por Aldones Nino
Igreja de San Martín construída entre os séculos XII e XVIII e declarada monumento nacional desde 4 de junho de 1931. Fotografia: Roberto Ruiz.
Vista da exposição: A história entre a persistência e a crítica. Fotografia: Roberto Ruiz.
Às vezes me pergunto sobre o que poderia ser uma curadoria decolonial, alargando a questão sobre a possibilidade de uma historiografia decolonial. Buscando assim reconhecer as contradições e limitações que podem envolver essa questão. Mas ainda que sem encontrar conclusões, reconheço a potência da adoção de uma postura anti-hegemônica como gênese da criação e elaboração de um trabalho artístico ou curatorial. Considero que os curadores criam mais do que exposições, atuam em defesa da prática artística e constroem infraestruturas essenciais, atuando em espaços e instituições artísticas, assumindo assim uma posição, capaz de impactar o campo artístico e as comunidades que estão inseridos. Interessa-me principalmente pensar a relação entre propostas curatoriais, programas públicos e reflexões em relação às dinâmicas que envolvem Brasil e Europa.
Dia 05 de fevereiro encerrou-se a exposição Diálogo I: A história entre a persistência e a crítica (27.10.2022 – 05.02.2023), meu primeiro projeto curatorial realizado junto à coleção de Collegium, e que teve lugar na igreja de San Martin, atual sede de Collegium em Arévalo (Espanha). Estar a frente deste projeto nos últimos dois anos tem resultado em uma grande possibilidade de aprendizado, não apenas pela relação estabelecida entre as quase mil obras que compõem esta coleção, mas também pelo interessante contexto palco do desenvolvimento de projetos curatoriais em um entorno rural, em uma vila com pouco mais de 8 mil habitantes.
O programa curatorial de Collegium prevê duas exposições ao ano, no primeiro semestre inaugura-se o primeiro projeto do calendário anual (fevereiro), que em 2022 foi Sustancia – SUSTANCIAS (22.02 – 02.10.2022) curada por Patrick Charpenel e em 2023 acabamos de inaugurar ¡Doblad mis amores! (21.02.2023 – 03.09.2023) curada por Chus Martinez. Sendo eu responsável pela execução de ambos os projetos, os quais me ensinaram muito sobre a prática curatorial e sobre as possibilidades de articulação entre obras, artistas e contextos. Nesta programação, no segundo semestre inauguramos uma exposição curada por mim, elaborada a partir do diálogo entre a coleção do Collegium e outras coleções colaboradoras. Na primeira edição contamos com empréstimos do Museu de Arte Contemporáneo de Castilla y León (MUSAC) e do Centro de Arte 2 de Mayo (CA2M) e de galerias. Atualmente estamos trabalhando na segunda edição de Diálogos, mas meu interesse agora é compartilhar algumas impressões da primeira edição.
A exposição foi articulada partindo de três eixos centrais, que se complementam mutuamente: 1) Formas de entender a história; 2) Processos educativos; 3) Crença e presente. Não à toa esses caminhos foram escolhidos, já que meu interesse foi pautado pela proposição de um tríplice modo de aproximação com a arte contemporânea, a partir da poética de artistas que tensionam essas linhas de modo a desarticular o tradicional entendimento disso. Qual seria a justificativa para seguir esses três caminhos?
Como historiador da arte não poderia deixar de problematizar o grande complexo que resulta de uma fratura que aflige todas as instituições museais, que desde a década de 1980 tem sua segurança ontológica desestabilizada (até mesmo antes disso). É curioso pensar no tempo de assimilação das teorias, pois quase meio século após publicações amplamente debatidas, estamos assimilando de maneira mais atenta escritos de Douglas Crimp, Hans Belting e Arthur Danto. Historicamente os museus são instituições que asseguram, preservam, mantêm, dão continuidade, solidificam histórias, produções e narrativas. Porém a museologia contemporânea já não dá continuidade a esta perspectiva, e há décadas os museus vêm se convertendo em espaços de crítica, questionamento, de ruptura e revisão histórica. Eu uso a palavra revisão sem medo, ainda que saiba que muitos preferem não as utilizar, mas me pergunto, qual problema de revisar? Desde os antigos concílios a própria bíblia era revisada de tempos em tempos, nossa história e as formas como ela foi narrada certamente também podem ser questionadas. E toda essa revisão se deve ao fato de uma crítica a metodologias, que anteriormente vistas como universais, começaram a ser entendidas como socialmente marcadas. Estudiosos se dedicam a criar metodologias sempre neutras e menos passível de críticas, mas felizmente isso hoje é impensável, pois não se pode parar a demarcação de brechas e fissuras no que anteriormente era tido como inquestionável.
Arévalo é uma cidade marcada pelas histórias de personagens que ali passaram parte de sua vida. Podemos destacar Isabel a Católica (poderia chamá-la de Isabel de Castilla ou Isabel I, mas adoro esse complemento “A Católica”, pois isso diz muito sobre tudo associado ao seu legado); outro personagem central é São Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, companhia responsável pelo primeiro empreendimento global de inserção e doutrinação de pensamento (ao menos o primeiro que obteve sucesso e amplo alcance). Sem julgamentos de posturas (por hora), não podemos negar que essas duas pessoas influenciaram de modo direto o nosso presente. Deram início a movimentos que até o dia de hoje não pararam, somando-se a ratificação do tratado de Tordesilhas, neste mesmo entorno. Elementos que demarcam dinâmicas que afetam não apenas a minha vida, mas certamente de todos que podem ler este texto. Não podemos compartilhar o mesmo espaço tempo e sair ilesos das heranças da colonialidade gestadas entre os séculos XV e XVI.
Quase todas as pessoas que ali vivem, sentem orgulho dessas histórias, desses grandes empreendimentos que atravessam séculos de influência planetária. Todo o continente americano e a Europa tiveram ali a gestação de suas relações, e por conseguinte, os outros continentes não saíram ilesos desse complexo jogo de poder. Autores como Aníbal Quijano, Immanuel Wallerstein, Jota Mombaça, Denise Ferreira da Silva e Catherine Walsh entre muitos outros abordam com genialidade este tema.
Pieter Hugo, Mainassara, Ogere-Remo, Nigéria (2007); Marcela Cantuária, La invocación del pasado a la velocidad del ahora (2022); e Mariana Tellería, Máquina del tiempo lenta (2015).
A ideia inicial foi trazer artistas que apresentavam perspectivas outras foi fundamental para trabalhar o modo como a arte contemporânea alarga as vias de compreensão de nosso mundo. Pois acredito que um museu (ainda que em projeto), deveria ter como um de seus norteadores essas questões. E nesse sentido o diálogo entre as obras presentes indicavam por múltiplas vias poéticas esse debate. As pessoas que foram afetadas por estas obras, compartilham suas impressões e pensamentos, tomando forma a partir destes encontros comigo ou com outros membros da equipe. O diálogo mais do que ser realizado entre as obras e as coleções presentes, se desenvolvia entre cada uma das obras e pessoas que por ali passavam. Distinto do modo como visita-se exposições em grandes centros, as obras dispostas na igreja de San Martin recebiam uma atenção redobrada. Pontuo os seguintes motivos: 1) para os vizinhos de Arévalo esse novo projeto cultural tem revelado-se como uma interessante oportunidade de acesso à cultura e ao lazer, e muitas vezes constitui-se como o primeiro contato de muitos com a produção contemporânea, assim aguçando a curiosidade sobre a localização dessas materialidades neste espaço; 2) grande parte do público especializado, desloca-se desde outras cidades, um grande número de pessoas vem de Madrid por exemplo; e isso faz com que uma visita a exposição não seja uma programação entre outras, pois a exclusividade desta visita, considerando as temporalidades contemporâneas é algo não usual, pois o deslocamento tem como fim visitar a exposição. Diferenciando-se de uma tarde de visitas em museus e galerias, privilegiando-nos com horas dedicadas a esta exposição e a cidade de Arévalo. Assim, grande parte dos 26 mil visitantes que passaram ali em nosso primeiro ano de atividades nos dedicou uma atenção que se distingue de muitos espaços expositivos. E certamente isso possibilitou uma maior atenção e escuta as obras ali dispostas.
Daniela Ortiz, ABC de la Europa racista (2017).
Nesse aspecto, as formas de entender a história em primeira instância pretendem captar um outro tipo de escuta, um modelo mais lento e atento frente ao imediatismo de grandes centros urbanos. A paisagem e o contexto rural, alargam as vias de compreensão e convidam ao diálogo de maneiras distintas, pois reivindica a paisagem do entorno. Geralmente as visitas são seguidas por uma aventura sobre suas pequenas ruas medievais em busca da saciedade, pois a média de uma hora de deslocamento para chegada, somada a uma hora de retorno, faz com que a experiência solicite ser completada com alimento. Quem vai a Arévalo não sai apenas com as imagens das obras em sua mente, mas com um sabor em sua boca, muitas vezes com o cheiro dos assados impregnado em suas roupas (ainda que não gostem em muitos restaurantes não há escolha hahaha).
Os processos educativos são evocados, não apenas pelo nome Collegium, que resulta do fato do eixo central do projeto arquitetônico do futuro museu ser um dos primeiros colégios jesuítas a serem fundados, mas também pela responsabilidade educativa de posicionamento das obras nesse contexto. Como já comentei anteriormente, existe uma missão dentro destas exposições, pois posso falar por experiência própria que a arte contemporânea se apresenta como possibilidade de fruição para públicos muitos específicos e com claras demarcações geográficas e econômicas. Ainda que seja latino americano me aproximo dos arevalenses pelo distanciamento conjectural de exposições de arte contemporânea. Se não fosse resultado de meu percurso acadêmico começado em 2009, possivelmente não me conectaria com nenhuma exposição de arte contemporânea. Então, ser parte desta programação me leva a refletir sobre os variados modos como posso contribuir com essa comunidade.
Heritage Studies #12 (2011) deIman Issa eZhang Huan junto ao batistério de meados do século XV e pia batismau de Bernabé de Salinas (c.1647).
Resultado da espetacularização dos meios de comunicação, e da atenção dada às cifras do mercado de arte e das feiras, já escutei pessoas informarem no primeiro momento que entravam no espaço expositivo: - Eu não gosto de arte contemporânea! De maneira gratuita, como se fosse um bom dia dirigido a minha pessoa. Para mim esse exercício de recusa é um reflexo da incomunicabilidade de instituições e artistas com o “mundo real”, mundo este compartilhado por trabalhadores do campo, donas de casa, carpinteiros, faxineiras, contexto que muito se aproxima da periferia de São Paulo onde cresci, e que já me levou ao compartilhamento de todos esses juízos pré-concebidos sobre o que é o mundo da arte, para além da falácia da genialidade que ocupa as paredes dos museus de belas artes e da qual não questionamos o status artístico de uma materialidade posta em cena. Então diante da recusa inicial eu busco iniciar uma conversa, perguntando: - O que houve? O que a arte contemporânea te fez? Vamos conversar, talvez alguma obra tenha algo a oferecer a ti.
Logo um sorriso encabulado diante de uma não justificativa de legitimação artística, abre uma possibilidade de encontro. E caminhando por entre as obras em uma conversa muito sincera, alcança ao final uma postura de interesse diante da reflexão proposta pelo projeto ou por algumas obras presentes. Quem chegava bradando que não gostava de arte contemporânea, logo retornava uma e outra vez, buscando dialogar com o que ali se apresentava. E podendo sentir-se livre para continuar nao gostando, mas ao menos não evitando o contato. Não fechando a possibilidade de comunicação. Dentro de uma ideia pré-concebida, muitos pensavam que deveriam entrar apenas para apreciar tudo que estava presente, e diante da recusa de uma ou outra produção, poder afirmar que está tudo bem. Às vezes podemos assistir um filme que não nos agrada, e nem por isso deixamos de gostar de filmes, às vezes uma comida pode ser indigesta, mas nem por isso deixamos de apreciar uma boa comida.
E ladrilho a ladrilho esta relação está sendo construída nesta pequena vila. Estabelecendo assim pontes comunicacionais, em conversas que não precisam necessariamente girar em torno das obras, mas pode enfocar-se em um joelho operado recentemente, um marido enfermo que está em casa ou um filho que foi para a universidade e não retorna além dos feriados.
Vídeo de Sigalit Landau, Barbed Hula (2000).
Artistas participantes da exposição: Ai Weiwei, Mercedes Azpilicueta, Yto Barrada, Tim Berresheim, Marcela Cantuária, Patty Chang, Petrit Halilaj, Zhang Huan, Pieter Hugo, Iman Issa, Regina José Galindo, Alicja Kwade, Sigalit Landau, Louise Lawler, Gonzalo Lebrija, Glenda León, Ibrahim Mahama, Cinthia Marcelle, Carlos Martiel, Aleksandra Mir, Odires Mlászho, Daniela Ortíz, Tatiana Parcero, Pratchaya Phinthong, Walid Raad, Mariana Tellería, Rubén Torres Llorca, Nasan Tur y Danh Vō.
Fotos: Roberto Ruiz