por Pérola Mathias
Você sabe quem é Gil Daltro? Ele é MC, beatmaker, sociólogo e soteropolitano. Mas, para mim, até redescobri-lo através do site de crítica musical Oganpazan, ele era apenas um rosto de um dos calouros de Ciências Sociais que entrou na UFBA em 2009, um ano depois que recomecei a mesma faculdade ali. Foi preciso que 10 anos se passassem para que eu, finalmente, descobrisse que Daltro tem uma longa produção musical que começou no hardcore e desembocou no rap. Em suas músicas, há uma alquimia entre a sociologia, a militância e os beats. As letras são lúcidas e esclarecedoras críticas da sociedade capitalista e da realidade social brasileira, especialmente da soteropolitana.
Gil Daltro é um dos expoentes de uma produção de rap que fervilha em Salvador - ainda que atualmente ele more em Florianópolis - e que tem escapado dos radares que mobilizam os principais holofotes da música alternativa, tanto na cidade, quanto no Brasil. Ele atua na música desde 2001. Entre 2005 e 2009 fez parte da banda de HC Ocarina, da qual saiu para se dedicar à faculdade. E já vinha compondo na linha do rap, mas foi só em 2015 que começou a colocar no mundo suas criações junto ao coletivo Fraternidade Maus Elementos, em que esteve durante um ano e cujos integrantes são fundamentais para sua produção que veio a seguir - como “Vapor”, que conta com 5 volumes, e, agora, os dois EPs lançados que irão compor uma trilogia solo de Daltro.
A trilogia começou a ganhar o mundo ainda em janeiro deste ano de 2022 com “Subversivo”, que contou com a produção do beatmaker inglês Giallo Point. Permeado por samples que tornam a atmosfera do álbum densa e um tanto soturna, as 5 faixas de “Subversivo” falam do momento atual do Brasil, se referindo a fatos, falcatruas e tragédias recentes do nosso país. Mas vai além: na medida em que as participações vão aparecendo, como do francês Napoleon Da Legend, de Che Uno e Lord Juco, de Toronto, e do conterrâneo Galf AC.
Já na primeira faixa, “Guilhotina”, o MC disseca o bandido que nos preside e seus cúmplices: “[...] miliciano entranhado no executivo / mito em função do abismo social sinistro / entes queridos padecendo em meio ao genocídio / espero que não falte guilhotina / para condenar os vassalos e os herdeiros de Carlota Joaquina”. Sem meias palavras para definir o que o atual não-eleito é: genocida. É marca das composições de Daltro a denúncia e o combate ao racismo, mas ele também dá a letra sobre o anti-fascismo e como combater os neonazistas - que, como temos visto, têm se expandido em células e grupos online.
“Foda-se os racistas, nossa luta é altruísta”, clama em “Era da Psicose”, cuja letra se sustenta em cima de uma base construída sobre o sample da canção romântica espanhola “No lo puedes negar”, lançada em 1974 pelo cantor Miguel Angel. O contraponto musical (mas que não é contraditório) são os samples de sax que se destacam na faixa seguinte, “Dona Flor”, que puxam para o lado do jazz.
Por fim, na faixa “Registro Raro”, que encerra o EP, encontramos a chave que revela a principal ideia do trabalho e deixa ainda mais claro o por que de seu título ser “Subversivo”: a reprodução do discurso de Marighella transmitida em rádio, no qual o comunista baiano conclamava que a revolução se daria pela via revolucionária com o povo em ação.
“Pervasivo”, o segundo trabalho da trilogia, foi lançado em outubro e parece fechar o foco dos elementos nacionais e amplos abordados no disco anterior para falar de realidades locais. O estilo de produção segue diverso, mas em vez da colaboração de Giallo Point, aqui Daltro conta com a participação de antigos parceiros - todos brasileiros - e compõe “roubando samples como Aladdin", como diz em “Guaxinin (Intro).
Aliás, aqui os samples não dizem respeito unicamente aos loops e beats, mas a falas de filmes, como o clássico “Ó paí, ó”, inspirado na peça do Bando de Teatro Olodum, e “Narcos”, sobre o colombiano Pablo Escobar. E mais um discurso histórico é inserido como faixa, dessa vez do militante do movimento negro, professor, político e ator Abdias do Nascimento, um dos nomes mais importantes da luta anti-racista no Brasil. Entre as referências à “Salcity Bagdá” com suas gírias e lugares - o verso se refere à “Mata-Leão”, cujo clipe se passa no entorno do clássico bar Antonio’s, no Carmo -, há mais da América Latina. Basta ouvir “Bandoleira”, em parceria com o MC Samora Machel, de Porto Alegre, com quem Daltro gravou um clipe na COHAB Rubem Berta.
E merece destaque em “Pervasivo” a faixa “Horror Lounge”, que faz zoom out entre a realidade da cidade de Salvador e seu racismo cotidiano com as novas configurações das relações de trabalho e do comportamento nas redes sociais. O retrato que a letra de Daltro faz atinge pontos fulcrais quando compara farmácias a biqueiras e o nicho de posts patrocinados a commodities digitais.
Conversei com Gil Daltro sobre alguns aspectos de sua carreira, de “Subversivo” e “Pervasivo” e sobre o próximo trabalho a ser lançado em 2023, que completará a trilogia.
Pérola Mathias: Em primeiro lugar, queria saber, de forma resumida, rs, como começou sua relação com a música. Pq eu lembro de você em São Lázaro, mas nessa época não te acompanhava como MC. Você fez Ciências Sociais?
Gil Daltro: Eu me interesso por música desde que me entendo por gente. Na memória de infância mais antiga que tenho a música está presente. Ainda na escola, por volta da quarta, quinta-série, já escrevia algumas letras, a maioria paródias ou versões em cima de músicas que gostava e da sexta em diante já compunha algumas coisas com o violão. No entanto, embora eu escute rap há muitos, foi no punk rock e no hardcore que comecei a compor e tocar mesmo e tive minha primeira banda (um power trio) em 2001. Entre 2005 e 2009 fiz parte da minha primeira banda mais séria tendo lançado um EP e um disco com ela (Ocarina - hardcore melódico de Salvador). Saí da banda em 2009 após algumas discordâncias e foi exatamente nesse ano que entrei em São Lázaro pra cursar Ciências Sociais após abandonar o curso de Ciências Econômicas. Com essa saída resolvi fazer um hiato com relação aos projetos de música e foi bem quando me dediquei de cabeça na militância. Mas a necessidade de seguir compondo sempre permaneceu e foi nessa época que a ideia de começar a sair da posição de espectador e passar a compor rap também começou a ganhar corpo aos poucos. Após começar a fazer algumas batidas em 2011 pra dar vazão a essa necessidade (enquanto dividia o tempo com a militância, graduação e o emprego no setor operacional dos Correios), comecei a pensar num disco que seria o primeiro e que acabou nunca se concretizando. Daí por volta de 2012/2013, depois de formar, procurei um dos meus beatmakers soteropolitanos favoritos, Diego 157 (157 Nervoso), pra fechar uns beats com ele e começar a me dedicar de fato a um projeto solo no rap. Porém, algum tempo depois acabei entrando pro grupo de rap que o Diego tinha montado (Fraternidade Maus Elementos) onde já estavam nomes como Galf, Lukas Kintê, Oddish, Tiago Negão, Victor Haggar, Márcio M.U (e o Gold que acabou entrando na mesma época que eu). Nisso adiei meu trampo solo de rap mas soltamos o álbum Eles Não Vão Perdoar. Com a mudança pra Florianópolis em dezembro de 2016 por conta de um concurso, acabei saindo do grupo pra não atrapalhar os muleque e resolvi voltar a ter banda de hardcore fundando a All Systems Fall em fevereiro de 2017. Foi nessa mudança que finalmente comecei a organizar e construir o que faltava pro Narrando a Era da Psicose e quando eu e Galf elaboramos o que viria a ser o VAPOR. Nesse ano também acabei produzindo seis beats pra série estadunidense Texas Metal e começando um mestrado.
PM: Esse ano você lançou “Subversivo” e agora veio o “Pervasivo”. O segundo me parece mais ligado a uma questão local - de Salvador e do Brasil, por causa das citações, como o discurso de Abdias e do trecho de Ó paí ó, o filme. E o primeiro me parece que traz denúncias mais gerais. Vc acha que tem essa relação entre o "tom" adotado em "Subversivo" e "Pervasivo"? Eu li no Oganpazan que ambos os trabalhos fazem parte de uma trilogia, ainda vem um último álbum pra fechar?
GD: Salvador é sem dúvidas minha maior inspiração pra rimar. A forma como a cidade respira e resiste sempre permeia minha escrita de alguma forma e acho difícil ter alguma faixa minha que não faça ao menos uma referência à cidade, direta ou indiretamente. Mas acho que você está correta quando diz que o Subversivo trata de temas mais gerais. Foi algo que acabou surgindo naturalmente por se tratar de uma obra com colaborações de pessoas de países distintos. Acho que Pervasivo acaba dialogando sobre o específico e o geral mas com o pé muito fincado em Salvador e no Brasil mesmo (embora do ponto de vista da sonoridade reflita mais um movimento que ainda não chegou com força no Brasil embora já haja outros expoentes importantes dessa corrente). Pra mim, esse trânsito permanente entre o específico e o geral e entre o que acontece aqui e do outro lado do globo (seja politicamente, culturalmente, economicamente, etc.) sempre foram as tintas com as quais pinto o mundo que enxergo. Horror-Lounge, por exemplo, faz um movimento proposital que começa em Salvador e desenvolve para temas que considero questões mundiais. O capitalismo tenta forçar uma padronização do todo através de uma engrenagem que opera sob as mesmas bases mas que se adapta a cada contexto num curto e médio prazo para plastificar tudo no longo prazo. Mas as distintas realidades locais e regionais e os movimentos e costumes de seus povos têm um poder enorme e conseguem sobreviver com muito esforço ao trator do capital (embora não saibamos por quanto tempo). É um pouco disso que tento expressar nas letras. E Salvador é sempre meu ponto de partida pra chegar em outros lugares. Foi uma opção consciente ter apenas participações brasileiras nesse disco. Inicialmente seriam apenas participações baianas. Porém o Machel acabou entrando, foi um mano que fez eu me sentir em Salvador quando estive em Porto Alegre. E sim, os dois trampos são parte de uma trilogia que se encerra no primeiro semestre do ano que vem com o lançamento do disco Corrosivo. Esse trampo tem batidas feitas pelo anarquista grego Abysmal e retoma um pouco da atmosfera vista em Subversivo.
PM: E falando em citações, gosto muito da produção de ambos os discos, quando eles puxam pra um lado meio jazz, com sample de sax (exemplo de “Dona Flor”) e de piano (“Horror-Lounge”). Como você e o produtor vão afinando essas referências? Quais são as suas principais referências nesse sentido?
GD: Samples de metais mexem muito comigo e o jazz tá recheado deles. No caso do Pervasivo, como todos os beats foram feitos por mim, acabei separando as batidas e loops que mais tinham a ver com o que pretendia e já coloquei na ordem do disco antes mesmo de terminar todas as letras. O instrumental de Horror-Lounge tava sendo guardado pra outro disco e acabou substituindo um dos beats que eu tinha escolhido pois senti que tava faltando algo nessa pegada. Por estar diretamente envolvido em todo o processo, foi possível construir a obra criando a atmosfera que eu pretendia da primeira à última faixa. Mas no Subversivo, todos os beats foram escolhidos por Giallo e quando ele disse que ia me enviar eu não sabia exatamente o que tava vindo, embora já soubesse que o que viria seria foda. Giallo é o tipo de cara que te deixa tranquilo quanto a isso porque é um mano que só produz pedrada. Atualmente estou trabalhando em novos projetos com outros beatmakers e a dinâmica tem sido de ouvir vários beats de cada um e selecionar aqueles que estão dentro da proposta da obra. Para produzir meus instrumentais, minhas referências em sua imensa maioria são músicas feitas entre os anos 50 e 70 de gêneros musicais distintos e de partes do globo que costumam ter sua produção musical subestimada pelos brasileiros e norte-americanos. Os últimos 12 anos em especial e o processo de começar a produzir beat me possibilitaram acessar um universo musical que segue em expansão. Sons que jamais achei que estaria escutando ou que sequer sabia que existiam hoje embalam meus finais de semana.
PM: Salvador tem uma produção de rap que vem fervilhando há uns bons anos, quais são as principais dificuldades que você enxerga para o gênero na cidade? E como você sente a receptividade da sua música por aí?
GD: Sou suspeito pra falar de Salvador pois além de aflorar o bairrismo quando falo, realmente acredito que a cidade e seu povo, por sua condição no contexto nacional e latino-americano acaba sendo vanguarda de muita coisa, muitas vezes de maneira involuntária. Mas é notório que culturalmente SSA é o principal polo criativo e musical do país do ponto de vista da produção. Óbvio que não se trata de um monopólio, mas a contribuição na criação e ramificação de tantos gêneros musicais é incomparável e no rap não é diferente. Há desde artistas que se metem a fazer algo e fazer bem pra caralho, por vezes superando suas referências até aqueles que subvertem propostas e criam algo novo a partir disso. Então é real quando você fala que a cena ferve. Mas os problemas existem e em SSA não são poucos. Pra citar apenas dois que considero de grande impacto estão a panelinha da indústria cultural baiana que reúne uns poucos punhados de padrinhos e madrinhas e seus afilhados e que controlam não só como o dinheiro da cultura circula na cidade mas o quanto circula e quem pode ocupar qual espaço. Com muita luta e militância o rap local foi ocupando os melhores espaços dentro da cidade mas tudo ainda é muito limitado por quem dá as cartas.
A segunda questão que considero importante é o esforço colossal que a mídia grande, ( e algumas muitas pequenas também), as produtoras, os selos e muitas vezes os artistas do eixo RIO-SP fazem para fingir que a produção de rap de Salvador e da Bahia não existem e muitas vezes bebendo da fonte mas apagando a referência. Chamo de esforço colossal pois Salvador e o estado já estão produzindo muito em qualidade e quantidade e inovando em cima do que fazem e eles pensam que não mas a gente sabe quando tá chegando por lá, o que tá sendo ouvido e comentado, etc. Só que o devido espaço não é dado nas cidades e estados que se beneficiaram pela distribuição desigual de investimento e recursos feita no passado. E isso afeta diretamente a própria percepção do público de rap da cidade com relação aos seus artistas locais, por vezes valorizando só o que vem desse eixo, mesmo que se trate de um artista que só lança mais do mesmo. Se o peso dos recursos de fora faz até o soteropolitano torcer pra time de futebol que não é da própria região, imagina o que não faz no rap.
Atualmente vivo em Florianópolis, Santa Catarina. Acredito que como não há um gênero musical próprio do estado e da região com apelo de massa, a cidade e o estado acabam consumindo, reproduzindo e criando em cima de gêneros oriundos de outros estados como o sertanejo, o funk e o samba e também o que está ou esteve em alta na indústria musical global como rock, rap, reggae, pop, etc. Especialmente em Floripa que tem muita gente de fora, tem rolando muita coisa de rap, várias batalhas, shows e eventos semanais, e etc. o que é muito bom. As referências sonoras e líricas, porém, em sua maioria acabam refletindo o que tá no mainstream e o tipo de som que tenho feito junto com alguns outros artistas no Brasil foge um pouco disso e só foi furar a bolha nos EUA em 2020. Então ainda rola um estranhamento de alguns quando alguém escuta uma rima em cima de um loop e fica esperando o loop virar e entrar uma bateria, por exemplo, ou não escuta os graves dançantes que tem tocando recorrentemente nas paradas nos últimos anos . Por outro lado, acaba sendo o primeiro contato de outros com essa escola e isso é muito massa também. Outra coisa doida é a maneira como algumas gírias baianas acabam causando curiosidade e interesse.
PM: Me fala um pouco da sua conexão com seus parceiros nesses trabalhos, como o Giallo Point, Galf, Samora Machel etc.?
GD: Como disse um pouco acima, eu e Galf estamos trabalhando juntos desde o começo de 2015 nos Maus Elementos. É um cara que eu já admirava antes de trampar junto e daí em diante essa admiração só cresceu. Temos mais de 25 sons juntos e isso pra mim é motivo de grande honra. Foi a partir dessa movimentação de reforço do boombap underground que estamos fazendo desde 2019, sob essa nova estética, que pudemos estabelecer a conexão com Giallo Point na Inglaterra e produzir cada um, 1 EP com um dos caras que trabalhou com grandes referências nossas como Ill Bill e Vinnie Paz, pra citar 2. Além disso o Subversivo conto com participação de Lord Juco de Toronto, de Che Uno (argentino que vive em Toronto) e de Napoleon Da Legend (França). Todos esses muito ligados e ativos nessa proposta musical que trago em faixas como Dona Flor. Pervasivo foi basicamente uma reunião de Maus Elementos (Tiago Negão e Oddish, além de Galf). Além deles tem duas participações de Dois As, MC do Recôncavo Baiano (Cruz das Almas) que têm o mesmo espírito under sujo dos maus elementos. O Samora Machel conheci em 2020 na militância e lá ele e os caras do grupo que ele faz parte (Time RB) tão vindo pesado. Quando ouvi as rimas e flow do bicho, falei pra ele que ia chamar numa faixa e acabei chamando numa faixa loopada e ele abraçou o desafio que acabou virando clipe.
Aproveitando, se inscrevam no canal de Gil Daltro no YouTube e ativem o lembrete pro próximo clipe que vai ser lançado no dia 15 de dezembro.
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