por Thiago Oliveira Vieira
Neste terceiro texto, nós encerramos a série que nos propomos sobre as masculinidades, ou melhor dizendo, sobre os meandros e perversões da masculinidade hegemônica e os seus efeitos nos corpos. Um deles, o afeto como transgressor. Isto ficou esmiuçado no texto anterior, em que a vértebra da escrita era a tentativa de entendimento dos porquês do afeto ser interditado, e por isso transgressivo, no campo masculino.
Sabemos que esse assunto tem o mesmo tamanho em importância das reais dificuldades que apresenta. Se é difícil qualquer raio-x da situação, mas complexo ainda são as proposições de mudanças. Vide que até na seara que nos situamos, psicanálise e gênero, é mais fácil uma confusão de línguas, dado as divergências conceituais desses discursos, do que um beijo que proponha saídas.
Mas mesmo assim, é impossível, no atual contexto político, clínico e social, não pensarmos as masculinidades. Pois se isso não for feito, não estaremos à altura dos sintomas da nossa época, como disse Freud. Este movimento de deflexão é fundamental, mas também não é novo, os estudos sobre as masculinidades mostram que a necessidade dessas “reflexões forçadas” ocorrem de tempos em tempos. Segundo a filósofa Elisabeth Badinter: “os homens precisam ser repensar a cada vez que as mulheres se pensam e movimentam os seus direitos”.
Isto pode ser lido como um privilégio da masculinidade hegemônica, que apenas se pensa em suas particularidades quando interrogada por outros grupos. Contudo, para além dos privilégios, podemos atestar também que se isso ocorre no contexto social, íntimo e político brasileiro é por conta dos movimentos feministas e os ganhos das suas lutas.
E é a partir do entendimento desse contexto, que podemos situar, neste momento, o terreno aonde, de fato, temos o interesse de entrar, os furos masculinos. Pois é disso que estamos falando e é isso o que nos interessa. Quando estamos propondo sobre o afeto não estamos fazendo uma proposição ingênua de convocar homens a se amarem entre si e a trocarem afeto com mulheres crendo que apenas isso solucionará a questão. Não é isto, é muito mais além.
É compreensível desde Lacan que no campo psíquico dos homens há uma clivagem entre afeto e desejo até nas escolhas dos objetos amorosos. Se deseja onde se ama? Se ama onde se deseja? Ficam no ar estas questões e por isso faço as seguintes asserções: O furo do masculino é o afeto e o furo do macho é o ânus.
E sobre estes pontos é que devemos nos debruçar. E não só no corpo físico, mas também no entendimento do corpo pulsional. O que a teoria psicanalítica pode contribuir a esta proposição e quais os fantasmas que estão ligados abaixo do pênis?
Tateemos e entremos, com as nossas referências, do períneo ao ânus, pois a rota de perigo pode ser a rota de prazer.
Isto pode ser visto desde Freud, nos Três Ensaios Sobre a Sexualidade, escrito em 1901. Neste texto, ele traz a seguinte constatação quando está falando sobre as funções do ânus:
“É de se presumir que a importância erógena dessa parte do corpo seja originalmente muito grande. Inteiramo-nos pela psicanálise, não sem certo assombro, das transmutações por que passam as excitações sexuais dela provenientes e da frequência com que essa zona conserva durante toda a vida uma parcela considerável de excitabilidade genital”.
Neste mesmo texto, ele não fala apenas sobre a analidade, Freud discorre sobre o desenvolvimento psicossexual humano de forma mais ampla: as famosas fases freudianas. Ali, ele nos diz sobre os caminhos da libido no corpo e acentua, ao longo da escrita, que as nossas pulsões são sempre parciais. Ou seja, qualquer parte do corpo é passível de prazer, a singularidade de cada sujeito é o que impera na sexualidade.
Contudo, mesmo quando Freud nos diz que a sexualidade humana é polimorfa e perversa, ele não só diz sobre a extensa possibilidade do corpo em se erotizar, mas diz também que existem zonas corporais que possuem ainda mais suscetibilidades e privilégios erógenos do que outras, zonas comuns a todos nós. Os orifícios, diriam os lacanianos. Todos os buracos do corpo, diria o outro. O cu, dizemos nós.
E são nestes buracos e nessas bordas que a pulsão faz a festa. Situam-se aí uma parte expressiva do ensino de Lacan, o encontro entre psicanálise e literatura e as respostas de algumas perguntas que nos fizemos.
Pois são nesses orifícios corpóreos - boca, ânus, pênis, vagina, ouvidos, olhos, poros – que se organizam nossas trocas com o mundo. Nossas trocas com o Outro, nossas marcas do Outro. Neste momento, Lacan vai a Rimbaud e grita sussurrando o que o poeta escreveu: O Eu é o Outro.
Quando Lacan diz isso, ele afirma sobretudo uma posição do indivíduo frente à linguagem. Nascemos tão prematuros que somos tal qual um “bolo de carne”, necessitamos primordialmente de um Outro para nossa inserção na linguagem. Ou seja, antes de tudo, ser um corpo é ser um corpo falado por um Outro. É ser falado pelo desejo do outro e jorrado pela cultura que nos antecede.
Mas o que fazer quando esses outros que nos dizem embarreiram justas posições de prazer? O que fazer quando a cultura vigente privilegia e desprivilegia determinadas posições subjetivas? O que fazer quando o afeto não pode entrar em cena?
É no ensejo dessas perguntas que me vem à mente Pedro Ambra. Em particular, um dos livros que o analista organizou: As Subversões do Erótico. Entre questões e proposições sobre o erotismo, um capítulo que interessa diretamente a esse texto: Cu, o prazer do ânus, escrito por Abhyana.
Nesta leitura e no diálogo entre textos que afirmamos: Sim, botemos o cu no ânus, botemos o cu na roda. É fundamental subverter a lógica do Outro quando ela não nos cabe. Se o cu nos dá tanto medo, se o afeto nos é estrangeiro, refaçamos nossas intimidades.
Mas antes mesmo de chegarmos nisso, voltemos à Freud para levantarmos os conteúdos recalcados e sabermos de quem estamos falando quando falamos nisso. Em o Caráter e o Erotismo Anal (1906) Freud relata sobre a enorme quota de prazer que alguns indivíduos sentem no erotismo dessa área. Mas ele diz também sobre as repressões que ocorrem nos mesmo:
“no decurso do desenvolvimento e de acordo com a educação que a atual civilização exige, esses componentes sexuais prazerosos (anais) se tornam inúteis para fins sexuais. É de se supor que esses traços não sumam, mas que se sublimem em traços de personalidades: ordeiros, obstinados, parcimoniosos.”
Em outros termos, Freud está falando dos patrulheiros da ordem, dos caga regra, dos que vivem olhando pra bunda alheia. Mas será mesmo que é tão alheia assim? Quando entrelaçamos teoria e clínica, de quem é mesmo que Freud está falando?
Me parece que não é sobre os perversos, que algumas visões religiosas querem acreditar; que não é sobre alguns desviados, que bancam seus desejos e que por isso são, corriqueiramente, agredidos; mas sim, sobre todos nós e em especial os neuróticos obsessivos. Em geral: o homem comum.
Dando contexto e nome aos bois: nosso bolsonarista e seus fantasmas anais. Mas não só eles, com definitiva certeza. Mas também o macho de esquerda que apertou 13 e que traz no seu subsolo um temor inconfesso do 24. Sobretudo, o homem hétero branco cis, que sempre se vê em um ego superlativo, nunca furado nas suas particularidades. Sem deixar de fora, também, o homem hétero negro, que continua pagando o boleto de uma masculinidade falocêntrica que o excluí não a cabo, mas a rabo.
Sabendo de quem estamos falando e a quem nos dirigimos, o que dizer ao homem médio?
Nada que já não foi dito, nossa proposta neste texto e nos anteriores era desenhar um cenário, assim como o vemos. Dado isso, quem precisa dizer e se reposicionar são os homens. Ninguém está nem aí para com quem você se deita. O intuito aqui é outro, é pegar a questão pela raíz, pelo rabo. Nossa proposta é escuta e implicação. Os homens é que precisam se deitar e dizer. Estes fantasmas anais e todas as atrocidades e bizarrices cotidianos que partem disso são medo ou desejo?
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