por Flávio Morgado
São muitas as maneiras de se narrar uma história. Sobretudo de um bairro que elegemos como berço. Poderia partir das lembranças sensíveis das mudanças estruturais que a minha avó gosta de ter acompanhado em seus mais de cinquenta anos de subúrbio carioca. As reclamações incansáveis da minha mãe, as frestas sentimentais abertas pelas memórias dos jogos de rua e namoro do meu pai. Mas à terceira geração foi legada a solidão da crise, a inadequação de uma zona de êxtase de gargalhadas de AKs-47 e disputas de poder por criminosos locais. Como se fosse possível fotografar o fractal de um miasma, meu bairro, com todas as benesses e mau remédios que suas esquinas me deram, é o retrato do ovo da serpente. Para entender a letalidade do veneno, esse testemunho cruzado.
O subúrbio, ao menos de primeira, quase nunca é um lugar que é eleito, mas o que sobra, o que dá. E nesse bairro, apesar de sua remanescente arquitetura de bangalôs e rara elegância proposta pela Companhia Kosmos (a construtora do bairro no início da construção do subúrbio como forma de desanuviar e gentrificar o centro da cidade), seu grande crescimento populacional se deu entre as décadas de 50 e 80, com a ocupação de trabalhadores da antiga Rede Ferroviária do Rio de Janeiro. Funcionários públicos do baixo escalão, operários da máquina pública, que começavam a construir ou comprar seus primeiros lotes no bairro.
Estação de Bras de Pina em1930, e rua Santo Antonio com as casinhas, das quais resta intacta pelo menos uma em 2015 (O Cruzeiro, 5/6/1930).
Como o andar da História, e nossas oscilações econômicas, a Rede Ferroviária é desmontada, forçando em meados da década de 90 a uma série de demissões voluntárias e à reorganização da antiga estatal e mais nova concessão de transporte público à iniciativa privada, a SuperVia: vimos os trilhos da orfandade. Instaura-se um novo vazio de expectativas e um novo contorno social ao bairro: quem era arrimo de família e fez poucas economias, mantém-se arrimo, a estrutura se aperta, se espreme, os rearranjos familiares sustentam uma casa de seis, oito integrantes. Quem fez alguma economia ou pegou uma parca indenização com a demissão voluntária, compra pequenos lotes ou investe na construção de uma casa em cima da sua, o poder aquisitivo do bairro tem uma queda considerável com a crise estrutural causada pela privatização, esses novos senhorios se veem obrigados a alugar esses espaços recém-construídos a pessoas de renda ainda mais baixa, compatível com a distância e o acesso proposto ao bairro em relação ao centro financeiro, comercial e cultural da cidade. O bairro incha de um operariado desnorteado. Os que fizeram algum planejamento familiar e salvaram boas economias, passam a ser os responsáveis pela “retomada” do bairro, são os novos empreendedores, donos dos bares que se inauguram nos quintais, nas principais avenidas do bairro, bar-porta, bar-janela, sinuca na varanda do Freitas, a cerveja premiada que gela na cozinha do Américo. Público e privado se confundem como uma concessão dura à sobrevivência.
Os anos se passam como um desafio à dignidade. Refém de políticos locais e reformas paliativas em ano eleitoral, o bairro ainda vê o crescimento vertiginoso de comunidades ao seu redor. Comunidades que crescem com a agilidade e o improviso que a urgência dessa desigualdade abissal impõe. Comunidades horizontais, os famosos conjuntos habitacionais, que são criados para amenizar a contradição e especular o IPTU do Leblon e da Lagoa. (Lembram do episódio do incêndio “misterioso” na antiga Favela do Pinto, que ocupava o principal ponto turístico da cidade, a Lagoa Rodrigo de Freitas? Os moradores que restaram após a destruição foram todos direcionados a conjuntos construídos no subúrbio: a bruta política da remoção).
O início dos anos 2000 é contraditório. De um lado, a escalada assustadora de violência de uma geração do tráfico que deixou de cabelo em pé o mais antigo fundador de facção. Elias Maluco e sua gangue, o assassinato brutal do jornalista Tim Lopes, as guerras infrutíferas e ritualísticas das facções criminosas. Um novo léxico, novas fronteiras: quem é de área do CV não fala “é nós que tá” (que é saudação do TC), tem que dizer “é nós” e a saudação é sempre representando um “V” com os dedos. Nas escolas, as disputas passam a ser em torno das gírias, dos novos heróis, das histórias de confronto, do perrengue, do Fulaninho que “porra, sentaram o dedo, né”. “Sou do bonde do Chucky, sou dos Queima-Ladrão”, a nova cosmogonia da violência passa a cantar.
Muros pichados com ameaças de facções criminosas (FOTO: Reprodução TV Jangadeiro)
Por outro, uma retomada econômica. Governo Lula, oitava economia, dólar baixo, falsificação de segunda linha, “camarada meu que atravessa uns tênis maneiros”, maquininha de cartão, Freitas aceitando débito, Américo pegando empréstimo no SEBRAE, os gêmeos do salão mudando a fachada pra “Coiffeur” e um novo respiro.
Outra marca fundamental dessa época e assinatura de uma estética suburbana: o self-service de açaí. Açaí com jujuba, paçoca, leite ninho, nescau ball, aceita débito, tem de balde, pode botar cobertura no meio e fim. Febre no Ensino Fundamental e Médio de qualquer escola suburbana, o ponto de encontro, o criador da ágora. E é aí que entra um dos personagens* que dão sentido a esse rolé.
Artuzinho era o que a gente chama de “fodido sustenido”. O malandro que tropeça em Brás de Pina e cai na Vila da Penha (como tem o cara da Taquara que acha que é da Barra, e eu não sei o que é pior). Estudou nas escolas particulares do bairro, Coelhinho Feliz, merendeira com Pitchula, bem alimentado, não sabe jogar bola, é o dono da bola. Cresceu nos condomínios de baixa gentrificação, conviveu no conceito play. Filho de um militar aposentado, gente que fura a bola que cai no quintal e assedia a diarista, Artuzinho dava seu rolé na adolescência no carro que o pai deu, meteu luz neon no chassi, “chão de ônibus”, escutava Ja Rule com equipamento de som no talo, passava gel no cabelo e perfume Kayak. Cursou Administração na Estácio do Shopping, leu “Pai rico, pai pobre”, começou a namorar uma menina da Freguesia e convenceu o pai que era hora de empreender. Chegou com sócio, maquininha e ideia: um point, um spot, investimento baixo. Liquidificador, dois funcionários, algumas idas ao Mercadão e ficava pronto o “Artuzinho, o rei do açaí”, em um trailer com sua foto (de camisa apertada, cordão com dois dedos de grossura de prata e corte de cabelo do Gusttavo Lima) na principal avenida do bairro.
O bote foi certo, o momento era bom, o negócio prosperou. A gourmetização do serviço, com uniforme, entrega, slogan, rede social, logo chamou a atenção da molecada e virou coluna social a novo moto do Artuzinho, a nova namorada, onde seria a nova filial. Só que chamou cliente, também chamou ladrão. Nos becos, os cálculos: quanto vale o liquidificador? Ele passa quantas vezes na loja para pegar o malote? Que horas fecha? Na surdina, a rataria já se engendrava e instaurava a insegurança no ar.
E é nessa fissura que uma coisa não pode deixar de ser explicada. Ponto fundamental dessa narrativa: no subúrbio, não existe sujeito bobo que não enriqueça e logo se cerque de uns malandros de confiança. Essa relação é fundamental. Primeiro, porque não há o pulo lógico do menino mimado para o dono das quebradas, essa trajetória se constrói na base do poder econômico, mas precisa se espraiar até o mínimo controle da coerção, até porque não seria possível ter um alto poder de aquisição, como por exemplo uma moto de 50 conto, no bairro com o maior índice de roubo de automóveis. Resumindo, não existe playboy suburbano que não tenha um “chegado” na polícia. “Mermão, sargentinho veio me pedir documento na Brasil, já liguei pro Rogerinho, maluco quase me bateu continência!”, é como se gabam. São seus lacaios, capitães-do-mato.
Rogerinho era moleque bom. Filho da costureira da Imperatriz, cresceu no corre, fez escola pública, não fumou maconha, namorava a menina da Igreja, completava bem na pelada de sexta, curtia o seu pagode e depois de dois anos no PQD, resolveu se alistar na PM. Vinte e seis anos, cabo, salário de dois conto e meio, duas filhas pequenas, amante e o Corsa já deixando na mão. Cai num batalhão corrupto.
Apesar da surreal disparidade de investimento na segurança pública em relação à educação, a Polícia Militar do Rio de Janeiro tem um salário humilhante, um contingente massivo de negros e pardos que diariamente se colocam sob a autonomização da linha de frente, do direito de matar (e morrer) em nome de uma guerra sem expectativas de fim e televisionada num gesto que mistura a criação perversa da narrativa pobreza-negritude-periferia-violência e a sessão diária de genocídio pobre. Os policiais militares são submetidos a jornadas de trabalho bizarras à legislação trabalhista, não estão submetidos à legislação trabalhista, não podem se sindicalizar, não podem fazer greve, não podem questionar as suas condições de trabalho. E a ocasião, sempre empurra ao improviso.
Tomava seu açaí toda sexta e um dia Artuzinho fez a proposta: quatro pau pra fazer a segurança patrimonial. Já tinha conversado com o vereador local, que meteu uma guarita, e dois homens revezando o turno da noite, armados, resolveriam a insegurança do point. A Constituição não permite desvios de função de funcionários do Estado, mas a brecha era melhor do que pegar o arrego do tráfico. Era só fechar com um camarada do Batalhão o racha do serviço e todo mundo saia ganhando.
Foram dois anos assim. Sossegado. Vez ou outra um baculejo num bêbado da madrugada, uma aproximação ostensiva a um morador de rua, um tapa num mão-leve. Até que o cerco tinha se fechado nas disputas pelos morros locais. Trocou a facção e uma nova molecada vinha comandando os assaltos e a ética da rua. Manhã de segunda, dois moleques armados invadem o trailer e fazem a limpa. Artuzinho vai ao desespero, em dois tempos chega a informação de quem poderia ter sido: os moleques da Maués. Quadrilha pequena de assaltantes da região, que viu uma brecha na guerra do tráfico e meteu o trailer. Rogerinho vai ter que agir. “Se não quebrar os caras, a região não vai ter respeito. Te pago pra isso, irmão”.
Dois dias depois os corpos dos quatro moleques (incluindo os que não participaram do assalto) amanhecem no valão. Um mês depois, Rogerinho chega de Civic. A notícia cai bem nos ouvidos dos comerciantes locais, e a troca com o Artuzinho se transforma numa próspera e informal firma de segurança do bairro. “Ali ninguém rouba, tem os malucos do Rogerinho ali que tomam conta. Tu nem vê que os caras estão armados, mas pra sumir contigo é rapidinho...”.
O direito de matar abre a brecha para o “quando”, “como” e “quem”. A insegurança não é uma combustão espontânea, um fenômeno natural. Ela se produz, e ela se vende. As ruas que restavam e ainda não tinham acolhido aos cuidados do Rogerinho, são pressionadas, promotores armados da segurança, assaltos repentinos, cara feia. A expertise trocada nos batalhões e as primeiras experiências na Zona Oeste da cidade dão o tom: codinomes de super-heróis, demonstração pública de violência e moralismo, empolgação inicial da população local, aliança escusa e evidente com políticos (futuramente, a formação dos próprios quadros), expansão e monopólio comercial, controle sobre o direito de ir-e-vir de um terço da população da cidade.
Cena do filme "Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro"(2010)
Os termos foram definidos: controle da segurança local, venda de serviços como gás, internet e tv a cabo, extorsão do transporte alternativo e rígidas imposições morais à vizinhança. Uma permeabilidade jamais atingida pelo tráfico, por exemplo. Elogio do prefeito, construção de palanque à vereadora local, arrendamento de zonas eleitorais, posse dos ativos econômicos da comunidade, prestação de serviços e direito sobre a vida. A esses territórios, não importa a presidência, a ordem é sempre a mesma. Ou pior, atualizando, importa sim.
Ao que se sabe, Artuzinho prosperou junto com a Pax local, rachou os lucros do transporte alternativo com Rogerinho em troca dos contatos políticos, comprou casa na Barra e fechou a equação: um policial imbuído do direito de matar + outro policial imbuído do direito de matar = grupo de extermínio. Grupo de extermínio + poder econômico local = milícia. Milícia + representatividade política = Milicianismo (ou Bolsonarismo). Não é uma vileza exclusiva da polícia corrupta o fenômeno das milícias, mas uma engenharia de todos os nossos porões.
O pai de Artuzinho tinha sido militar da repressão no auge da Ditadura Militar (como os que o Presidente exalta), reza a lenda que seu suntuoso apartamento no bairro foi comprado na relação com os grupos de extermínio e bicheiros que no início da década de 80 tomavam conta da cidade, cercados de apoio político e policial. Se isso não passa geneticamente, ao menos educou o networking de negócios do filho.
O livro "Os porões da contravenção" de Chico Otavio e Aloy Jupiara
Rogerinho é vítima inclusive quando segue a narrativa do algoz. “Salvar os bairros” se torna uma moda na virada do século e logo outro grupo toma o seu lugar. O tráfico antes não permitido, ganha uma brecha moral dada a demanda do mercado, e são as agora narcomilícias. Grupos que se mantém e se misturam no controle do crime e na construção até então de um Estado Paralelo. Ou até ontem. Até um tempo que o alto escalão federal não era ocupado por seus mais diretos representantes, gente que os condecoram, contratam, aplaudem, os elegem. Demonstrações raras de força bruta: assassinato de Marielle, expansão do milicianismo nas delegacias do Brasil (lembrar do motim no Ceará). Um caminho rápido e letal no veio de nossa história, uma metástase incontornável e silenciosa. Um circo governamental enquanto os ratos nos roem. Novas vozes do mesmo hábito, a República nunca se edifica.
Quanto ao trailer, segue firme. Como um monumento do bairro, em movimento: foi banca de adesivos de campanha presidencial, posto de cadastro da nova igreja do bairro, e hoje, que me disseram que Artuzinho vive como coach em Lisboa, parece que será uma barbearia: um primeiro negócio, um mimo, ao filho mais velho do novo patrono local.
*Todos os personagens dessa crônica foram inventados, sugestionados ou ficcionalizados, ao descompasso da crua realidade.
Rio de Janeiro, 13 de julho de 2020
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