uma correspondência entre Flávio Morgado e Thiago Oliveira Vieira (autor convidado)
Seguindo o formato adotado na conversa com o sociólogo Eduardo Reis de Mello, darei início a uma série de trocas na minha coluna sobre diversos assuntos. Abrindo essa série: o psicanalista e amigo Thiago Oliveira Vieira.
Thiago, maninho,
“Eu odeio a classe média!”. É o que bradava a filósofa Marilena Chauí em um evento de debates sobre os dez primeiros anos de governo do Partido dos Trabalhadores. Disposta a destrinchar o que seria aquele nosso momento histórico, com seus avanços e recuos, a professora acabou por dar vida a uma das peças mais icônicas do que seria a nossa cólera poucos anos depois.
Apesar de muitas críticas que alguns possam dedicar à professora, naquele momento, ela nos alertava sobre o ovo da serpente: um ano antes do pedido de recontagem por parte do Aécio, três do golpe e cinco do Bolsonaro. Uma escala que veio se tornando mais grave e profunda. E que àquela altura, Marilena Chauí nos explicava não como um fenômeno inerente aos anos do PT, não meramente como um produto, embora seja verdade que a ascensão social via consumo empreendida durantes esse anos tenha sido um grande abismo cavado com os próprios pés; mas antes disso, Chauí nos entregava um diagnóstico histórico, uma espécie de falha fundamental no sistema brasileiro, um erro sistêmico, que se de um lado o PT conseguiu dar conta, e isso se deu a um excesso de concessões, a um discurso ideológico pouco claro e uma prática ainda menos no que se refere às bases estruturais de uma revolução social: a educação e a cidadania. Um dever de casa que não fizemos.
Em 2013, o Brasil ainda ensaiava o seu fascismo, ainda achávamos um absurdo, sem dar a devida importância ao sintoma: do incômodo da classe média com os aeroportos cheios de pessoas mais pobres, da luta secreta pela manutenção do privilégio e do uso cínico do discurso de isenção.
Esse vídeo é uma verdadeira pérola, são vinte minutos de uma cólera refinada pela professora, de uma raiva que hoje se ressente ainda mais.
Nem o pior dos pessimistas, conseguiria imaginar o desmonte institucional que se tornou o país. Generais ameaçam o pleito, o Executivo exerce uma função miliciana, agressões se autorizam em todas as esferas, o STF blefa, o TSE acua, o povo espera o próximo carnaval de uma pandemia que se iniciou com “foda-se a vida!”.
O que me fez pensar imediatamente em você, Thiago, amigo, interlocutor e psicanalista, e os termos em que essa raiva e esse diagnóstico operam: histórica e psicanaliticamente. Ou como outro dia bem arrematou: a ideia de um “salário psicológico” da burguesia, essa espécie de soldo sobre a desigualdade, essa garantia de um exclusivismo de direitos e uma afirmação da própria classe fundamentada na subjugação de outra. Como pensar, ainda que em termos teóricos, essa ideia de um salário psicológico?
Rio de Janeiro, 22 de julho de 2021
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Malandro,
Tenho andado às voltas, mais uma vez, com Freud, mais especificamente com um texto dele, A negativa (1925). Mas não só com isso, como você bem sabe, a imersão tem ocorrido também nos estudos sobre a branquitude, pois acredito piamente na força deste chamado ao corpo — tanto o corpo-pele quanto o corpo-estrutura — para o entendimento do que nos acontece. Nesta aproximação, entre sociologia e psicanálise, que as posturas de uma classe média supostamente isenta e desimplicada se deparam com o conceito de salário psicológico, um grande operador lógico que funciona na junção raça e classe, e de onde se desdobram os meus e os teus incômodos.
Ao ler sobre a negativa, um dos textos da metapsicologia freudiana, vou me deparando com o destrinchamento que ele fez sobre o mecanismo psíquico inconsciente da negação. Ele nos diz que no inconsciente não existe negação, logo quando uma frase é proferida pela sua negativa o analista precisa estar atento para entender que ali comparece antes de tudo uma afirmação. Uma frase dita pela sua negação atesta uma verdade inconsciente impossível de se assumir, por algum motivo.
Esse texto tem me retornado fortemente nos últimos dois anos, pois tenho me interrogado sobre a possibilidade de ler por essa chave aquilo que chamamos de uma postura negacionista frente a nossa situação política e sanitária. Estamos falando de um povo que simplesmente nega o que está a olhos vistos ou estamos falando sobre ricas afirmações vestidas por isenções e desimplicações?
Esta contribuição freudiana confrontada com os estudos de raça, classe e gênero me interessam porque rasgam os desimplicados inclusive em nós, visto que essa proposta de diálogo tem um recorte e um alcance também específicos, os acessos aos consultórios de psicanálise, tanto como analista quanto como analisando, e a produção artística, quem a faz e em quem chega, são acessos brancos.
Aí está um significante fundamental para nossa conversa, pois o signo que une em uma mesma forma de gozar posições sociais tão distintas (burguesia, classe média e o trabalhador) que goza de privilégios é: branco. A partir dos significantes: “homem branco”, conseguimos situar e explanar a função de dois conceitos fundamentais para o nosso diálogo: salário psicológico e pacto narcísico.
O primeiro foi um conceito criado por Du Bois a partir dos resultados de uma pesquisa em 1935 e publicado no livro A Reconstrução da América Negra. O sociólogo, ativista e poeta estadunidense (abre o jogo, meu bom, já está se perguntando porque nunca ouviu falar dele, não?) evidencia que mesmo entre trabalhadores que ocupam idêntica posição no trabalho, uma pessoa branca goza de privilégios que uma pessoa não branca não goza.
Existe uma lógica que diferencia brancos e não brancos, em que ser branco é um ativo; produz privilégios e acessos em diversas instâncias — saúde, educação, liberdade de fala, direitos civis e direito à vida — em detrimento à exclusão de negros e indígenas, no caso do brasil.
Segundo Du Bois, este ativo funciona inclusive como um desarticulador da classe trabalhadora na luta de classes, pois a divide quando os trabalhadores em condições de acesso tão diferentes. Além disso, a noção de salário psicológico parece ser o fiel da balança, o operador lógico que articula classe e raça, como mantenedor da dança média, sádica pero no mucho, como dizem.
Pois não é em cima destes privilégios, na classe em que se desdobra Chauí, que se desenha uma economia psíquica — um sistema de pensamentos e uma maneira de gozar acessos não obtido por todos — que nos aproxima supostamente de um ideal burguês e nos distancia da realidade, trabalhadores que gozam por não serem tão subalternos quanto outros subalternos?
Penso que o teu interesse neste tema nasce das perversidades que você pescou, pois, ler o ovo da serpente e a nossa estrutura perversa a partir da chave desses ativos é mais político do que retórico, ao meu ver, pois traz à tona que o que está em jogo não são mecanismos de defesas frente a uma realidade difícil de lidar, que necessitariam de uma negação momentânea; mas sim um apego a condições dos quais não se quer abrir mão, o que há muito se sabe. A força está em nomear para organizar novas posturas.
Porque é daí que se faz urgente questionar o pacto narcísico da branquitude, pois não é possível imaginar que nessa altura dos acontecimentos alguém não saiba sobre os efeitos da desigualdade e do que estamos falando. Segundo o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, PUC-Rio: as pessoas pretas vacinadas são quase a metade em relação a pessoas brancas e a porcentagem de negros mortos por Covid é 38% a mais do que a de pessoas brancas. Hoje, essa rua é a casa de todos nós, está posto a ciência destes dados.
O pacto que produz isso e que possibilita estratégias de apagamentos tem nome e sobrenome, não há como negar. Cida Bento, pensadora brasileira, foi quem alcunhou o termo pacto narcísico da branquitude, título da sua tese, inclusive. Nela, ela nos traz os meandros de como pessoas brancas se enxergam como semelhantes e compartilham os lugares de poder e fala entre si, a partir deste marcador que é a pele a fim de manter a supremacia branca em detrimento da exclusão de negros e indígenas.
Este pacto precisa ser posto em xeque, pois se estamos falando de um operador lógico que norteia supremos, meios de produção, cemitérios, ruas, camas e casas por meio de um gozo perverso e que o naturaliza como norma, então está aí o locus do que devemos pôr em palavras e onde incidir com estratégias de desarticulação.
Pois inconsciente e historicamente o que está em jogo quando não temos letramento racial e entendemos os estudos sobre raça e negritude como pautas indenitárias apenas, um simples reclame ao indivíduo por um determinado grupo, que desarticula o fundamental, a classe?
O que se repete e continua em jogo, em meio a táticas de apagamento que fazem não conhecermos com a devida imponência Du Bois, Cida Bento e Virgínia Bicudo? Esta foi uma socióloga e psicanalista negra, a primeira analista a se formar no brasil sendo não médica. A primeira psicanalista brasileira era uma mulher negra, hoje somos quase a totalidade brancos e por mais brilhante que sejamos é um sintoma risível analista se debruçando sobre a classe média. Estamos falando sobre novidades ou sobre regras?
Brasília, 23 de julho de 2021
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Virgínia Bicudo, pioneira na Psicanálise no Brasil
Amigo,
O mais interessante em poder ler, ainda que de uma maneira teórica, essa situação, é imediatamente aplicar ou conjugar essa leitura ao nosso processo histórico. É a prova real, a capacidade de ver toda essa estruturação da norma nas nuances de uma série de perversões, que mais do que nos assustar, elas nos assinam.
Então, puxando para esse lado, eu gostaria de pensar três momentos (poderia escolher uma infinidade) que me parecem simbólicos na construção dessa norma, que se fundamenta nesse exclusivismo, e vai desembocar na cólera da professora Marilena Chauí.
O primeiro, acho que inevitável ao vício pelas origens de todo historiador, é pensar o início da nossa ocupação colonial. Em sala de aula, costuma-se chamar os 30 primeiros anos de ocupação como Período Pré-Colonial: um misto de redução e didatismo, que visa dar conta desse que foi um período sem grandes incursões metropolitanas no que seria o Brasil. Um período de vulnerabilidade colonial, que dada a preocupação com o já estabelecido comércio com o Oriente, além das feitorias da costa africana, Portugal dedica pouca atenção (oficial) à América portuguesa.
Nesse primeiro contato, ainda que a oficialidade nobre não tivesse tão interessada em uma terra quente, hostil e com “selvagens”, é curioso que se use o termo pré-colonial, quando é neste momento que se torna evidente as mais claras práticas coloniais: o genocídio, a aculturação e a ocupação irresponsável.
À selva dos brasis, a nobreza incumbe o degredo. Viriam os detentos, os devedores, os perseguidos, os cristãos-novos e as meretrizes. E não que isso, com qualquer cunho moral, venha a depor contra a nossa vocação de rua, de malícia, mas é sob o ponto de vista dessa diferenciação, desse estigma, que se forma a primeira elite local. Em nossa primeira missa haviam muitos pecados.
Dali em diante, ainda que a rota de interesse comercial seja alterada e ponha o foco na exploração brasileira, e com isso, mudasse de certa forma o perfil da elite aos poucos, é sob a égide dessa correspondência falha e abusiva com a metrópole que se forjam os donos do poder. Dividido à régua, o Brasil é dado a treze nobres; cada nobre, dada a imensa extensão de terra recebida, precisa articular com uma certa elite local a doação de lotes menores. Hereditariamente, a concentração de terra vai se fundamentando no compadrio e na continuidade.
Mas é pouco. Ao Brasil, a colonização portuguesa também faria valer um dos mais lucrativos comércios e maior ciclo econômico da história do país: a escravização de africanos que serviriam como mão de obra na colônia Brasil. Ao passo que Portugal restringia o trabalho negro em seu próprio território, além-mar, abusava desse comércio humano. E é esta específica experiência que fundamenta talvez o estigma histórico mais incontornável de nossa formação, a mancha da escravidão.
Era comum, à época, ouvir ou ler relatos de uma certa nobreza metropolitana, que ao se referir aos colonos que topavam vir até aqui com desdém: “os brasileiros, que tratam com selvagens e negros”. (O próprio gentilício “brasileiro” entrega essa conotação pejorativa, etimologicamente, o certo seria “brasiliense”). Ou seja, dentro da estrutura do Império Português já há uma hierarquização que vai se sustentar exatamente nisso que você definiu como “salário psicológico”: uma elite metropolitana e palaciana, que repulsa o grosso trato dos nobres colonos; os “brasileiros”, essa elite togada na colonização, e que a bruto trato e oportuna distância, pode exercer as maiores perversões contra a classe que subjuga, que por sua vez, muito diferente de classe social menos abastada, é juridicamente entendida como uma PROPRIEDADE da classe acima. É aí que mora o veneno!
Um ser humano não é algo passível de um processo de “coisificação” tão fácil. Daí que a mera sustentação jurídica não fosse o suficiente para se inserir na formação de uma sociedade uma noção de propriedade tão vil. Por isso o uso constante e pedagógico da violência. Eu diria até que mais: o uso criativo, fundante, da violência. Porque é sob a égide de um apagamento cultural, de um exercício diário da violência sobre a alteridade negra, seja ela na perseguição religiosa, no batismo cristão, no cativeiro, no apagamento do nome, na separação das famílias, ou nos constantes abusos físicos e sexuais, que se organiza um Estado, um modo de vida, uma História.
Todo ano eu levo a molecada (meus alunos) a uma região aqui no Rio, a portuária, conhecida como “Pequena África”. Ali onde aqueles grandes armazéns serviram como depósito de homens e mulheres vindo do continente africano comercializados, e que também foi descoberto o “Cemitério dos Pretos Novos” (onde eram enterrados os negros que morriam nos navios negreiros), dou a melhor aula da minha vida. Não pelo discurso em si, mas pela possibilidade visível, sensorial, que a molecada tem em relação a esse processo. Eu peço para eles olharem cada detalhe das construções, as minúcias e as grandiloquências arquitetônicas. E digo que absolutamente tudo é construído por mão negra. E que para que tudo aquilo ali tivesse de pé e existisse, era preciso um exercício diário de humilhação, de castigos, de tomada de narrativa do povo negro. Um fenômeno tão bem-sucedido por aqui, que alcançamos marcas como já no século XIX tínhamos cerca de 40 milhões de habitantes, sendo que mais de oitenta por cento desse número, de negros, de escravizados, de gente que pertencia a outra gente. Uma abominação que não foi só naturalizada, ela foi projetada para ser o farol da nossa movimentação política.
Mesmo quando a Corte vem para cá, não há constrangimento, pelo contrário: aumenta a exportação de africanos. Novas modalidades de abuso. Debret pinta o nosso cotidiano colonial e atesta o pitoresco desse trato. A nobreza falida e fugida cai na farra da perversão. São inúmeros os relatos de abuso por parte de membros da própria Família Real. Aos estupros de Dom Pedro I: garanhão. À abolição da escravatura: Princesa Isabel se apaixonou por um negão.
Se pensarmos a própria Abolição, talvez a nossa única possibilidade de uma real revolução social, ela é terrível: além de tardia e engabelada por mais de um século, pelo menos, havia uma noção tão profunda de que aquilo abalaria por completo às estruturas do país, que foi preciso degolar a monarquia por ter cometido esse “erro”.
Afirmo com tranquilidade, não só nas minhas aulas para o Ensino Médio, como com a convicção de alguém que por escrever uma coluna de política, e por isso precisa ter o faro atento lá e cá, de que historicamente, a nossa República é, por excelência, um projeto anti abolicionista. Ele não acontece um ano depois à toa. O Barão de Cotegipe, lá no 13 de maio de 1888, já cantava a pedra à princesa regente: “Libertaste um povo. Perdeste um trono! ”.
Não havia, como não há, nenhuma coesão de projeto republicano no Brasil. Um regime que foi dado por um golpe militar, à sorrelfa, e sem qualquer participação popular, foi devidamente enfiado goela a dentro (e isso explica inclusive a concessão inicial dos cafeicultores ao autoritarismo militar) para conter os avanços que a Abolição poderia gerar. Era o regime que garantiria a propriedade privada, a pauta de exportação, o embranquecimento com subsídio estatal e o encarceramento e genocídio do povo negro.
Pensa-se o voto depois, as mulheres depois, os direitos sociais mais ainda. A urgência é conter o que a História não nos pode evitar. Então é uma premissa básica: a república, para que o Brasil mude para continuar o mesmo, é necessariamente um exercício de conservação. E o substrato de toda essa concentração de poder é o hábito da subjugação, tendo como bases as premissas raciais e sociais. Como bem demarcou a nossa história.
Aí, amigo, chega o ponto alto e inevitável de toda aula sobre isso: o momento que o meu aluno, branco e de classe média, reflete que se ele tomou café hoje ou está com a cueca limpa, é porque uma mulher negra o fez. Aí ele buga.
“Então, professor, ainda hoje, para que o Brasil funcione, precisamos conservar essa subjugação, essa humilhação diária perante as classes mais baixas, sobretudo os negros?”
Sim.
Rio de Janeiro, 24 de julho de 2021
Um funcionário a passeio com sua família, Jean-Baptiste Debret, 1839
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Jogador, mudança climática, e você não passa frio: tá coberto de razão!
Em Chamamento ao povo brasileiro, o filósofo Vladimir Safatle lê o poeta e revolucionário baiano, Carlos Marighella, como o corpo que fez um percurso político histórico que simboliza o nosso inaudito, mas não porque nunca foi dito, e sim porque houve um assassinato de quem foi Marighella, diga-se de passagem, negro. Por isso mesmo, o filósofo entende que é neste sujeito que devemos nos ater se o intuito é contra golpear, pois não estamos falando de teorias apenas, mas de implicações: práxis & atos. Vladimir abre o livro alinhado com o que você desenhou: “o Brasil é uma espécie de compulsão a repetição”, onde podemos ler que nessas investidas à morte e nas ofensivas à democracia não se conjectura o novo, nem de longe: mas sim o hábito.
Lacan, nos seus seminários diria: o hábito faz o monge.
O Brasil é sim este país anti abolicionista, concordo com a afirmação. Hoje, só lidamos com as atualizações desta lógica, em outras vestes e ainda normatizadas. Muito antes de Vladimir Safatle, Florestan Fernandes já havia atestado até a resposta deste Estado perverso aos movimentos disruptivos feito pelos trabalhadores, ele nos diz: “o Brasil é o país da contrarrevolução preventiva”. Assim, a cada novo ganho da classe trabalhadora, a cada novo acesso, no sangue & no grito & no tapa, que tenta se solapar na sobrevivência e CLTs (conquistas da luta dos trabalhadores, como bem diz o entregador antifascista Paulo Galo) vem um atentado e restitui a lógica perversa. Ou seja, até a repetição faz parte da conta tática do Estado e dos seus mantenedores, a burguesia e os que gozam sua rebarba. Provavelmente, isso ocorra porque sabe-se sim, que houve e há um povo que se rebela, porém, pensadamente, não é contado, ou não tanto e como se deveria.
Contudo, mesmo atento a isto, teu texto me causou questões: qual seria a etimologia da palavra repetição? Caberia, neste diálogo, a expansão da leitura clínica Freudiana em “repetir, recordar e elaborar” para ler o nosso contexto social e o percurso de um povo?
No texto, Freud escreve sobre a relação do sintoma com a repetição e nos diz que ocorre no processo analítico, a partir de repetições e rememorações, o trabalho de elaboração dos sintomas dissolvendo a teia dos seus enigmas. Isto tudo por meio das palavras e o que elas mobilizam, ao se dar nome ao que acontece, e imbuído no desejo de sair do sofrimento e criar outros destinos. Mas sabemos, é óbvio, que não se trata apenas de desejo, mas de gozo, e este gozo do Outro deve ser confrontado, sob as mais diversas estratégias (você disse dos seus vícios de historiador e eu sorri pensando nos meus, onde se incide o corte que destrilha esta dinâmica, que é discurso?)
Essas questões foram causadas por esta troca de palavras, como quem é tirado do lugar que estava por efeito das palavras de um outro. Tua aula me jogou em outro tempo, em um tempo que muito me interessa, pois não é o da repetição, pra mais além das suas dinâmicas e etimologias, que presume em algum momento um ato fundante que a preceda, fui jogado no tempo do ato. Nesse caso, mais precisamente, nos atos que fundam.
Nisso, ao enxergar o tempo de fundação que você nos contou, penso ser importante dar uma arqueologia ao vivido e, para além de não ser soterrado por ele, construir estratégias para agir sobre estas questões. Pode haver aí, dentro de uma leitura possível, um jogo de três tempos: o ato histórico de fundação dos nossos sintomas brasileiros; as repetições, que os restituem a cada vez que os elencamos; e os atos de descarrilhamento, que buscam outra visada ao nosso modus operandi.
Neste último, vamos nos ater e atuar, entendendo o ato na sua raiz de real, em que é mobilizado por elaborações e palavras, mas que vai além, engendra significantes que ainda não estão ditos, cortam repetições e onde as palavras ainda não alcançam, porque é práxis, é corpo:
I.
Sadismo e excepcionalidade
Segundo o IGBE, a população brasileira enxerga sim que vivemos em um país racista e que privilégios e desigualdades existem a partir disso, mas as mesmas pessoas que afirmam isso dizem não ver o mundo de forma racializada, ou seja, racistas são os outros. Nesse ponto, se incide mais uma retórica branca, a excepcionalidade. Não é sobre mim esta constituição narcísica e estes salários, mas sobre os outros, mais uma vez sobre os outros.
É sobre nós sim, afirmo, e foi nisso que me apaixonei por você, meu Camisa 7. É lindo pensar que sua aula na zona portuária está no cerne da implicação e do teu estilo, este pivete que ama tacar fumaça pelas beiras do campo e dos discursos. Mas não caiamos na esparrela da exceção, vamos pegar até essa aula para pensarmos juntos políticas que saiam ainda mais da média.
Pois, pensando que na pedagogia da violência a chave mestra é o sadismo, que nunca fala-se de pessoas negras e sua história, a não ser pra coloca-las neste lugar de sofrimento e reducionismos, façamos diferente, façamos mais. Eu gostaria de propor, como numa intervenção analítica que busca o furo, até dentro daquilo que já segue um bom caminho, que da próxima vez que for com os teus alunos à portuária, diga a eles quem foi Heitor dos Prazeres e Tia Ciata.
Diga, como quem conta a própria história homérica do samba, desde a invenção da Mangueira com Cartola, ao primeiro título da primeira escola de samba, a Portela, ambos com participação de Heitor dos Prazeres. Diga sobre ela, diga sobre ele; posso até te confessar que pensei nos prazeres, pra além da polissemia do significante, pensei por saber sobre a força da nomeação, “Pequena África”. Nome forte e pungente que foi dado àquela praça, que podia ser só mais uma praça, pelo sambista Heitor dos Prazeres.
Óbvio que não tinha como esta praça ser só mais uma praça, o malandro teve apenas a sensibilidade, o que já é muito, de pescar os encantados que rondavam por ali e atestar as magias, vindas da África, que aconteciam naquele lugar através da mãe de santo, Tia Ciata. A cozinheira, que terreirava todas as mandingas das redondezas e que cuidou até de presidentes, era também quem gestava, na pulsação dos atabaques, os sambas mais ostensivos da cidade. Essa alegria e reza, precisam ser ditas como quem encanta outra pedagogia, a dos terreiros.
(se achar pertinente, faça este acréscimo e me diga o que aconteceu).
II.
Embranquecimento
Mesmo no nosso bolêires de praxe, podemos nós dois dizermos que ser branco, até em Brás de Pina, não proporciona isso que se dá o nome de salário psicológico: acessos diferentes e capital estético simbólico? Alguém aí, no Rio, em São Paulo, nas mecas da psicanálise e das artes, nunca ouviu uma mãe preta dizer ao seu filho preto: anda bem vestido senão podem te confundir? O que está em jogo quando isso ocorre?
Quando isso ocorre, acontecem diversas nuances passíveis de se comentar, que ferem desde a saúde vital até a saúde mental da pessoa preta, mas aí se deflagra também o processo de embranquecimento como sendo esta proposta de país e de classe, que você nos contou. Dizer como uma pessoa deve se vestir, falar, portar, ocupar os espaços e se referenciar para não ser confundido com um imaginário social de periculosidade é perverso. Além de atestar, que o processo de embranquecimento vai pra além da cor da pele, são signos e códigos que devem ser buscadas para se adequar a norma imposta, mesmo que não se comungue dela.
E se esta é a proposta, então façamos aí uma torção e a peguemos pelo avesso. Porque é disso, também, que se trata o último álbum do Emicida, AmarElo, ele entende na pele essa perversidade e faz o seu oposto. Ele enegrece a maneira de contar a história, não só no seus conteúdos, mas buscando outras estruturas de linguagem. Nesse documentário, veiculado pela Netflix, o rapper conta a trajetória de muitos negros ao seu modo, indo aos discos de samba, pois eles “são seus livros de História”. E faz mais, convoca os instrumentos de Exu pra urgência destas questões. Onde “tudo é pra ontem, o dono da rua é esta pedra atirada amanhã que acerta ontem”.
Tal como as sucessivas produções de Luiz Antônio Simas, nelas o historiador explana que precisamos tencionar o Brasil oficial e fazê-lo dar errado no que ele espera de nós. O método de Simas tá à mão: partir para o “encantamento das ruas e, por macumba e drible, sobretudo na luta de classes”. Se a guerra é semiótica, se a briga é por narrativas, as disputemos como encruzilhadas e com nosso jeito de jogar.
Esse jeito de Garrincha, descendente indígena e símbolo do drible, representa saídas até para a nossa lógica política autoritária, segundo Simas. Em terra onde resistir e sobreviver é muito, mas não o suficiente, ele pede que façamos mais, que coloquemos o drible como filosofia para inventar saídas. Saídas sambadas, exuzadas, gingadas frente ao absurdo, visando junções de linguagens historicamente pouco aproximadas e disjunção da gramática vigente.
Assim como fez o rapper e o historiador, precisamos ser os apontamentos de Paulo Galo, este espírito político de Marighella, que diz sobre a importância de sermos Troia nessa estrutura.
III.
Escravidão e modernidade
E pra não falar que não falei da Carolina, da margarina. Você, que é a favor dos direitos humanos, anti bolsonarista e que aposta numa via mais à esquerda, faça o básico e lide com o fim da empregada doméstica e da diarista, ou pelo menos, até existir políticas públicas efetivas, crie políticas de transição para o fim deste serviço: pagar mais pelo mesmo tempo de trabalho; pagar o mesmo tanto que se paga, por menos dias e menos horas trabalhadas; e vejamos a partir daí o estrago que a doméstica pode causar na lógica da classe média.
Aposto algumas fichas que a estrutura média oficial: um homem, a esposa, a amante e a empregada seria bastante abalada. Pra quem ficariam os cuidados e a educação dos filhos? As casas teriam o mesmo tamanho e o mesmo número de banheiros? O amor sobreviveria? Isto afetaria alguma coisa no trabalho e na cama?
Talvez não valha a pena mexer nisso. Isto tudo parece muito trabalhoso e excessivo samaritanismo apenas pra ver uma mulher preta com dinheiro ou uma mãe negra cuidando de perto do seu próprio filho. Em nome do que se faria isso, vai que Carolina se habitua aos livros e faça literatura.
Brasília, 28 de julho de 2021
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Thiago,
Há uma potência aí, e esse texto a entreabre como o desdobramento de toda uma vida. O que nos comove é se ter essa companhia. Você já sabe.
Em parte disso, e partindo do que destrincha no seu texto, eu gostaria de pensar cada ponto levantado, mas sem antes te trazer essas duas imagens que cruzaram a minha cabeça essa semana.
A primeira, aquela icônica cena nas manifestações da capital paulista, em que o coletivo Revolução Periférica, empilhando pneus e convocando o nosso imaginário colonial, ateia fogo no monumento dedicado ao bandeirante Manuel Borba Gato. A potência de uma imagem como essa é tão grande, que eu a usaria na capa de um livro.
E veja você, que curioso, meu irmãozinho: depois de todos esses projetos gregários que eu acabei me metendo nos últimos anos (um livro em parceria com a Marcela Cantuária, e o projeto itinerante e convocatório do livro do tarô), o Brasil, e não há outro culpado, no meio desse caos todo, andou largando uns dez, doze poemas inéditos, que por seu teor altamente político e ácido, apenas os separei em um bloco, percebi essa coesão interna e deixei de lado. A imagem de Borba Gato em chamas, acendeu uma porrada de poemas. Voltarei a esse livro.
A estátua do bandeirante Manuel Borba Gato é incendiada em São Paulo. Fonte: G1
A segunda imagem que vem à cabeça, é a de um título de livro, desses que estão sendo lançados ao longo da pandemia aos montes, pelas pequenas editoras de poesia, e que antes de qualquer análise de crivo literário, já me excita a proposta: há muita gente querendo dizer, há muita gente ainda em torno do poema. Enfim. O que de fato mais me chamou atenção, é que esse livro de poemas, que ainda não li, e pelo que vi, é da autora Judite Canha Fernandes, tem esse título: O mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas. Pois bem.
Você tinha me convocado em relação ao trabalho de campo que realizo com a minha molecada na “Pequena África”, sobre a questão de um tom mais laudatório, elegíaco até, em relação à memória negra. E não tenha dúvidas que isso se dá: afinal a minha paixão primeira, e o que fez escolher esse espaço como fundamental para as aulas, é não só a admiração do que o entorno resguarda, mas a manutenção dessa egrégora até hoje na zona portuária do Rio.
A questão principal é que meu aluno não é bobo, todos eles vivem, e mais do que nós, eles nasceram e foram instruídos, em um mundo cínico das redes, em que o famoso “biscoito” já foi plenamente entendido em seu capital político e jogo de culpa. Daí que isso de um lado, amenize as perseguições em sala de aula (mas não as tensões). Não estamos falando de uma realidade tão frontal: em que há quase um apartheid na sala e os alunos brancos não conversam com os alunos negros; é exatamente sobre esse nosso cinismo, sobre essa capacidade sutil e múltipla do nosso racismo ir se edificando, que estamos aqui nessa correspondência. Todos eles escutam o Mano Brown, chamam uns aos outros de "nigga”, apropriam-se da postura, das gírias, da lógica de vida dos rappers negros, por exemplo. Todos eles cantam a plenos pulmões Negro Drama dos Racionais. Mas eles acham que um 2Pac é uma bela camisa, não uma metralhadora negra em estado de raiva. A estética comove, o discurso comove, o “faz bem ser do bem” comove, mas não há o ato. A roda da repetição se mantém sob outras chaves. Então, por exemplo, com toda essa apropriação, eles não se perguntam porque numa escola com a mensalidade que gira em torno de cinco mil reais, não há nenhum aluno negro em sala. Quando há, existe uma bajulação tão constrangera, que me assusta que isso se manifeste nele tão novos. Ou seja, tem uma culpa que já grita. Ela é fruto da massificação desse discurso? Sim. Mas enquanto essa construção for sob a falsa égide de “somos todos iguais e somos todos brasileiros”, essa pactuação continuará sob uma teia perversa, repetitiva, conservadora. Isso quer dizer que devemos partir para uma guerra civil? Já estamos, primeiro; e depois, politicamente só me comprometo com o que me sinto plenamente capaz. Pegar em armas não parece a solução na guerra dos drones e nem contra uma parte do Exército brasileiro (que como vimos em cartas anteriores nesta correspondência, é parte integrante do bolsonarismo e artificie de uma república conservadora). A História, amigo, essa com H maiúsculo (entregando em si esse sintoma fálico), é uma teia de dura trama, é preciso, como historiador, mas sobretudo como poeta, achar o ponto em que se sangra. Nos meus alunos, a empatia.
Daí que seja muito importante usar esse espaço de contaminação, entre o poeta e o historiador, como uma verdadeira arma. Ao passo que o professor de História edifica, persuade e conduz à cena; e o poeta, de aparição oportuna, instaurando a crise desses significantes: seja o ponto de derrisão dessa narrativa ostensiva.
Não há uma aula que eu não leia um poema.
Derrisão, para que não pareça aqui um conceito perdido, para além do que o dicionário limita enquanto um gesto de menosprezo, de sarcasmo, de um riso raso e zombeteiro, devemos entender como potência derrisiva do discurso, aquilo que se tratando de um discurso-edifício que conduz a confiança de nossa voz, nossa cor, nossa identidade, aposta nessa arma que engasga contra si, nesse discurso todo furado, nessa confissão cáustica de uma identidade, que até para estar ali enunciada, ela se dá sobre uma série de silêncios-túmulo. Dar a mão os nossos mortos, e aqui nesse contexto é ainda mais profundo, porque são os mortos que ainda matamos, é investir nesse futuro que caminha olhando para trás. Tem culpa, tem remorso, tem escuridão, solidão, falência de noção coletiva? Claro. E nisso, mesmo o tarô resguarda sua potência: o detentor da mensagem, o velho sábio, o único dos arcanos que olha para trás, e por isso está só, e por isso cabisbaixo, mas ainda assim dono de sua lamparina: é o Eremita. A vida é dura, senador. Não é o valor da comunhão, neste mundo posto, que definirá a aposta do poeta ou do historiador. Para a excelência de seus serviços, devem permanecer o inimigo semiótico dessa guerra.
Por isso, volto ao livro dos tais poemas que o Brasil andou me deixando escrever. Tudo isso nos atravessa: o futuro está em crise porque ferimos a nossa noção de futuro (“ferir o futuro é não parar de ferir o futuro”, lembra?). Isso é pesado: todo e qualquer projeto está em suspensão, porque a nossa narrativa se perde para onde se desdobrar, já nos parece turvo demais o horizonte possível. Como um contra Eremita, ou como quem varre a contrapelo buscando a falha primordial daquela tessitura, imediatamente após ver a imagem do Borba Gato queimando, passando Djonga na caixa, pensando na liderança do Paulo Galo naquele processo, lendo Benjamin, e solto em toda essa nossa contradição, eu pensei que se desse um nome para esse livro, seria “Deslembrar”. No infinitivo, na ação, no cerne do verbo mesmo. Como uma convocação, uma estratégia de apagamento solar. Como se deslembrar fosse mais forte do que esquecer, porque não se trata só de apagar, mas de entender os mecanismos de apagamento, aludir à uma urgência de um presente tão conflituoso, que só nos restasse refundar. Mas não partimos do zero, e se o capitalismo é difícil por não sabermos os sítios onde pôr as bombas, ao menos desarmar as postas. Borba Gato queima, um entregador de aplicativo lidera, e mesmo essa correspondência, sabemos ser bem mais do que onde nos esperavam. Era sempre 11 contra 11, lembra? Não estamos fora do jogo, mas há uma suspensão de sua naturalidade, que já é toda uma ofensa à regra. Aposta no gol contra, mano. A arma branca engasgando, já abre o tempo da reflexão.
Para fechar, como as aulas e a nossa praxe, te mando um dos poemas inéditos desse futuro (ainda, e sempre, especulativo) “Deslembrar”:
veja você onde chegam os oligopólios[1]
a paixão das segundas-feiras:
dosar as drogas, evitar os
noticiários e as videochamadas
enquanto o tempo acende um pavio
de cólera
nas chuvas e
nas classes;
sei que existe um tremor
na mão aflita, e ela
jamais psicografa, se não
essa urgência dos que farejam
as naftalinas da culpa e o neon-frio
que não amenizam os dias sinceros
com seu cheiro de dispêndio queimado.
(a mão treme entre Jack London & A CLT)
os exilados do Parque União
dão templo ao viaduto e puxam
o carnaval & a fila-do-crack
tem mais crédulos que a fila-do-pão:
vi um profeta na chama da língua
testemunhar seu fogo perdido.
é entre bichos que a flor se justifica;
qual dose tem teu agora?
que filtro te ensurdece?
qual begônia te distrai a fronteira?
(na praça do comércio
de teus afetos,
qual concessão
à boca fascista?)
qual languidez de amor
dá unidade ao matrimônio
após a Tok&Stok?
qual boleto mais pesa na ruína?
sei contar os corpos.
quem sobrevive pouco se apaixona
(veja você onde chegam os oligopólios!)
o amor desce
na alta do dólar.
e você, baby,
finalmente soube da margarina?
Rio de Janeiro, 29 de julho de 2021
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[1] Poema inédito de Flávio Morgado
THIAGO OLIVEIRA VIEIRA é psicólogo formado pela UnB, psicanalista lacaniano atuante em consultório, acompanhamento terapêutico e na rede Emancipa, movimento de educação popular.
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