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Foto do escritora palavra solta

ARRIBA DO CHÃO: a imaginação material de David Almeida

por Pollyana Quintella



Três árvores, 2021



Orbitando os problemas concernentes à paisagem, a produção de David Almeida perpassa soluções diversas – do grande ao pequeno formato; da pintura sobre linho, algodão e madeira às gravuras e às cerâmicas sulcadas. Em todas elas, a paisagem se forja no limite da significação; a imagem é um por vir nunca plenamente estabelecido, mas em contínua transformação diante dos olhos.


Suas pinturas nos convidam a transitar por distintas geografias, entre o ateliê e o mundo. Reserva biológica de Contagem, Chapada dos Veadeiros, Ubatuba e Cidade Tiradentes, por exemplo, são alguns dos lugares visitados pelo artista que renderam obras en plein air, no limiar entre a paisagem romântica da viagem e o confronto direto com o mundo material. Em alguns casos, como nas pinturas preparadas com bolo armênio, a vermelhidão e as altas temperaturas do sertão e do cerrado cearenses, bem como as asperezas do agreste (que habitam o imaginário do artista devido aos seus vínculos familiares na região), encontram os ecos do Courbet das grutas de Franche-Comté e das praias da Normandia. Mas há outras filiações possíveis: Francisco Rebolo, Lore Koch, Amadeo Lorenzato, Miguel Bakun, todos eles interessados, de diferentes modos, na elaboração de um espaço quase sem profundidade e pontos de fuga, construído na tensão com a corporeidade da tinta e da pincelada.



Cercado, 2021



As pinturas en plein air devem ser vistas junto às paisagens criadas mediante o manejo da própria matéria pictórica, sem referencial externo além do imbricamento íntimo entre memória e imaginação. Ao confrontar o conjunto, torna-se quase impossível diferenciar o que foi feito ao ar livre e o que foi gestado no ateliê, e isso pouco interessa. Como disse outrora Merleau-Ponty, "Nada muda se ele [o pintor] não pinta a partir do motivo: ele pinta, em todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos uma vez, gravou dentro dele as cifras do visível".


Para compor o seu visível, o encontro com a paisagem também é irrigado por provocações literárias e recorrências contínuas à memória. Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa são algumas das incontornáveis vozes que alimentam o imaginário sertanejo do artista, todos eles dedicados a inscrever (e inventar) um sertão repleto de investimento visual. No confronto com a ficção, a pintura amplia seu caráter propositivo, reforçando a paisagem não como um dado a priori, mas território de disputa entre os âmbitos individuais e coletivos. Partimos do pressuposto de que toda paisagem é produção social, construção subjetiva e territorialidade simbólica e, portanto, refletir sobre o ambiente que nos circunda é sobretudo dedicar-se a compreender nossos modos de ver. Em 1945, ao escrever sobre seu passado afetivo, Graciliano Ramos explicitava as negociações entre memória e ficção na construção da imagem de um lugar nessa bela passagem:


"Desse antigo verão que me alterou a vida restam ligeiros traços apenas. E nem deles posso afirmar que efetivamente me recorde. O hábito me leva a criar um ambiente, imaginar factos, a que atribuo realidade. Sem dúvida as árvores se despojaram e enegreceram, o açude estancou, as porteiras dos currais se abriram, inúteis. É sempre assim. Contudo ignoro que as plantas murchas e negras foram vistas nessa época ou em secas posteriores, e guardo na memória um açude cheio, coberto de aves brancas e de flores. (...) Certas coisas existem por derivação e associação; repetem-se; impõem-se -- e, em letra de fôrma, tomam consistência, ganham raízes. Dificilmente pintaríamos um verão nordestino em que os ramos não estivessem pretos e as cacimbas vazias. Reunimos elementos considerados indispensáveis, jogamos com eles, e se desprezamos alguns, o quadro parece incompleto."[1]


Tal qual o relato pictórico de Ramos, a memória nubla as distâncias entre passado e presente na medida que modifica e ressignifica as experiências de outrora, bem como afeta a construção da percepção, algo que também se expressa na pintura. Almeida não apenas pinta aquilo que vê, mas sobretudo o que revê e o que transvê; aquilo que rememora, imagina e fabula no espaço entre a mão e o olho. E, para tanto, será preciso reivindicar memória e imaginação como instâncias indissociáveis. Sabe-se que é difícil imaginar sem mergulhar, com mais ou menos intenção, nas gavetas do passado. Imaginar (isto é, expandir os horizontes negociáveis do possível) implica engajar-se com nossas próprias experiências e repertórios constituídos. Mas também não é possível lembrar sem uma dose de fabulação. Como diria Waly Salomão, a memória “é uma ilha de edição". Almeida imagina a terra de sua mãe, por exemplo, mas está fadado a construir sempre um outro lugar. Aliás, é justamente o "outro" do lugar que lhe cabe no exercício da pintura, como se fosse possível esticar um pouco mais o horizonte.


Nesse jogo essencialmente temporal entre ver e lembrar, inventar e nublar, percorremos os mais variados estímulos. Ali, entre algumas pinturas, a terra abrasada eleva o termômetro da imagem para as altas temperaturas; faz sentir o calor subindo pelos calcanhares, arriba do chão. Logo mais adiante, a vegetação verde e densa reconduz o percurso à umidade -- lembra veludo fresco. Uma água fina escorre sobre o rochedo, cintilante. Sua transparência se contrasta com a rijeza das pedras mas, tal qual ensina Guignard, a imagem desmancha diante dos olhos. Rocha e queda d'água são um só resto de lembrança, elementos de uma mesma atmosfera vaporosa. Galhos tombados em arco (que se exibem ao pintor como quem o desafia) são ponto de partida para experimentar gracejos plásticos garantidos por pinceladas retorcidas que não querem se esconder. Quente, frio, seco, úmido, verdejante, abrasivo: esta é uma geografia impossível. É o tal outro do lugar, talvez o avesso da paisagem.


E se a geografia fascina, é preciso ter cuidado para trabalhar o motivo sem abandonar sua rusticidade -- o caráter tortuoso que vem rememorar o fato de que esse não é um mundo-ninho, de natureza idílica ou pitoresca, pronta a nos abrigar e acolher, mas um mundo necessariamente em tensão, um mundo-problema a espera de que o pintor o rearranje, não para consertá-lo, mas para dar a ver o espaço entre nós e o que nós vemos. Por isso, vez ou outra, Almeida também opta por pintar como quem esculpe -- sulca, talha, modela, risca. São seus modos de jogar com os limites da representação para aproximar-se do cerne da matéria. Nas cerâmicas, por exemplo, tal procedimento é radicalizado para produzir um encontro íntimo com a terra, o que faz o assunto e seu suporte convergirem. As paisagens rudimentares ali sugeridas (por vezes lembrando ícones e oratórios religiosos, ou louças primitivas), se forjam sobre a própria base mineral, o que fortalece o estado de "coisa" da pintura encarnada do artista. Elas são expostas deslocadas da parede e erguidas como totens que habitam o limiar entre a pintura e a escultura. Logo, porém, tomamos também a via inversa. De volta à pintura, há exemplos de planificação drástica, quando o artista suprime os pontos de fuga, diminui o céu, alarga o chão, para depois avançar um pouco mais. Trata-se do ir e vir constante de quem precisa desconfiar do seu próprio músculo da visão.


A curiosidade geológica e o fascínio por relevos, texturas e uma diversidade de formas naturais, intimamente ligados ao gosto pela experimentação pictórica, também dá lugar ao anseio por produzir formas simbólicas de contornos mais definidos. É o caso das pinturinhas que lembram fragmentos de azulejos decorativos de motivos florais ou padronagens abstratas, como se nos transportassem para um interior doméstico anacrônico, em ruínas. Não falamos apenas de uma geografia impossível, mas também de uma certa suspensão temporal, de difícil localização. Algo nessa direção pode ser experimentado com as pinturas de grande formato, de aspecto mais vaporoso, metafísico e espiritual. Se as cerâmicas e as obras menores estão mais próximas da densidade da terra batida e das paisagens regionais, as maiores condensam horizontes no limite da abstração, com pinceladas mais homogêneas e comportadas e contornos sintéticos que produzem forte apelo onírico.


Eis uma produção que não busca responder ao calor dos acontecimentos (nada interessada num presentismo encerrado no aqui-e-no-agora), contrariamente, o que se costura é uma outra temporalidade, mais dedicada a lidar com o presente enquanto condição extemporânea. Ecos do passado e rumores do futuro se condensam nessas obras, talvez por isso elas nos transportem para tantas direções. As paisagens de David Almeida são fruto de uma imaginação material comprometida com o desenvolvimento de sua própria linguagem: gestam seu próprio tempo e seu próprio lugar.




Céu para Pedro, 2021




Obs.: "Arriba", expressão muito comum no Ceará, vem de "riba", ou "ribeirinho", e refere-se à margem do rio. Quando se diz riba, quer-se dizer em cima, em cima do ponto alto do rio, de uma margem alta. Arribar é levantar, subir, ir em direção à parte alta, mas sempre a partir de uma relação com o chão.

[1] RAMOS, Graciliano. Infância: memórias. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, p.22

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