por Italo Diblasi
O poeta Roberto Piva, como um touro.
Mas não diga quando nem por quê. O paroxismo não carece de código, cifra ou significação. E o título já aponta para isso: linguagem como delícia, expressão e só. Orgia de línguas, glossolalia. Em Roberto Piva tudo é salamaleque, e ao contrário do que pregam os mercadores de versos, não é pouco. Produção de efeito. Banquetear-se com o mundo, mastigar só um pouco do que chega e cuspir a carne dura, já que só o sangue é nutriente. Há uma operação poética em Piva que mira o desnudamento da palavra rumo a seu sumo – o atravessamento. “minha palavra & nada que você acredita poderá acontecer”. Algo que dispara e só compreendemos depois, como um baque refratário, uma flecha contra a lua. E não se trata de um gesto tão vulgar que se tornasse literal; é antes corpóreo: “assim que você espreguiçar eu estarei sangrando”. A palavra nua deixa de ser veículo e se torna totem, apenas para nos enganar novamente. Abracadabra! Abra os olhos e diga ah! Mas não diga quando nem por quê.
E nada pode ser tão grande que não caiba num sapato. Aquele que arrastamos pelas avenidas e que Piva arrastou ao longo de toda a Ditadura Militar. Não deixa de espantar que este livro seja fruto deste período, publicado em 1975, num Brasil pós-Ai-5 que já florescia como musgo, frente à palavra milica, a palavra da ordem vazia e violenta. Mais violenta era (e segue sendo) a poesia de um Piva, arrastando o pensamento rumo ao encanto, à saturação do sentido, a uma explosão de vida contra os refrões mortificados do autoritarismo. “tudo começa a anoitecer/cheio de energia”. É a palavra poética que quer disputar os corpos, brigar em cada célula por uma singularidade divergente. Contra a inércia, o espasmo. Contra o medo, a máscara. E puxar os grandes conceitos pelo braço, estampá-los nos muros e nos rostos agora um pouco débeis: o amor, a liberdade, o delírio. “ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA”.
E nada pode ser tão claro que se torne óbvio. A palavra poética que encontramos em Piva opera por contrafluxo. Não é amigo do Pensamento aquele que desespera, dissipando surdamente seu frágil segredo. É por isso que Abra os olhos e diga Ah! é fruto de um passo atrás, de um passo para dentro. Uma experiência erótica a quatro paredes num apartamento de São Paulo nos anos 70. “OS OLHOS DO MEU AMANTE OS OLHOS DO MEU AMANTE OS OLHOS DO MEU AMANTE”. O que se encontra neste livro é um apelo apologético do amor, deste amor, que é corpo, gozo e sacrifício. Um sacrifício que nada tem a ver com martírio. É oferenda, “disposição de ir à deriva nos dados do amor”. Eros: se só vivemos uma vez, que perda terrível não conhecê-lo. Fazer do corpo cavalo dele. Levar adiante sua ideia é enobrecer a vida: estado de poesia.
Aquilo a que a poesia de Piva se opõe, dentre tantas coisas, é à masturbação da linguagem, o artefato literário, gabinete de soluções. “O poeta deixa os dias como peças de escultura”, disse certa vez, e os poemas nascem como consequência, registro. É no processo de acontecer que a obra se dá. Fidelidade ao evento. “A POLÍTICA DO CORPO EM FOGO/ DO CORPO EM CHAMAS/ DO CORPO EM FOGO”, tudo é matéria para quem é da forja. Tudo inflama. Propor a própria vida antes que ela seja proposta – saber que carregamos ideias desde que começamos a rabiscar paredes. Inventar todos os dias uma forma de estar. E não estamos sozinhos: nunca estivemos.
”Amo tua boca devastada por fumaças diabólicas”, e só amamos aquilo que amamos em vão. Daí o amor à palavra, ao som, ao movimento mesmo da boca que fala. Arranhar garganta, barulho, balbucio, fazer poesia com a boca cheia, com o estômago embrulhado, com as contas atrasadas, com o rabo queimando, com o esqueleto penhorado. É isto o que amamos em Piva: encontrar a vida nela mesma, construir o castelo para gozar a queda, apostar sem lastro, fazer da palavra força-motriz: artifício: desejo: nossa única justiça: “samba-canção do nada”.
E quando o fôlego faltar, lembrar de parar, cruzar as pernas ao modo chinês e checar o que ficou no lugar. Só isto é saber. “ESTAMOS NA MERDA GENTIL”, mas agora um tanto quanto cansados para lamentar. Trair todas as crenças apenas para testá-las. O que voltar, segue valendo, com a força dobrada: “quero teu coração prontinho para zarpar”. E que não seja por falta qualquer derrocada. Tudo é perfeitamente inevitável. Abracadabra! Abra os olhos e diga Ah! Mas não diga quando nem por quê.
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