por Pérola Mathias
Desde que assisti o filme “Andança – Os Encontros E As Memórias De Beth Carvalho” (Pedro Bronz, 2022) no final de fevereiro ou começo de março, uma das cenas não me sai da cabeça. São as imagens de um show de Beth Carvalho com integrantes do Fundo de Quintal na estação Carioca do metrô, no centro do Rio de Janeiro. Ao final da apresentação, que foi um sucesso, com o público, em sua maioria de trabalhadores que passavam por ali, curtindo o pagode e sem nenhum evento de repressão ou violência, a reportagem da rede Globo chega para entrevistar cantora. A repórter encontra uma Beth Carvalho sorridente, suada e envolta por todos os compositores homens, oriundos das rodas de samba do Cacique de Ramos, e então pergunta a ela sua opinião sobre o que faltava na música brasileira naquele momento. Beth responde que o mais importante na música era ter brasilidade. A repórter insiste, então, em querer saber o que ela queria dizer com “brasilidade”. Sem eufemismos ou rodeios, ela responde: “Negritude”.
Não pude voltar à cena porque o filme saiu de cartaz e ainda não está disponível nos streamings. Mas lembro da resposta de Beth Carvalho saindo de uma boca sorridente, com a “madrinha” branca dos sambistas envolta de talentos negros e suas novíssimas composições, que se perpetuaram como verdadeiros hinos brasileiros. Imagino qual não deve ter sido as reações das famílias brasileiras de classe média que assistiram àquele momento, no conforto de seus lares durante o Fantástico no fim de um domingo, no ano seguinte ao da abertura política do país, então em situação de plena instabilidade social. Mas, no cinema, tomando contato pela primeira vez com aquele evento que desconhecia, o sentimento ao ouvir a resposta de Bethe era de “na lata!”. Beth respondeu na lata!
Na última semana, assistimos (cada um sabe o adjetivo que cabe colocar aqui) mais um dos inúmeros ataques racistas ao jogador brasileiro Vini Jr., atacante do Real Madrid. Vini tem apenas 22 anos, perdeu sua adolescência para ser estrela do futebol brasileiro e mundial, foi objeto de uma transação milionária para ser parte do time europeu. Negro, de pele retinta, oriundo de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, ele seria alvo da violência racista em qualquer lugar do mundo, sendo bem sucedido ou não. A Espanha e a Europa não se envergonham e nunca se envergonharam dos séculos de colonização e escravidão. No episódio mais recente de ataque ao jogador, Vini foi xingado em coro pelo estádio, apenas por ser negro, sob conivência do juiz e dos adversários, que o atacaram, inclusive, fisicamente para tentar contê-lo. Como se fosse ele o errado.
Em injúrias raciais anteriores sofridas pelo jogador, ultra-direitistas, órfãos dos netos de Franco (ou seja, eles nunca sabem o que dizem), colocaram um boneco do jogador enforcado em uma ponte de Madri. E no ano passado um comentarista esportivo disse em rede nacional, ao falar sobre o estilo de futebol de Vini Jr, que se ele quisesse “bailar samba”, que voltasse ao Brasil, mas que lá, deveria deixar de “bancar o macaco”.
É doído assistir a essas agressões, tanto quanto é necessário vê-las e estampá-las (com a esperança de que, algum dia, todo mundo terá o mesmo nojo e repúdio às desgraças da História e de que a justiça será feita, oficial e violentamente). As imagens do homem - ainda um garoto - chorando em meio a centenas de algozes, sozinho, mas de cabeça erguida e punhos cerrados, é uma das mais importantes da década.
No dia que Vini Jr. tornou-se, mais uma vez, um dos assuntos mais comentados do mundo, me veio à cabeça ainda uma outra cena, mas, agora, de um filme de ficção estrangeiro. Entrou no Mubi recentemente o filme “O Ódio” (La Haine, 1995), de Mathieu Kassovitz, em que três jovens da periferia de Paris - um judeu, um árabe e um negro - enfrentam a violência policial. Em uma das cenas, a personagem de Vincent Cassel, que havia jurado matar um policial com uma arma de fogo da própria coorporação que ele encontrou depois de um protesto, se vê apontando o revólver para um skinnhead que o perseguiu. Sem coragem de atirar, seu amigo negro, que sempre tentava dissuadí-lo de atirar em policiais, insiste para que ele dispare: fascista bom é fascista morto, diz. Mas Cassel não dispara e, depois, sem grandes spoilers, se dá mal. A cada racista que tem uma segunda chance, mais injustiças e crimes ocorrerão. Enquanto nossa polícia continua militarizada, a população negra continua sendo massacrada. A cada vez que a recentíssima lei de injúria racial não é cumprida, somos menos uma nação.
Pelo menos desde a Semana de Arte Moderna, há 100 anos, sabemos que as manifestações culturais e artísticas negras e indígenas criadas e/ou perpetuadas através da resistência são a única força civilizatória da nação brasileira. Ainda que, do samba à capoeira, ao rap, funk, pagode, passinho etc., elas sigam sendo criminalizadas. Beth Carvalho, como mostra o filme que tem suas próprias filmagens e arquivos como material, esteve sempre rodeada da música negra, quase sempre sendo a única mulher no meio - e há milhares de aspectos ainda para falar desse filme, essencial e emocionante -, e se tornou sua “madrinha”.
Ou seja, Beth Carvalho foi uma espécie de porta-voz, divulgadora e, também, escudo. E toda vez que a gente acha que essa realidade pode mudar, que novas vozes terão, finalmente, o protagonismo de suas próprias histórias, vemos um futuro encerrado “repetir o passado”. A ascenção da ultra-direita, que nunca morreu, tem, sim responsáveis. Todos covardes. Segue, porém, a luta e o sonho. Um dia haveremos de ter um novo hino nacional. E ele poderá ser, quem sabe, a composição de Jorge Aragão alçado por Beth, que resume os últimos séculos: é “Coisa de Pele”. Se na Espanha mandam Vini Jr. voltar o Brasil para sambar, daqui respondemos para a colônia e seus descendentes que estão sempre em busca de uma identidade perdida para validarem-se dentro de um sistema sem sentido, “nem tudo que é bom vem de fora”.
Podemos sorrir
Nada mais nos impede
Não dá pra fugir
Dessa coisa de pele
Sentida por nós
Desatando os nós
Sabemos agora
Nem tudo que é bom vem de fora
É a nossa canção
Pelas ruas e bares
Que nos traz a razão
Relembrando Palmares
Foi bom insistir
Compor e ouvir
Resiste quem pode
À força dos nossos pagodes
O samba se faz
Prisioneiro pacato dos nossos tantãs
O banjo liberta
Da garganta do povo as suas emoções
Alimentando muito mais
A cabeça do compositor
Eterno reduto de paz
Nascente das várias feições do amor
Arte popular do nosso chão
É o povo quem produz o show e assina a direção
Arte popular do nosso chão
É o povo quem produz o show e assina a direção
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