Durante o último mês de agosto abri uma oficina de poesia com a simples indagação: é isto um poema?
Foram quatro aulas, quatro poetas contemporâneos por vez, quatro diferentes exercícios propositivos de escrita.
Queria encontrar gente disposta a botar a cara do poema na fogueira das análises, desdobrar toda uma geração de poetas que hoje balança nesse equilíbrio fino que nos jogou o nosso tempo: entre a ruína visível e a utopia viável. Essa oficina foi uma dessas encruzilhadas utópicas: dezessete alunos aplicados, apaixonados por literatura, bons poetas, atentos, generosos. Seguiria aqui uma lista extensa de elogios, mas me atenho a publicar alguns de seus poemas como uma espécie breve antologia desse orgulho todo.
Flávio Morgado
arte: Melvim Brito
americano acha mensagem em garrafa ao mar jogada há 50 anos por marinheiro russo
sentado numa beira de calçada do alasca
Ivanoff ironicamente americano
encara a garrafa verde ao lado das estacas de madeira
saca-rolhas
abre a garrafa
50 anos navegando pelo mar
Botsanenko
marinheiro russo, de 36 anos, a bordo do navio sulak
"Sinceras saudações do navio-hospital VRXF
Sulak da Frota do Oriente Próximo russo"
tenho um sonho louco que me diz com certeza
que a guerra fria não acabou
que ela segue se espalhando pelas beiradas do mundo
perdida e refeita em bocas confusas
enquanto seu lobo não vem
Ivanoff assombrado por seus avós
tem os que sonham o monstro do comunismo
e temos nós que desejávamos que ele estivesse vivo
mas ele não é muito mais que um zumbi-sonolento
boneco do inimigo
fosse o caso roubar o sonho e sonhar por nós
: o fantoche vermelho tomando terras dividindo bens
monstruoso espalha-se rugindo
against social-democracy
cresce na calada da noite em becos
e nas armadilhas bem montadas
usurpa grupos de famílias missas e votos
monstro monstro monstro
ressurge e nasce como te desenham
imponente vermelho guloso
esquece o tempo e os maus tratos
apaga a fome e os panfletos no chão
cresce e governa e tirano saca dos ricos e dá aos pobres
e pinta de vermelho toda a nação américa
muda a bandeira
o currículo
cumpre sua sina monstro fiel cumpre
mas o capitão Botsanenko
já não se lembra de mensagem alguma
e é só sua assinatura a que reconhece
vermelha rasgada no final da carta
a mensagem está seca mas a garrafa cheira a vinho
o que dizer ao velho russo,
que sonhava?
Gabriela Faccioli (Rio de Janeiro – RJ)
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Iluminação:
substantivo diverso em uma linguagem binária
do português bem-falado: iluminar, alumiar, incêndio, clarear as ideias, saquei o que
você disse, luz no fim do túnel, luz no fim do brasil, Cemig, pagar as contas, enobrecer;
um corpo ao chão
lâmpada que se estilhaça
apagar as luzes
embrulhá-la no jornal
em que se lê
cem mil mortes
Carolina Flausino (Belo Horizonte - BH)
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afterlight
Maria Cabianca (São Paulo - SP)
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2.
as mãos se espelham
as pernas se imitam
em inversão.
em desespero
para se ver e conferir
se si existe
fora
e dentro do espelho
Isabella Corradi (Belo Horizonte - MG)
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laudo
descaso e circunstância
arder provisório
clarão de laranja e choro
sem revolução ou aviso
ensurdecedor e sintético
esse anti-sol inscrito no espaço
de um armazém,
apenas oculto
entre os fardos de farinha
foi descrito, mas até certo ponto -
o estrondo é mais velho
que a língua
Peppe de Souza (Rio de Janeiro - RJ)
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l'amour fou
Fabianna Pellegrino (Rio de Janeiro - RJ)
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descrição
a marcela
é um díptico.
(vou trair meu objeto)
criadas em lirismo duro,
cento e oitenta e cinco,
duzentos e vinte.
acima:
"amai o próximo como a ti mesmo"
putas ou vagabundos. amém.
ao fundo:
roxo, lilás, magenta, rosa, laranja, amarelo, vermelho.
imagino assim o fundo de uma buceta.
é fogo,
elas transpiram quentes; o calor
pode subir ao corpo: pernas abertas.
à esquerda da tela: cadeira mesa tomada.
à direita da tela: azul menina entrada.
e um aviso? um menu? um catálogo? uma prece?
uma bola de espelhos, que reluz, que não brilha.
a frente:
me encara. late entre nós
uma jaula. (mas quem é engaiolada?)
a pose. são panteras;
babalu entre as feras;
e a noite vermelha de
sophia de mello breyner
andressen; a posse.
nessa paisagem não
opera. o
mistério das coisas
estremece, e o
desconhecido cresce
como vejo daqui, um pouco assim:
cada corpo transpõe um mundo;
contorno profano consagrado: não
encosto no que foi devotado. tudo
no mundo saiu de uma mulher.
A matéria,
a mátria, de marcela, tudo pode,
e de pernas
abertas.
Carolina Torres (Rio de Janeiro – RJ)
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elogio da velocidade
faço gato
com fios entreabertos
busco uma luz
ou a companhia
de um animal doméstico
junto aqueles fios
vejo um clarão
3 segundos depois
um cacarejo.
Helena Elias (Belo Horizonte - MG)
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Mãe Maria de Santo Antônio
Eu quis captar ânsia em 3 jogos
Abdiquei antônimos
Cria
Os seios latejantes ao pai
ao filho
e aos espíritos dos eguns
São gerações em que venho re-suscitando
Folhas de figueira
-pus aos mamilos
-amo como papel movediço
-corro em caracol
Direitos autorais?
Povere
Soledad eu jurei
Carta sacerdotisa
Amamentação prantos
Perdi 3/4 tanto:
Povere
Ao mastro ainda
Lágrimas sonetos
Manter figura
Descarrego
Povere
Decapitar estômagos se deu
Em pisar em ovos hoje
Povere
Fiz a trinca
de 7 de três coringas
Ademais, Adelante
Fui grama
Povere
Meu custo foi 3 cruzados e 2000 euros
Dos seios ao zelo nenhum cabelo
Saio em pus
Povere
Grito abundância
Deflorar em ventre o branco
Risco em medo
Minha marca é a ranhura
Açoite claro
Calo calmo
falecer de meu filho
Desarmado é a porta
Vá meu menino,
Povere
Nila Clara (Rio de Janeiro – RJ)
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FRANCIS BACON 2
Um Papa perfeito copiado
Dá régua ao meu perfeito par.
O espanhol me obstina.
Meu amante faz o que eu busco
No espanhol:
Guia meu olhar obtuso
Na convulsão viva do verdadeiro.
Reajo do que vejo, com a mão!
Contorce o que represento,
Fixa a realidade que é gauche,
‘Desposiciona’, amplia: síntese.
O ‘subjeto’ está aqui!
Como posso mostrar o que leio?
Você está vendo tudo isso?
O papa, meu amante, a realidade...
O contrário é quase impossível.
Tempo, corpo e espaço
Sintetizados entre a tela e observador.
A quem pertence o meu olhar?
Com quem dialoga quando fala?
Entre o papa e o amante,
Sou o fruto.
Dou gosto e cheiro.
Guilherme Martins Pinheiro (Rio de Janeiro – RJ)
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GARIMPO
Mundicão, terra, terreiro de danar
Pedra, bateia: Carajás
Povo, peleja: multidão, multidão
É assim, mata, mosquito, no Pará
Supra-suplício: vai ‘guentá
Some na selva: é capim, é capim
“Num me vô”, grota, grilhão, um igarapé
Cinta, chicote, caixão qualquer
Círio, silêncio, pelo Senhor,
“não sinhô”.
Ulisses Dias (Rio de Janeiro - RJ)
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PARIR É UMA METÁFORA
para Alice Guy Blaché
embora excitada com a ideia
de uma cegonha enfiando o bico
na pureza assexuada
a falta de orçamento para penas
e sangue cenográfico
me levou à realização da fada
que arranca meninos de repolhos
na horta do quintal
foi o máximo ouvir o berro
dos operários enquanto ela apagava
o número de série do bebê
que reluzia na cena final.
Adriana Gama de Araújo (São Luís – MA)
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ENCONTRO 4
gosto das noites bem dormidas,
quando a palavra se enrosca ao sono
e reforma o delírio,
quando você me visita
(bem na hora em que me dou conta de que o relógio já deveria ter tocado)
é que você sempre chega atrasado
você tem hora marcada com o quase
a porta fechada da mercearia já conhece seus
d e s a p o n t a m e n t o s
os ponteiros estão soltos na mesa de trabalho
e você já não sabe dar corda ao tempo
você chega quando a Revolução esfria
e, na verdade, você nem chega
(a Revolução, tampouco).
Carla Ferroli (Rio de Janeiro – RJ)
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