que fabular futuros; é criar políticas de memoria e de citação para ocupar um lugar em que nós possamos falar por nós e desenhar futuros possíveis e utopias emancipatórias.
FM - Em um mundo cada vez mais marcado pela lógica da representatividade, reacendendo questões que jamais morreram, mas que persistiram silenciadas, ao mesmo tempo, que o movimento do capitalismo é o de sempre capturar essas demandas e transformar em consumo neutro; e o da política conservadora tem sido o de alimentar essas divergências na intenção da polaridade e da violência política. Como atuar nesse campo minado? Como manter a discussão étnica, a mais importante questão a ser reparada em nossa história, em meio a todas essas armadilhas?
JB - Sem dúvida, esse é um momento de grande densidade teórica em torno do que significa ser intelectual negro/negra. Estamos todos produzindo no calor da hora, haja vista o número de textos que se produziu a partir da coluna para o jornal Folha de São Paulo da historiadora e escritora Lillia Schwartz sobre Black is King, filme-álbum lançado pela artista negra estadunidense Beyonce em 2020.
Como antropóloga, sei que a herança intelectual nas nossas academias ainda tão prenhe de epistemologias, cuja força reside no alijamento/apagamento de nossas marcas – historiográficas, discursivas e corporais –, faz com que a gente opere em um espaço em que os porta-vozes dos dilemas e soluções para as grandes crises da modernidade/colonialidade sejam as mesmas pessoas (ou seus descendentes) que ajudaram a erguer o edifício do empreendimento colonial.
Isto resulta em dois tipos de situações: a) a primeira, é que parte desses/dessas intelectuais acabam por se posicionar na condição de definir o que/quais são os objetos válidos para investigar na academia; b) a segunda, é fazer com que intelectuais negras vivam permanentemente à margem dos espaços representacionais povoados por aqueles que buscam ser “a voz” dos que falam baixo, em lugar de promover a escuta qualificada daqueles a quem desejam considerar seus pares intelectuais.
Tenho a felicidade de coordenar em parceria com outros colegas a Escola Doutoral Fábrica de Ideias que há vinte anos vem me possibilitando o encontro com intelectuais e jovens investigadores e investigadoras preocupados com o tema das relações raciais, das ações afirmativas, das populações indígenas, da questão do patrimônio e de temas caros e sensíveis às populações historicamente subalternizadas. Defendo uma universidade mais horizontal, especialmente no campo da produção de conhecimento. Uma universidade menos opressiva e com mais justiça epistêmica. Desejo que as universidades, seculares, eurocêntricas, elitistas e opressivas, sejam paulatina e progressivamente enegrecidas e fortalecidas com nossos corpos dissidentes e com os vigorosos saberes dos povos ancestrais e povos da terra.
Jamile Borges é antropóloga pela Universidade Federal da Bahia; Mestre em Educação (UFBA) e Doutora em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos - PÓSAFRO/UFBA. É Professora Associada da UFBA e foi Coordenadora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos - PÓSAFRO/UFBA para o biênio 2015-2017 e para o biênio 2019-2021; Desenvolve pesquisa no Centro de Estudos Afro-Orientais /CEAO-UFBA em colaboração com instituições de pesquisa em Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau no âmbito do Programa Pró África/CNPQ. É Membro Permanente na Coordenação da Escola Doutoral Fábrica de Ideias .Fez Pós-Doutorado no Centro de Estudos e Investigações do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) desenvolvendo pesquisas na área de antropologia do mundo contemporâneo (com ênfase em temáticas sobre o continente Africano), Afrofuturismo, antropologia e museus (formação e gestão de coleções; patrimonialização e musealização em contextos transculturais. Coordena o museu Afrodigital em parceria com a Biblioteca Nacional-RJ, UERJ, UFPE, UFRN, UFMS E UFMA. É autora de dezenas de artigos e livros sobre os temas acima listados.
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