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Foto do escritora palavra solta

Afrofabulação e fantasmagoria: um percurso pelas cenas de Yhuri Cruz

por Pollyana Quintella



“Tudo começa no texto”, me disse Yhuri no seu ateliê. A gente conversava sobre as suas cenas dramatúrgicas que, desde o ano passado, promovem encontros entre diferentes linguagens. As cenas não são performance nem peça teatral, embora se alimentem de ambos os universos. Podemos dizer que elas são uma poderosa combinação de texto, desenho, corpo, imagem, coreografia, canto, música, e se relacionam diretamente com o lugar onde se apresentam: uma casa neoclássica, um palácio, um centro cultural no centro da cidade ou o ambiente digital.

1.

Esse percurso começa em julho de 2019, quando o artista organizou Pretofagia, uma exposição-cena no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, com curadoria de Marcelo Campos. Para além da exposição, Yhuri fez do centro cultural seu espaço de residência, reunindo regularmente diferentes profissionais do meio cultural para a construção de práticas coletivas, aulas e debates públicos. Embora o visitante pudesse ver uma exposição com desenhos, objetos escultóricos e uma situação algo instalativa, todo o conjunto orbitava em torno de uma cena dramatúrgica performada em quatro atos, com a participação de nove artistas convidados.

Naqueles meses, o espaço expositivo foi explorado pelo artista como uma plataforma de encenação e ficcionalização do imaginário negro. Lá pelas tantas, o texto de Pretofagia dizia: “Dentro do corpo preto racializado há pelo menos dois corpos dentro de um só corpo. Podemos chamar esses corpos interiores de corpos subjetivos ou de subjetividades.” Para além de se fazer presente, era preciso exercitar o direito à alteridade e à fabulação de identidade, quebrando as expectativas sociais usualmente depositadas sobre a negritude.

Mas Pretofagia não se encerrou com o fim da exposição, e podemos dizer que se apresenta como um conceito em processo, que segue sendo desdobrado e construído. Yhuri indica, com suas cenas, a busca por uma autonomia para os corpos negros, e investiga noções como coletividade e produção de diferença nesse contexto: “Comer a si mesmo como achegar-se a si mesmo para sacralizar o outro-eu que há no eu-você.”

PRETOFAGIA. Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro 2019. Fotografia de Pedro Linger


PRETOFAGIA com detalhe para a escultura Pretusi. Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro 2019. Fotografia de Pedro Linger


2.

Cinco meses depois, em dezembro, o artista realizou uma segunda cena: Faron Fun-Fun: Pangeia, no Museu da República. Nesse caso, o texto era um conto sobre a criação do universo e os primeiros desenhos feitos pelo Tempo, e teve como inspiração as histórias de Nanã e Oxalá, orixás primordiais. Com uma narrativa próxima aos mitos cosmogônicos ancestrais, a encenação de Farol Fun Fun rendeu também a criação do objeto escultórico Pangeia, um tríptico em granito que só se completa quando a temporada acaba, e que reflete a progressiva divisão geográfica do mundo.

Cabe atentar para a relação entre escultura e cena. Não só Pangeia acompanha Farol Fun-Fun, como Pretofagia faz uso dos Pretusis, série de máscaras em granito que são acionadas pelos personagens. Pretusi é uma paródia de Brancusi, o escultor romeno moderno que, segundo reza a lenda, foi a inspiração para Tarsila do Amaral pintar a cabeça d’A Negra (1923), o que expõe o perverso jogo de apropriações engendrado pelo nosso modernismo.

Mas além de objetos cênicos, essas peças escultóricas têm autonomia e compõem o repertório de obras do artista. O mesmo se aplica aos desenhos em pastel de Pretofagia, que embora mencionem o imaginário da cena, deliram para além dela e configuram vida própria, com personagens fundidos e amalgamados em processo autofágico.

Quanto ao enredo, é importante lembrar que as narrativas pretensiosamente totalizantes e hegemônicas sobre o mundo são brancas, e refletem a ideia de que o logocentrismo universal é, na verdade, parte de um projeto específico de saber. Penso em Grada Kilomba a dizer: “Quando eles falam, é neutro; quando nós falamos, é pessoal. Quando eles falam, é racional; quando nós falamos, é emocional. Quando eles falam, é imparcial; quando nós falamos, é parcial. Eles têm fatos, nós temos opiniões”. O investimento em outras cosmogonias é a afirmação de que o mundo existe a partir de origens outras. Curiosamente, embora Farol Fun-Fun seja sobre a criação do universo, podemos pensar que ela também nos aponta para “o fim do mundo tal como o conhecemos”, conforme a filósofa Denise Ferreira da Silva.


FAROL FUN-FUN: PANGEIA, com o tríptico Pangeia ao fundo. Museu da República, Rio de Janeiro 2019. Fotografia de Luiz Baltar.


FAROL FUN-FUN: PANGEIA. Museu da República, Rio de Janeiro 2019. Yhuri Cruz e Tatiana Henrique Fotografia de Alex Reis.


3.

A terceira cena é A Cova do Escravo, realizada em fevereiro de 2020 no Solar dos Abacaxis. Trata-se de um edifício neoclássico do Rio de Janeiro, cuja história remonta à escravidão e que é hoje um espaço de experimentação entre arte e educação.

Seu ponto de partida foi a escrita de um poema que conta a história de um homem escravizado que trabalhava numa fazenda de cana e que ouvia, de dentro da Casa Grande, uma música racista ser frequentemente tocada pela família branca em suas celebrações. Embora a ficção de Yhuri esteja situada no século XIX, ela é a história de um retorno mal assombrado. Mesmo depois de morto, o homem traumatizado atravessa o tempo histórico e assombra os brancos vivos de hoje, como um fantasma que entoa a música de outrora. É uma cena de terror e suspense que o artista descreve como “opereta pretofágica”, uma vez que une o canto à ação performática e narrativa, com um coro de três cantoras (Dani Câmara, Clara Anastácia e Jade Zimbra) e um pianista (Leo Morais).

Yhuri evoca a fantasmagoria colonial não digerida e aponta a sua permanência no presente. É preciso fôlego para assistir esta cena, na qual corpos negros cantam a música racista reiteradamente, num processo simultâneo de expurgação e assombração que parece testar a resistência do público. Aqui, um trecho da música:

Lá no cume tinha um túmulo

Que vivia visitado

É o diabo, é o diabo!

É a cova do Escravo


Quem deitado faz pedido

Sofrerá realizado

É o diabo, é o danado!

É a cova do Escravo

Sua ambiguidade reflete que vida e desejo, violência e coerção existem lado a lado, e não são totalmente opostos como se costuma supor. Ao final da cena, os outros participantes cobrem o rosto e os pés do artista com o bolor retirado das paredes da casa neoclássica em ruínas, conferindo-lhe uma máscara que funde identidade e arquitetura, memória e espaço. A sensação é que o ato reanima as forças ocultas do lugar, fazendo conviver passado, presente e futuro num entrelaçamento permeado por disputas, conflitos e contradições.


A COVA DO ESCRAVO. Solar dos Abacaxis, Rio de Janeiro 2020. Fotografia de Gabrielle dos Santos.


A COVA DO ESCRAVO. Solar dos Abacaxis, Rio de Janeiro 2020. Fotografia de Gabrielle dos Santos.


4.

Dada a pandemia, Yhuri produziu uma cena virtual (a quarta e última aqui analisada) no contexto da web residência do Pivô Pesquisa, no dia 19 de setembro. Uma live-cena chamada Anastácia como Vênus, cuja premissa foi uma tradução do artista para o artigo “Venus in two acts”, da escritora Saidiya Hartman. Na esteira de Édouard Glissant, Hartman é conhecida por reivindicar o direito de fabular a imagem e a história negra, algo que Tavia Nyong’o também chamou de afro-fabulation, como bem observou a crítica Kênia Freitas.

Trata-se de uma perspectiva interessada em produzir narrativas ficcionais e fugitivas, que não reproduzam os rótulos de violência e representação já conhecidos para os corpos negros – sobretudo os forjados pelo olhar branco. Debruçada sobre a violência presente nos arquivos do Atlântico Negro, Hartman decide incorporar, junto à pesquisa histórica, o exercício de imaginação, conferindo aos sujeitos de outrora a possibilidade de possuírem uma narrativa mais digna, já que não é possível acessar registros das vozes negras escravizadas. Em “Venus in two acts”, especificamente, Hartman parte da história de duas meninas escravizadas que morreram a bordo de um navio inglês no século XVIII, depois de espancadas e torturadas. Uma delas é Venus. A autora se pergunta: "Se não é mais suficiente expor o escândalo, então como seria possível gerar um conjunto diferente de descrições a partir desse arquivo?”. Não se trata de dar voz ao escravizado, mas “imaginar o que não pode ser verificado”, fabular.

O gesto de Yhuri, por sua vez, foi aproximar a Venus de Hartman de Anastácia, personagem ostensivamente reproduzida pela iconografia colonial brasileira, representada originalmente em uma gravura do francês Jacques Etienne Arago. Assim como Venus, não sabemos muita coisa de sua história, além do fato de que veio do Congo para o Brasil no século XVIII, onde foi escravizada e abusada sexualmente. Sua origem é tão nebulosa que, nos diários de Arago, o artista se refere ao retratado como homem, o que indica que a representação sofreu uma série de deslocamentos de sentido ao longo do tempo. De fato, não são poucas as histórias nada consensuais a respeito dessa personagem.

Na gravura original, Anastácia é representada utilizando um grilhão no pescoço e uma máscara de flandres, instrumento de dominação que impede o usuário de levar qualquer alimento à boca, um recurso utilizado para impedir que os escravizados se suicidassem. Em 2019, Yhuri já havia feito um trabalho em cima dessa imagem, quando representou uma nova Anastácia, agora sem máscara com um pequeno sorriso, com seu grilhão transformado em adorno, já livre da narrativa violenta associada a si. O retrato foi reproduzido no formato de santinhos religiosos com uma Oração à Anastácia Livre e distribuído ao público, se tornando seu trabalho mais conhecido. Yhuri redignificou Anastácia.

Na live-cena, por sua vez, os participantes Caju Bezerra, Iagor Peres, Jade Zimbra e o próprio artista aparecem na tela com a imagem da congolesa sobreposta aos seus rostos, devidamente encarnada. O recurso aponta para nós que, embora destituída de história, Anastácia sobrevive não apenas na imagem clássica, mas na memória coletiva desses corpos vivos. Na cena, Yhuri diz que diante dessa imagem, “eu vejo minha mãe nessa boca, eu vejo minha avó nesse olhar, eu vejo Jade, Caju, Iagor”. Diferente das cenas anteriores, em que os participantes encarnam sempre um outro personagem, Anastácia como Venus reivindica os corpos presentes a partir de sua própria história e identidade.

A cena começa com Yhuri traduzindo a música “Don't let me be misunderstood” composta em 1964 por Bennie Benjamin, Gloria Caldwell e Sol Marcus para o repertório da cantora de Nina Simone. A tradução acontece enquanto um vídeo de Simone cantando aparece na tela, simultaneamente. O refrão “Não me deixe ser mal interpretada” soa como referência não só a história desses corpos e seus arquivos mas ao próprio ato de tradução, nesse caso, tradução-criação. Depois de um debate sobre Hartman, os participantes leram trechos e fragmentos da tradução de “Venus in two acts”, enquanto Yhuri fazia intervenções sobre o texto, desfocando e incorporando imagens referentes ao repertório afro diaspórico, o que rendeu um arquivo em PDF disponibilizado ao público.

Com essas intervenções, o texto deixa de ser apenas informação codificada para se apresentar enquanto matéria e corpo. As palavras convivem com a fantasmagoria das imagens que insistem em permanecer e assombrar o verbo. Falamos de sobrevivências veladas, encobertas. Segundo Yhuri, traduzir se torna, ao mesmo tempo, “limpar o arquivo e empoeirar as palavras que limitam as vozes e as presenças para uma fabulação crítica de Anastácia e de Venus.”

No entanto, creio que a ideia de fabulação crítica pode ser aplicada a todas as cenas de Yhuri. Elas são gestos, exercícios de imaginação que expandem as possibilidades da vida negra, e negociam entre os legados do passado e as projeções do futuro. As cenas resistem às identidades fixas, não só dos corpos que a fazem, mas de si mesmas enquanto linguagem. Seu formato vem testando os limites do teatro, do espaço expositivo e das artes visuais, e apontam que representação e identidade fazem parte de um jogo repleto de sutilezas.


Frame de ANASTÁCIA COMO VÊNUS, UMA CENA DE TRADUÇÃO. Via Plataforma Zoom, durante a residência no Pivô Pesquisa, Online, 2020.


Frame de ANASTÁCIA COMO VÊNUS, UMA CENA DE TRADUÇÃO. Via Plataforma Zoom, durante a residência no Pivô Pesquisa, Online, 2020.



Para saber mais sobre o trabalho do artista, acesse: http://yhuricruz.com/

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