por Júlia Gonçalves
Fortuna – “sorte” em latim – é a deusa da esperança, que gira ao seu bel prazer a roda do destino, em que representam-se os ciclos com suas velocidades. Seria o destino predeterminado ou aleatório? As estações do ano, as fases da lua: todos ciclos que cabem no campo do previsível. Sabemos que o que está embaixo hoje pode estar em cima amanhã e vice versa. Porém, até onde vai a nossa capacidade de controle sobre o destino? Entre a reclusão do Eremita (IX) e a pulsão de vida d’A Força (XI) é preciso conseguir girar a manivela. O Arcano X figura nessa categoria de cartas que falam sobre fins e recomeços. São muitas formas de se encerrar e iniciar ciclos: A Morte, A Torre, O Louco, 10 de espadas, todos os 10 de alguma forma. O 10 tem dois algarismos: 1, o primeiro movimento, e 0, o retorno ao potencial absoluto. Vem depois do 9, mas anuncia o 11. É o fim da jornada dos naipes, a conclusão do caminho a seguir em cada elemento, porém nos arcanos maiores a conclusão mora no XXI, O Mundo. É, então, o meio, onde se separa o caminho dos arcanos que se movimentam para cima, buscando ascensão, e os que se movimentam para baixo, buscando descensão – basta observar as imagens de Marselha. Andando de costas, O Eremita está pronto para abandonar o ciclo de vida anterior e abrir-se para o novo. Astrologicamente, A Roda da Fortuna é representada por Júpiter, mas na Árvore da Vida, a décima sephiroth é Malkuth, simbolizada pelo planeta Terra. É a energia de realização. Depois de muito maturar, depois de todos os processos internos e externos, está concluído, o mundo pode recebê-lo. É Pachamama, Freya e Omulu. A terra também como elemento, fértil, concreta, podemos tocá-la. Dá força à semente, decompõe os cadáveres. As árvores me ensinaram muito sobre a aceitação dos ciclos “Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e voltar sempre inteira”, escreveu Cecília.
Roda de bicicleta, 1913, Marcel Duchamp
A imagem d’A Roda é muito mais antiga do que o arcano. René Guénon afirma que a Roda da Fortuna é de origem céltica e a compara com as flores emblemáticas, como a rosa, no Ocidente, e a flor de lótus, no Oriente. As rosetas das catedrais góticas, as figuras mandálicas de uma forma geral. Está presente no Hortus Deliciarum (Jardim das delícias) de 1165, e a ordem das disposições de poderes é contada claramente na alegoria. As legendas acompanham os reis em todos os quatro lugares possíveis da roda. Numa outra imagem, encontrada no compilado Carmina Burana (séculos XI, XII e uns poucos poemas datam de XIII), os escritos acompanham: “regnado” (reinarei), diz o que sobe pela esquerda; “regno!” (reino), o rei no topo; “regnara” (reinava), o que desce à direita de cabeça para baixo, perdendo sua coroa; “fine regno” (fim do reinado), o quarto rei, atirado no chão, embaixo da roda. O mundo gira e vacilão roda, conceito popular em todas as culturas. Sequer é privilégio dos vacilões, verdade seja dita. Às vezes, simplesmente rodamos porque não cabemos mais. “O passado é uma roupa que não nos veste mais”, certo? Quanta coisa você não imaginava ter rodado, desde antes da quarentena, e rodou. Quanta coisa você não queria ter desapegado, mas precisou, e agora sequer lembra.
Página do compilado de manuscritos Carmina Burana, séc. XI-XIII)
Roda da Fortuna encontrada no manuscrito Hortus Deliciarum, 1185
A Roda é diferente dos outros fins porque é feminina, é natural, quase não dói, quando você vê já foi, é fluxo. Nem sempre A Roda gira para onde escolhemos, de certo. Dirigi-la não é como dirigir O Carro (Arcano VII), não se trata tanto da sua escolha, é maior do que você. Se voltamos para O Eremita (Arcano IV), ficamos presos a uma crise crônica que recusa o caminho aberto, e aí a roda atropela e machuca. Cito Jodorowsky n’O Caminho do tarô: “podemos dizer que o animal munido de espada, no alto da roda, representa um enigma emocional. Se este enigma não se resolve, A Roda da Fortuna volta incessantemente ao estado de crise d'O Eremita.” O consulente então vive no passado, na repetição e na nostalgia do que poderia ter sido. Quando se coloca uma pedra na roda ficamos presos num beco sem saída, onde é recusada até mesmo a ajuda que permite o retorno ao movimento dinâmico. Nenhuma força nova será capaz de girar a manivela. As mutações devem ser aceitas docilmente, pacientemente. Manter-se aberto às oportunidades é um exercício de manutenção, mas amar a mudança é espontâneo. Como buscar algo que deve ser natural?
Arcano X, Tarot feito com cenas pintadas por Hieronymus Bosch
Oswald Wirth aponta uma explicação transparente pro Arcano X no livro de Ezequiel: “Refere-se em última instância à decomposição da ordem do mundo em duas estruturas essenciais e distintas: o movimento rotatório e a imobilidade. A circunferência da roda e seu centro, o motor imóvel, aristotélico”. Há um eixo fixo, há um objetivo, não é todo caos, A Roda (não confundir com A Torre, XVI). É a letra hebraica Kaph, que hieroglificamente representa uma mão que tenta agarrar algo, uma mão que busca. Devemos ouvir o desejo da mão, honrar a ordem de movimento. É o 21º caminho da Árvore da Vida da Cabala, que conecta Chesed (Júpiter, o rei poderoso e justo sentado em seu trono) a Netzach (Vênus, a mulher nua que manobra a beleza e a harmonia), liga o Grande Benéfico ao Pequeno Benéfico, segundo a astrologia clássica. É o caminho da inteligência conciliatória e da recompensa. É símbolo dos ciganos, A Roda. É sorte ou o que você preferir chamar, abre os caminhos e traz prosperidade. Cigano é cidadão do mundo, permite, rompe, busca. A raiz é marca de dentro, não de fora. Comemorar as chegadas ao invés de lamentar as partidas. “O encontro é um risco”, já disse o poeta Flávio Morgado. Corra!