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Foto do escritora palavra solta

Brancos e nulos: (o martelo)

Atualizado: 2 de fev. de 2023

por Thiago Oliveira Vieira



Em uma quarta feira no fim do ano, os atendimentos no consultório pareciam seguir o percurso de uma manhã comum, digamos assim. Muita fala, ouvidos atentos, choro e lenço, risada das próprias mazelas, risada das próprias besteiras. Os jorros da intimidade. Mas, nesse dia em específico, algo soou tons acima por estar comum demais. No terceiro atendimento do dia, uma pernambucana de 63 anos, dona de um humor incontornável e mãe de três meninos começou a se abrir a respeito do porquê ela supõe que tem pavor de lugares fechados e dificuldades reais de comer.


As suposições que ela fazia foram depois de muita água já ter rolado por debaixo da ponte. Nada ali era novidade, apenas a vivacidade afetiva na narração. Um lugar em si impossível de se acessar em outros momentos. Este afeto solto borbulhava e se fazia presente em diferentes situações. Eis a explicação Freudiana, em Metapsicologia, para o mecanismo de defesa chamado recalque: as representações (imagem, lembranças, etc.) são apagadas, mas o afeto que foi gerado em uma circunstância traumática continua lá. Freud também nos avisa que o inconsciente é atemporal, ele continua lá e continua lá por anos e anos, não duvide.


Este lá a que me refiro é o corpo, tinha algo de excesso que ela vivia toda vez que ia comer e também quando entrava em lugares fechados, mesmo já tendo passado mais de cinquenta anos das suas lembranças de garota. Sobrava um mal-estar no corpo que escapava aos seus entendimentos. Por algum tempo, as cenas difíceis foram apagadas. Depois de um período de análise, foram lembradas (momento que podemos entender como o retorno do recalcado), mas as associações entre o que lhe ocorreu na infância e o que vivia no presente em nada eram linkados. Se este link não ocorria para ela, ocorria em hipótese para mim. Aquele afeto que a transbordava continuava lá e se colava aos mesmos significantes de garota, porém revestidos de outros significados - Comer e Lugar Fechado.


Depois de diversas andanças entre essas duas idades, ela também já tinha um diagnóstico médico: Síndrome do Pânico e Transtorno Alimentar. Esses diagnósticos funcionam para algumas pessoas como acolhimento e para outras como desqualificação e não escuta. Tanto no entendimento do seu sintoma (que angústia está por trás da taquicardia, sudorese, falta de ar e a iminente sensação de perigo?) quanto no saber que nada disso é causa, mas sim efeito do que se traz no peito e na língua. É preciso escutar o saber que a crise comporta para não o encerrarmos em mais uma compreensão que o amordaça.


Para esta analisanda em questão, os diagnósticos seguidos das suas respectivas medicações a auxiliaram no primeiro momento, mas ela continuava não comendo como gostaria e evitando diversos lugares. O sofrimento pelo não viver seguia se enredando e se tornando tão maléfico quanto os seus desacontecimentos. Ao se dar conta disso e mais firme em suas próprias pernas, ela entrou de sola em análise e fez um movimento fortíssimo.


Olhou o tio nos olhos, grande irmão da mãe e amigo do pai, e descarregou nele todos os anos entre o fim da sua infância e a entrada na adolescência. Ela o confrontava dizendo tudo o que sentiu. Ela o interrogava querendo saber como ele pode fazer aquilo. “Porque ninguém me ouvia”, ela se perguntava. Ela dizia, o corpo dela dizia, ela tentou dizer inúmeras vezes.


Ela olhava para mim e como em um palco de teatro (ou te ato) dizia com raiva, como se estivesse dizendo ao tio. Possivelmente, ela apostava na segurança do setting analítico. Ela olhava para mim e dizia para a mãe dela no meu corpo, “eu nunca mentiria sobre isso, você mesma não gostava de me deixar sozinha com ele”.


Neste atendimento, eu era o tio, eu era a mãe, era o pai, era quem podia escutar e não escutou, quem podia proteger e não protegeu. Este é o próprio conceito de transferência em psicanálise, “o paciente transfere ao analista as imagos que o montam”. Por isso, a transferência nos é tão importante e por causa dela que a análise pode operar algo. Não sou eu: um cidadão candango, de poucos quilos e com trinta e poucos anos de idade que pode defendê-la ou que vai aconselhá-la a solucionar seus problemas. Mas sim, o manejo técnico do papel que o analista exerce para aquela pessoa, falo à ela como sendo uma dessas figuras que ela me concedeu. Tendo um lugar no seu sofrimento, podemos cavar possibilidades de dissolução.


Foi neste ponto que este atendimento me mobilizou. Quantas já não foram as vezes que escutei uma cena dessas? Muitas, sem dúvida. A diferença, é que desta vez o questionamento não vinha apenas pelos ouvidos, mas pelas marcas do livro. É corriqueiro escutar um analista dizendo sobre a singularidade da clínica, e de fato essa é a nossa busca, escutar cada sujeito na sua idiossincrasia. Mas nessa sessão, me vi mais uma vez manejando no mesmo lugar e da mesma maneira.



No final do atendimento, após o devido tempo e acolhimento, a entreguei o livro da Adelaide Ivánova, O Martelo. Este livro de poesia está na prateleira do consultório há mais ou menos quatro anos. Quando o entreguei, fiz uma orelha no último poema, que leva o mesmo nome do livro. Nele, a poeta diz sobre as inúmeras possibilidades deste objeto – o instrumento de sentença, o instrumento que prega os devidos pregos, o instrumento que faz dormir. Ou no caso do tubarão martelo, voar.


Me lembrei desse livro, pois a forma como ele se apresenta: “é chegada a hora de dar o devido peso as palavras. Uma trepada é uma trepada, um estupro é um estupro” era a mesma forma como se portava aquela analisanda. Ela queria viver, queria sair, queria redescobrir a sexualidade em uma idade viva, mas a vivacidade e o erótico estavam amordaçados pelos abusos.


Neste tempo da sua análise, parecia que o savoir y faire lacaniano estavam agindo nela, ou melhor dizendo, são os analisandos que nos ensinam sobre a clínica, ela estava se havendo com o seu saber fazer com aquilo que lhe aconteceu. E o analista a ouvindo nisso.


Entre o tempo de dizer isso a ela e o perguntar se ela tinha interesse na leitura, foi que me dei conta das várias orelhas que aquele livro possuía e das marcas de uso e grifo de outras mãos. Aquilo me marcou, mesmo depois do fim do dia. Ela não recebia um livro, ali já comportava tantas marcas de lápis e caneta, que ela recebia uma história que passou de mão em mão e possibilitou um carrossel de ressignificações delas com elas. Desde o sofrimento suportado no corpo até o ato de se dizer nas próprias formas e lugares de desejo, inclusive os eróticos. Porque não?


...

Este tema não é novo nesse ofício nem ao corpo das mulheres. Na época de Freud, no início do século XX, o abuso era também um tema recorrente na sua clínica. Tanto era que Freud passou a se interrogar sobre a quantidade de mulheres que traziam estes relatos. Depois de tanto escutar e compreender a situação, ele chegou à conclusão que existiam outras nuances em cena.


Naqueles relatos, a vida na aristocracia, o funcionamento histérico e os desdobramentos do cerceamento e das fantasias femininas compareciam também na fala delas, para além dos abusos. Em suma, algumas mulheres viviam em sua realidade psíquica que tinham sido abusadas, por isso escutadas como tal, mas que não necessariamente isso tinha acontecido com todas que traziam estas falas, havia também fantasias em cena.


Neste confronto de épocas, a partir das conquistas das mulheres no campo social e íntimo e sobre o funcionamento na neurose que me pergunto: a clínica psicanalítica na atualidade encontra as mesmas respostas que Freud encontrou?


Penso que este texto pode ser meramente fictício e mesmo assim ser a descrição de inúmeras mulheres que nunca encontrei, tão menos que escutei. Pode também, mesmo preservando a conduta ética e mudando os traços e os relatos, continuar dizendo sobre muitas mulheres que ouvi, dado a rotina desses dizeres nos consultórios psis.


Quando isso se instaura como sendo comum, estamos falando sobre as fantasias femininas e/ou as fantasias masculinas? Dito de outra forma, fazendo uma torção nessa questão, não existe nesse tema um apontamento para o masculino? A pesquisadora em estudos de gênero da Universidade de Brasília, Valeska Zanello diz que “esses dados apontam para um adoecimento nas masculinidades”.


E foi à estas perguntas que me vi atado depois de tantas repetições. Entendo como sendo impossível de se abster a uma resposta. Existem sim mulheres que funcionam dentro de uma estrutura neurótica e que fantasiam cenas abusivas em tenra idade, com familiar ou não. Mas nem isso quer dizer sobre um apontamento direto para este desejo, pois existe toda uma trama psíquica e social que enlaça as posições subjetivas que cada um goza. Ou seja, estamos lidando com a trama edípica de cada sujeito quando isso comparece e não apenas com a busca pela satisfação das fantasias.


E mesmo neste ponto, não considero que o pensamento de Freud seja nosso contemporâneo. A importância da criação conceitual e do entendimento de realidade psíquica são geniais e fundamentais para a escuta clínica, mas, neste caso, não parecem abarcar a amplitude da questão. Para além da realidade psíquica, os abusos são uma realidade sociocultural. Qual é a mulher na nossa sociedade que não tem uma história sobre assédio para contar? E mais, quando os ouvidos se abrem para as diversas formas de abuso, quantas mulheres foram abusadas e não são ouvidas?


Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2022, ocorreu o maior número de registros de feminicídio no país, 699 casos. E segundo a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, no mesmo período, ocorreram 7.447 denúncias de estupros no Brasil, em que 79% eram crianças ou adolescentes.


Estes dados dizem muito, dizem tanto que é impossível abraçar sua completude. Por isso, vou me ater ao recorte que interessa ao desdobramento desse texto e dos próximos desta coluna, os homens. Pois não me parece que, para quem está atento ao nosso cenário político e social, tenha alguma novidade no crescimento desses números durante o governo bolsonarista.


E faço este enlaçamento entre o clínico e o político, pois além de os ver como indissociáveis em sua redutibilidade, penso que os reclames reacionários bolsonaristas tem muito a nos dizer sobre as bandeiras das masculinidades e sobre a nossa atualidade.


Entendendo, a partir da proposição do psicanalista Fábio Belo (docente na UFMG) em suas transmissões online, que existem narcisismos instransponíveis no nosso contexto atual. Ou seja, pessoas com as quais não é possível o diálogo e a negociação, pois defendem o indefensável. De antemão, digo que não é para eles que proponho este texto, à eles a lei.


Mas sim, aos homens que se identificam com esse semblante e não sabem o que fazer para além dos imperativos da masculinidade hegemônica: suas perversões, privilégios e adoecimentos. Sem respostas dadas, culpadas e prontas. A proposição deste e dos próximos dois textos: O Martelo, A Queda do Falo e do Períneo ao Ânus é que abramos “a casa dos homens”, ao qual Welzer-Lang nos conta as minucias do seu funcionamento, e que entremos com Bell Hooks, Badinter, Pedro Ambra e Lacan nos seus furos – o ânus e o afeto.

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