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Foto do escritora palavra solta

Brancos e Nulos: a Queda do Falo

por Thiago Oliveira Vieira




“torna-te um rapaz tão bom quanto possível”


No último mês, alguns casos públicos de abuso sexual, que vieram à tona em distintos momentos, se desdobraram em novas notícias. Desde as mudanças no depoimento do acusado até o mandado de extradição do sentenciado. Entre eles, estão três jogadores de futebol: os dois brasileiros Robinho, Daniel Alves e o marroquino, Hakimi, que atua no Paris Saint German.


Somado a esses casos, mas do outro lado do problema, assistimos o depoimento da atriz Klara Castanho no programa Altas Horas. A sua fala e tudo o que lhe ocorreu não parecem nada simples de ser atravessado e dito. Após me inteirar dos acontecidos e escutar sua fala fica nítido, mais uma vez, que quando o assunto é abuso sexual nós não estamos lidando com uma questão pontual, mas sim uma problemática cultural, pois a vítima parece ter que brigar até pra ser ouvida.


Dentre todos esses relatos, o mais recente é o do jogador Daniel Alves. É possível, ao acompanharmos as notícias sobre desse processo, ver em tempo real o que começamos a escrever no mês passado e o que propúnhamos para este mês. Temos que estar atentos sim aos atos de abuso, mas não só isso, é muito pouco. O que circunda e sustenta a cultura do estupro precisa ser rompido: a pedagogia das masculinidades, as invalidações e seus gaslighting e as raízes da questão: uso da força, perversidades, ideal viril e seus fantasmas e adoecimentos.


Estes casos envolvendo jogadores de futebol brasileiros esfregam na nossa cara o que alguns autores já desenham há anos. Em a construção do masculino, Welzer-Lang escreve sobre o funcionamento do que ele chama de “a casa dos homens”, um lugar em que meninos só convivem com meninos, em que tudo o que é aprendido e regulado passa apenas por eles. Ou seja, a pedagogia e a regulamentação do que se espera são estritamente homossexuais e juvenis.


Esta pedagogia é bem descrita pela filósofa Elisabeth Badinter em XY: A Identidade Masculina. Nele, a autora disseca, através de um panorama cultural e histórico, como acontece as transmissões de saberes entre os homens. Mas antes mesmo de chegarmos nas transmissões de saberes masculinos, vamos retroagir estrategicamente. O intuito é que abramos, de fato, uma questão ao darmos as mãos à pergunta que diferentes autores vem se fazendo: “o que é um homem?”


Esta é uma das perguntas que a psicanalista Maria Homem vem fazendo nos seus ensinos e transmissões. E neste caso, a analista ainda faz uma leitura política dos nossos últimos anos, e acresce o excerto: o que é ser homem no Brasil? O livro de Pedro Ambra, que leva esta pergunta como título, tenta desenrolar tal questão e traz excelentes contribuições à esta dúvida e a um terreno muitas vezes espinhoso, as aproximações entre psicanálise e gênero.

O que é ser homem? Foi me deparando com essas questões e com as posturas masculinas no consultório que penso estarmos de frente não com uma resposta única e conclusiva. O falo, diriam. Mas sim, frente a uma pergunta disparadora que gera diversos movimentos que põe em xeque as certezas. Pois a própria psicanálise já galgou seu discurso, neste quesito, em dois pilares que não se sustentam mais: a anatomia e a cultura.


De um lado vemos a cultura patriarcal ruindo (ou necessitando ruir, no que ainda se mantém) e do outro a anacronia de citações freudianas que antes pareciam caber, “a anatomia faz destino”. E, neste contexto de quedas, entre mudanças de leituras sobre o corpo, mudanças culturais e disputas políticas de narrativa que estamos todos, inclusive os homens.


Seria totalmente fora de parâmetro estar pensando esta categoria no momento em que todas as outras estão vivendo um borramento: o que é feminino, masculino, mulher. A não ser pelo simples fato de que os homens nunca precisaram se pensar como um particular, pois nós já éramos vistos como o sujeito universal. A cultura patriarcal falocêntrica que equipara o pênis ao falo construiu uma sociedade e meios de sociabilização pautadas no macho.


Em suma, o homem nunca se pensou como tal, pois não precisava. No seminário 3 de Lacan, ele nos diz que a histérica tem sempre uma questão consigo: O que é ser uma mulher? E é a partir desse questionamento, muitas vezes inconsciente, que se desenrola a construção da sua subjetividade e desdobramentos fundamentais à sua psique. A saber, a relação e as implicações com o corpo de onde ela veio, Outra mulher, seu desejo e o lugar do seu desejo na cultura. Mas e os homens? Quais são as questões que trazemos no bolso?

Hoje, me autorizo a pôr você, leitor homem, no divã, e te fazer esta pergunta: O que é ser homem? Ao escutar homens brancos, negros, hetéros, gays, cis e transgêneros vejo que um ponto específico nos une: o ideal de masculinidade. Veja daí se isso também diz de você. E não estou falando de qualquer masculinidade, mas sim da masculinidade dita no singular, e não no plural. A masculinidade hegemônica. A que Badinter se refere como sendo “preferencialmente no imperativo do que no indicativo”, ou seja, “um objetivo ou um dever a se cumprir”. Se faça homem.


Isso me parece atravessar a todos, mesmo que não de forma igual. Uns sofrem por não correspondê-la, outros por não correspondê-la em partes. Uns se beneficiam por estarem dentro da padronização esperada, outros brigam para se aproximarem cada vez mais dela. Uns gozam, uns sofrem, uns fazem sofrer. Ás vezes, o mesmo sujeito passeia por essas diferentes posições em situações distintas.


Mas mesmo assim, em posições diversas, tem algo dessa lógica imperativa que sempre comparece. Algo que vem anteriormente, que vem da cultura, que vem do mito viril e ao qual temos que responder com os nossos próprios corpos e posicionamentos. No imaginário masculino, o atravessamento fálico sempre comparece, cada um se vê convocado e se convoca à responder sobre quão fálico ou faltoso é.


E nessa resposta vem também suas diferenciações: não é possível pôr no mesmo saco homens brancos e negros, hetéros e homo, cis e trans. Pois socialmente eles são atravessados e lidos de maneiras completamente diferentes em relação ao ideal fálico e aos mitos da virilidade.


Estas aproximações e distanciamentos não são nada simples, nem nas intimidades das falas nem no campo teórico. Segundo a historiadora Roudinesco, em Jacques Lacan – esboço de uma vida e histórias sobre um sistema de pensamento, um dos motes do seminário 20, em que Lacan ensinou sobre as fórmulas da sexuação, é dar um posicionamento, mesmo que de maneira tardia, a segunda revolução feminista, encabeçada por Simone de Beauvoir e o Segundo Sexo.


Neste seminário, o psicanalista francês discorre e transmite seu conhecimento clínico sobre os semblantes com as quais nos vestimos, homem e mulher. É uma fórmula com diversas informações e complexa de se ler, mas existem dois pontos ali que nos interessam: a clivagem psíquica que ocorre no lado homem da fórmula entre desejo e afeto e o falo como operador lógico das diferenças sexuais.


Assim, ele nos diz que os sujeitos que se identificam com o semblante homem escolhem objetos de forma cindida. Existe o objeto de desejo e o afetivo. Não se deseja e se afeta no mesmo lugar. O afeto é estrangeiro ao mundo masculino.


Este entendimento é primordial para que entendamos o funcionamento masculino. Mas nesses pontos suscitados por Lacan, cabe também uma crítica a estrutura do seu pensamento. O psicanalista Pedro Ambra nos diz que a boa psicanálise é aquela que se repensa e que por isso é fundamental pesquisas neste campo teórico que interroguem a centralidade do falo nos estudos analíticos e o seu lugar de marco das diferenças sexuais.

É importante olharmos para os corpos e enxergarmos suas diferenças, mas é fundamental que elas sejam lidas por outros prismas e outras lentes. Esta é uma das grandes tarefas para os novos analistas. A psicanalista Maria Homem vem batendo firme na tecla que os reclames bolsonaristas eram um pedido pela manutenção da sociedade como a conhecíamos. E isso quer dizer que o falo, como símbolo de poder e equiparado ao pênis, se mantivesse no mesmo lugar de sustentação do discurso patriarcal. Ou seja, como organizador das relações, das trocas sociais, do funcionamento da cama e das famílias. Do público e do privado. Mas ela também aposta que o pai está fraco, que o macho que esbraveja está com medo.

Pois já não se sabe mais o que se é, nem se tem antigas garantias. O que é ser homem? O que é se fazer homem? Porque ser homem é tão importante? Neste tempo de ensaiar respostas, digo que o homem não é o pênis. Penso também que muitas barbaridades que acontecem são em momentos de medo e angústia. Ter certezas ruídas pode ser bem angustiante. Mas do mesmo jeito que é possível atua-las, é também possível atravessá-las.


O falo não caiu, ninguém o tem. O que está caindo é a ilusão fálica e tudo o que ela organiza. Faltar frente a um ideal que nos cobra sempre mais, que nos pede na sua pedagogia que sejamos sempre melhores e que obtenhamos sempre mais é o normal. Faltar frente a um imaginário que coloca mulheres no lugar de objeto a ser possuído não é patológico. Não é ser menos homem. A falta é o furo do masculino. Mas ela não é o problema, é a solução. É a falta que nos singulariza e só faltando frente a um ideal perverso, que clama virilidade a todo instante, que podemos reorganizar nosso campo afetivo.

Este é um ponto caro ao pensamento de Bell Hooks. No livro A Gente é da Hora, ela se pergunta enquanto pergunta aos homens negros: por que vocês aderem tanto a uma masculinidade falocêntrica, que só os convoca a potência e os desumaniza afetivamente? E a esta questão ela também aponta saídas: o caminho que vocês poderiam seguir é o amor. Mas não o amor romântico, e sim relações que envolvam afeto, principalmente as de base.


Esta pode ser uma das saídas. Mas também existem outras, quando Badinter fala da pedagogia das masculinidades, ela diz que é o Homem que gera o Homem. A autora está se referindo aos ritos concretos e metafóricos das transmissões de saberes entre homens. Desde a felação e trocas sanguíneas, passando pelo uso da força, que autoriza homens mais velhos a atos perversos com homens mais novos, à naturalização e reprodução desse uso com outros corpos.


Quebrar essa reprodução é romper com a casa do homens. É usar da nossa entrada nos “vestiários” para sermos os seus cavalos de tróia. É adotarmos outra lógica para nossas relações. Pois se já sabemos que a homofobia e a misoginia são as bases da pedagogia masculina, por que não partirmos para outras formas de relacionamento, em que o carinho entre homens não seja interdito e estrangeiro?


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