por Natália Quinderé
Nascer do sol
Pedaço da instalação My Birth (2018) de Carmen Winant
Duas paredes formam um grande corredor de imagens retiradas de livros, panfletos e revistas de mulheres em trabalho de parto. A instalação de Carmen Winant[1] possui cerca de 2.000 reproduções. Desde a primeira vez que vi fotos dessa colagem uma imagem assaltou meu olhar. No canto superior direito desse recorte da instalação, vemos uma espécie de bola de fogo em preto e branco com sua circunferência iluminada. Tente encontrar a lua. Olhamos de novo, de novo e novamente: é o momento em que a cabeça de uma/um bebê é cuspida para fora do corpo da mãe. Nas inúmeras fases de um parto o círculo de fogo é caracterizado pela ardência que sentimos no período expulsivo – a etapa derradeira. O colo totalmente dilatado se abriu, e a cria atravessou o canal vaginal. Nossa tarefa, nesse instante, é fazer com que a criança deslize sem provocar nenhuma laceração ou rasgo maior. Esse seria um dos motivos pelos quais algumas pessoas advogam o parto vaginal sem anestesia. A mulher conseguiria controlar, no círculo de fogo, o movimento da criança sem sofrer nenhum ferimento grave.
O parto do meu primeiro filho foi rápido. Entrei no hospital às duas, três horas da manhã. Ele nasceu às 6h10. Ainda no quarto do hospital, lembro-me de um familiar nos olhar e dizer: “ufa, agora tudo vai passar!”. Pude sentir seu alívio. Uma brisa de poucos segundos. Os meses de sofrimento seriam águas passadas. Dias depois a tristeza chegava a galope. Naquela altura uma amiga psicanalista tinha tomado um pouco as rédeas da situação. Antes do parto, foi me visitar e disse: “você precisa de uma ajuda mais agressiva”. Estávamos num dia infernal do verão carioca. Conversamos no quarto até a noite, de portas fechadas. Ela me colocou em contato com uma psiquiatra especialista em mulheres grávidas. Virginia, que trabalhara a vida inteira numa maternidade pública, me acolheu sem hesitar. Viria então a etapa mais difícil, achar o medicamento certo para me ajudar a sair daquele gozo.
Uma das características que Carmen Winant afirma atravessar sua instalação é a falência dessas 2.000 imagens em descrever a experiência do parto. Para a artista, o acúmulo de reproduções expõe a ideia de que não existiria uma maneira única de abarcar o “dar à luz”. Meu nascimento explora, diz Carmen, o colapso entre imagens, a fratura da experiência por meio da adição. Mesmo no título da instalação, Winant amalgama tempos distintos de sua vida: o de seu nascimento (filha) ao nascimento de seu filho (mãe). Para cada parto, uma mãe. Para cada parto, uma criança. O imaginário social da maternidade sem conflitos, fincado na ideia de que toda mulher desejaria ser mãe, da beleza de se estar grávida ao amor incondicional a suas crias é um coro autoritário que nos acompanha. Do abismo que cavei no chão do banheiro, onde passava horas sentada com náuseas e chorando diante da privada, escutei repetidas vezes frases feitas. Aquelas que, somados sujeito + verbo + predicado, não nos dizem nada – “agradeça a Deus a sua vida” ou a clássica “você amará seu filho assim que colocar os olhos nele”.
Félix Guattari, em depoimento pessoal sobre sua depressão, afirma que existiria uma maneira de aproveitar para si o paroxismo, a vertigem da autodestruição imposta pela doença: “a gestão da depressão é aceitar a vertigem da abolição, mas através dela mesma reconstruir um mundo. [...] Não chegaria a dizer encontrar a sensatez”. No colapso entre as palavras de Guattari e a instalação de Winant posso dizer que a maternidade se faz na tentativa de reconstrução constante de mundos. Quais mundos de experiências compartilhadas e distintas poderemos construir e reconstruir juntas? Eu, você, nossas filhas e nossos filhos. Como imagem mais forte de meu primeiro parto me lembro do cordão umbilical pulsando por minutos. Ou foram horas? Uma viagem onírica engendrada pela avalancha de ocitocina. A médica se perguntava quando aquele cordão gigantesco meio azulado e avermelhado deixaria de pulsar para conseguir cortá-lo: “Agora ele é do mundo”, disse a pediatra.
My Birth (2018)
Corpo sororo
Luiza Baldan em “Corpo sororo” (2020) recorta, cola, monta em ensaio falas de artistas, escritoras, pesquisadoras sobre a experiência de estar grávida, de ser mãe. O ensaio foi escrito a partir de conversas da artista pelo WhatsApp com cada uma dessas 17 mulheres. Gostaria de escutar, um dia, o Corpo sendo lido por muitas mulheres ao mesmo tempo em um espaço público.
O ritmo maternal é muito outro. Duas filhas é uma multidão. Isso me coloca num ritmo de vida turbulenta, o tempo todo você está fazendo coisas ali, você leva e busca na escola, vai fazer um almoço, lava a louça, não tenho ajuda em casa, tenho uma faxineira que vem ocasionalmente. Agora minha mãe está pagando uma pessoa para me ajudar todos os dias aqui em casa porque eu preciso escrever. Esse ritmo de cuidar dos filhos é muito acelerado. Você tem coisas ali pra fazer, e a criança não espera, é aquela hora dela, hora de comer, de dormir, de trocar a fralda, de brincar, de guardar as coisas, é uma coisa atrás da outra freneticamente. Ações, ações, ações, uma depois da outra. E daí eu comecei a estudar, e o estudo é lento. Pra você ler um livro, você demora. Você vai lendo, e a leitura associada ao pensamento é lenta. Mas no princípio eu não entendia isso. “O negócio não vai, não anda, eu leio e não saio do lugar. Na hora de escrever, eu não escrevo nessas duas horas que eu tenho. Nossa, duas horas que eu tenho pra escrever e não produzo nada.” É uma dificuldade enorme de conciliar esses ritmos, da vida, da turbulência do cuidar, com o ritmo de outra natureza e velocidade que é a pesquisa, o trabalho artístico.[2]
Os pensamentos não me davam descanso; em taquicardia, o coração os reproduzia. Foi a urgência de vida do bebê: mamar, dormir, mamar, dormir, cagar, mamar, dormir, ninar, ninar, ninar, tomar banho de sol, dormir, dormir, dormir, mamar, mamar, mamar, mamar, mamar, mamar, mamar. Sua urgência pela manutenção da vida me retirou de um estado inerte. Não sentia fome. Comia bananas. Era fácil. Minha mãe me deu de comer algumas vezes no banheiro. Dormia pouco. Os banhos eram longos. Uma maneira de ficar sozinha em casa. A psiquiatra achava estranho. Estava ruim. Péssima. Mas. Mas. Você cuida dele. Meu cuidado com o neném não batia com um dos sintomas da depressão perinatal – “incapacidade de cuidar adequadamente do recém-nascido”. No ápice da crise troquei de psicanalista e psiquiatra. Para análise, ia a pé, com ele dentro de um sling. Ele era do mundo. Seu mundo era eu.
As expressões depressão gestacional e depressão pós-parto deixaram de ser usadas com o passar do tempo. Depressão perinatal, diz-se, aumenta o risco de prematuridade, provoca crises de choro, apatia, sonolência, insônia, anorexia, compulsão alimentar, perda da libido, ansiedade, crises de pânico, falta de interesse e cuidado com o recém-nascido, alterações emocionais que interferem no relacionamento mãe/filho, além de possíveis tensões nas relações familiares. Leio ainda que a depressão materna pode prejudicar o desenvolvimento neuropsicomotor da criança a médio e longo prazos. Não pense nada negativo. O bebê sente tudo na barriga da mãe. Conversa com seu bebê. Coloca música para ele. Alisa a barriga. Você fala com seu bebê? Pensa positivo. Ok. Não chora. Pensar positivo. Pensar positivo.
Em uma googlada encontramos números dignos de uma pandemia: por volta de 350 milhões de pessoas sofrem de depressão no mundo. O coronavírus atingiu, até 26 de novembro de 2020, 60,4 milhões de pessoas. No caso da depressão, mulheres possuem duas vezes mais chances de ter a doença. Sigo lendo: um estudo da Universidade da Califórnia diz que a propensão das mulheres à depressão pode ser resultado de processos inflamatórios no cérebro, além da flutuação hormonal e da genética. Não iremos concluir apressadamente, diz alguma responsável pelo estudo, mas é um caminho. Em “Depressão e autenticidade” (Folha de S. Paulo, 20 de agosto de 2013), Vladimir Safatle registra que “em torno de 20% das mães terão um episódio depressivo nos primeiros três meses após o parto, 7,1% terão um episódio grave”. E conclui que “uma em cada cinco mulheres passará por depressão ao tornar-se mãe”. Não estou sozinha. Zero alívio. Safatle conclui o bê-á-bá. Números tão expressivos sugerem um sintoma no interior da nossa estrutura social. Se cavarmos esses números para desenhar essa estrutura, descobrimos que mulheres de baixa renda, com um ou mais filhos, sem apoio parental e social, e com baixa escolaridade estarão em situação mais vulnerável para desenvolver a doença. Pesquisas salientam a necessidade de o poder público incentivar a formação escolar completa para proteger essas mulheres.[3]
Corpo sororo é um encontro entre mulheres e mães. Primeiramente, uma conversa de Luiza com cada uma – Carol, Clara, Maria, Duda, Glaucia, Maria, Amanda, Ana, Bianca, Cecília, Chiara, Lais, Laura, Keyna, Mara, Natália, Paula. Luiza faz as conversas entre duas girarem em roda. As falas sobre desejos, cotidiano, tempo, aborto, vida, morte, trabalho, ritmo, subalternidade, práticas do cuidado, gestação, parto estão compartilhadas. Corpo sororo busca torcer a falação idealista da mãe, multiplicando, pulverizando, concatenando experiências individuais em um corpo coletivo anônimo. “O ritmo maternal é muito outro. Duas filhas é uma multidão. Isso me coloca num ritmo de vida turbulenta” – essa fala é minha e não é.
Lis brinca com o desdobramento da obra anfitriã (2018), de Maria Palmeiro, realizada na auto residência de mulheres artistas na serrinha do Alambari, RJ, janeiro de 2019
Os especialistas não sabem muito bem quais seriam as funções das estatuetas femininas do paleolítico superior europeu. Uma das teses é a de que as Vênus serviriam para a compreensão das mulheres sobre as transformações de seu próprio corpo. A maioria das estatuetas é de um período de crescimento populacional, de uma restruturação econômica e cultural. As imagens femininas do tamanho da palma das mãos teriam nos ajudado a dominar e controlar os diferentes ciclos – puberdade, menstruação, sexo, concepção, gravidez, parto, aleitamento. A tese mais difundida de que homens teriam moldado essas figuras pequeninas é posta em xeque. Arriscar imaginar que foi o olhar feminino sobre si que as moldou[4] põe nossa sobrevivência na palma de nossas mãos e em partilha.
Autorretrato
Os riscos de E.V.A. (Experimentos em voos artísticos) (2004), Oriana Duarte
Autorretrato 1
Adrian Piper, em 1971, se autoexilou em seu apartamento durante dias para ler A crítica da razão pura, escrever, fazer yoga e longos períodos de jejum. Piper pendurou uma câmera fotográfica e um gravador ao lado de um espelho de corpo inteiro e, nos momentos em que sentia medo de perder o controle da realidade, se fotografava diante dele. Uma maneira de se checar, a artista afirma. No gravador repetia a passagem da crítica kantiana (cantando) que a levava a um estado de transcendência. Food for the spirit é um conjunto de 14 fotografias pb do reflexo da artista no espelho. Sempre me impressionou a figura de Piper nesse conjunto de imagens. Às vezes nua, às vezes de calcinha preta, outras vestida de preto, seu reflexo brinca de desaparecer e aparecer diante do espelho e de nós. Embora a artista sugira que as fotografias serviriam para agarrar seu corpo num instante de falta de controle de si, seus reflexos misturados ao ambiente de pouca luz estilhaçam a ideia da existência de apenas uma imagem de Piper. Food for the spirit insiste em mostrar que não há construção totalizante do eu. [5]
Fugi dos grupos de mães. No chão do banheiro desvinculava minha tristeza da gravidez. Guattari afirma que a depressão é um esgarçamento do sentido do mundo, uma aterrisagem na existência no que ela tem de mais proximal. A depressão é um estado “em-si-mesmado”. Um lockdown. Um autoexílio. Um corte violento com o mundo. Estado de suspensão. Contraditoriamente, o corpo funciona a todo vapor na inércia – coração acelerado, cabeça que não para de pensar, estado de alerta, hormônios em excesso acordam o corpo. A gestação e o puerpério têm um quê de confinamento.[6] Na privação do sono/no sono sem fim, o corte com o mundo acontece. A aceleração na casa de um bebê recém-nascido é de outra ordem.
Gabi vem almoçar. Cris, Luisa, Camila, Ana, Manu, Léo, Talitha, Renata vieram comer boulos. Lívia trouxe uma pizza. Amigas e amigos de longe telefonam. Querem fotos do neném. Bia me leva para passear com Marília. André e Inês passam sempre. Fernanda vem jantar conosco. Júlia ronda. Manu e Júlia mandam notícias. Teo está crescendo também. Um silêncio me guia entre as visitas. Levar ao parquinho. Voltar. Dar banho. Peito. Dormir. Trocar. Colocar roupa para lavar. Tirar da máquina e colocá-la no varal. Comer. Lavar louça. A licença paterna dura 20 dias corridos – 20 dias de corridos! Durante um bom tempo não fiquei sozinha em casa. Não era recomendável, afirmava Virginia. A solidão estava, ali, com a casa cheia. No lockdown. No chão do banheiro. Debaixo do chuveiro. Na ida para a análise muitas vezes na semana. Na sala de espera. Quando o silêncio me incomodava cantava nossa rotina para fazê-lo dormir.
Autorretrato 2: ele ficou arrasado quando ela partiu
Seu nome é Lurdinha.
Morrer
Frame de “Pas pu saisir la mort” (2007), Sophie Calle
Minha mãe conta que um dia no supermercado fui atrás de um estranho afirmando que ele era meu pai. Eu tinha cinco, seis anos talvez. Os fantasmas possuem essa característica. Estão por todo lado, ainda que não consigamos agarrá-los. Quando morremos os outros têm direito exclusivo de narrar nossas histórias, contar causos. Conheci meu pai sendo contado por outros. A namorada que deu um chute em sua bunda porque ele não queria casar. O medo do avião. A falta de humor. Os banhos que deu em minha irmã na pia da lavanderia. O amor pelos meus padrinhos. Os poemas ruins e versados. O gosto por alienígenas. Na tentativa de saber sobre ele, corri os olhos inúmeras vezes pelas imagens que minha mãe guardou de maneira desordenada. Tem um sorriso charmoso. Olhos pequenos. Careca aos 20. A testa é da minha irmã, com certeza. Na gravidez voltei aos álbuns de minha mãe e busquei imagens minhas com ele: uma saída para a praia de Iracema; um banho de sol; um banho na pia de casa, um final de semana em Morro Branco.
Encontrei fotos suas de um passeio na praia de João Pessoa com uma ex-namorada. Ela tem cabelos negros bem lisos, na altura da cintura, pele morena e um biquíni preto. Minha mãe não se lembra do seu nome. Não sabe nada sobre ela. Uma prima me disse que talvez seja Lurdinha. Papai devia ter 20 e poucos anos. Ele está de bigodinho, ainda com algum cabelo no topo da cabeça, e de sunga xadrez. Estão felizes. Parecem apaixonados. “Seu pai era louco por ela. Mas fugiu.” Ah, disso entendo! Posso me ver nele. Amar demais dá um medo danado, de enlouquecer, de perder, de viver. Medo de morrer. Durante a gravidez pensar a morte me ocupou desde o terceiro mês de gestação. Sentia seu cheiro. Aquele cheiro que invade os nossos dias quando morre alguém.
Cresci vendo minha gatinha parir suas ninhadas. Gal se isolava num canto da casa, escondida, para ter seus filhotes. Quando todos nasciam, passava horas lambendo suas crias. O trabalho de parto não terminava no parto. Na cadeira de escritório do hospital, à espera da ginecologista, pensava nos partos da gatinha cinzenta da minha infância, enquanto me girava a cada contração. A enfermeira sorria: “Tem certeza de que não quer se deitar?”. Deve ser fácil – pensava, medrosa. Gal pariu inúmeras vezes; os animais lá do sítio também. O corpo, na hora do parto, nada tem a ver com a assepsia que funda o corpo contemporâneo, especialmente o feminino – sem marcas, rugas, gordura, pelos, sangue, sem dor nem morte. O animal espremido lá no cantinho da parede era eu. E eu estava parindo.
Língua láctea [7]
A descida do leite foi penosa. Calafrios. Febre alta. Peitos tesos. Sinto a pressão, as pontadas, a ardência. Estão cheios. O neném chora. É preciso achar a embocadura = auréola + boca do neném. As inúmeras técnicas entram e saem do quarto repetindo que é preciso, “mãezinha”, dar um peito distinto a cada mamada de três em três horas, no mínimo de 40 minutos. Odeio a falsa condescendência que o “mãezinha” carrega. Faça massagens circulares! Me ensinam a me ordenhar. Sensação estranha. Você está segurando o bebê da maneira errada! A melhor maneira é assim: levantam o neném e o ajeitam no meu colo. Em casa novamente. O neném chora. Peito teso. Sinto a pressão, as pontadas, a ardência. Meu peito direito está empedrado. Faço as massagens tentando acertar. As visitas circulam, nervosas, pela casa. O neném precisa mamar – me avisam. Ele precisa comer – repetem. Me peço calma baixinho sem querer ligar para o alvoroço. Queria ter coragem de gritar e mandá-los à merda, todos, sem exceção. Conto até 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2...
Sua boca agarra meu peito.
Print de post de Cecilia Cavalieri na semana internacional de amamentação, em 02 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/ceciliacavalieri/
Na cosmopolítica da artista Cecilia Cavalieri em torno do leite materno, descobrimos que Via Láctea significa “caminho do leite”. Em um dos inúmeros mitos coletados por Cavalieri, lemos que, uma noite, enquanto dormia, Hera foi surpreendida com o bebê Hércules levado ao seu seio por Zeus. Dando-se conta, Hera retira da boca de Hércules seu peito, e dele sai um jorro que se espalha no céu. [8] As constelações da artista desenham as tensões econômicas, sociais, políticas e de gênero contidas no ato de dar o peito e demarcam um território de resistência para mamíferos humanos e não humanos. É nele que Cavalieri expõe as transações entre linguagem e a língua-leite. Essas transações compartilhadas e horizontais possuem conexões tanto com o jorro do leite na boca dos lactentes – o neném controla quantidade, qualidade e composição – quanto o jorro do leite que se espalha sem pedir licença pelas coisas do mundo. O esguicho de leite fala de uma perda ambígua do controle do corpo feminino, gozo/repressão.
Se o trabalho de amamentar pode ser abarcado pela expressão “feminização da pobreza”, cunhada por Donna Harraway, ainda na década de 1980, para designar o desmantelamento do bem-estar social e a precarização do trabalho remunerado em torno do baixo salário das mulheres, dar o peito, especialmente em “livre demanda”, abre uma fratura na estrutura capitalista – fincada na branquitude, no patriarcalismo, na misoginia, na institucionalização espaçotemporal e no controle dos corpos de vulneráveis. Dar o peito é poder suspender o tempo produtivo. É tempo não institucionalizado. Não me surpreende que as taxas de amamentação exclusiva nos seis primeiros meses de vida das crianças, tal como recomendado pela OMS, são menores em países ricos. Essas mesmas taxas nos países de renda média e alta estão em queda. [9] Cecilia Cavalieri escreve, “apenas quatro em cada dez bebês no mundo são alimentados exclusivamente com o leite materno nos primeiros seis meses de vida”.
Busca por "Madonna Lactans" no Google
Dar o peito foi uma das “práticas de si” que me retiraram do autoexílio, do estado “em-si-mesmado” da depressão. As dores do peito empedrado. A pressão, as pontadas, a ardência iam desenhando minha realidade. Os peitos sempre tesos. Logo percebi que não ia rolar dar apenas um peito por vez. O leite iria empedrar um dos meus peitos sempre prestes a explodir. Teria que escutar meu corpo, apesar das ordens e da estranheza alheia. Foi e sempre será uma luta fazer perceber que o corpo é meu. Viva o troca-troca de peitos! Percebi ainda que nossas crias sabem quanto devem mamar, se autorregulando. Com o método instituído, estaríamos, eu e ele, no fundo de uma rede durante dois anos e oito meses. O neném chapado de leite. Dormindo sobre mim. O leite jorrado no mundo. Excesso de tempo improdutivo. Aceitar está fora do tempo. Existe um fora? Expor o descontrole do meu corpo. O gotejar de leite em momentos “inoportunos” – do ônibus ao seminário. O jato de leite banhando a cadeira na casa de um amigo quando a boca do bebê nos escapa.
Era tempo de lalação:
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LáááááLáLálaLalalalalaaaaaaaaLaLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL
Uuuuuu
Ah!
Uuuuuuuu
Ah!
Ah!
m-m
“Língua-láctea” é tudo aquilo que transborda.
Círculo de fogo
Curvas de nível (2020), nanquim sobre papel recortado, Julia Arbex
Na fase do parto conhecida como círculo de fogo a cabeça da cria está quase coroando, e o períneo alcançou seu estiramento máximo. Daí a sensação de queimação. Logo, logo, o neném chegará ao mundo. Círculo de fogo também designa uma região do Pacífico marcada pela presença massiva de vulcões, terremotos e tsunamis. São cerca de 450 vulcões ativos ou adormecidos. O Círculo se desenha através das inúmeras fossas geológicas nos pontos mais profundos da crosta terrestre, nos oceanos. Elas seriam o resultado dos encontros entre placas tectônicas. Situado a oeste das Américas e a leste da Ásia e Oceania, o Círculo ou Anel de fogo como também é chamado possui 40.000 quilômetros de extensão, atravessando, entre outros, Japão, Tailândia e Indonésia. Essa região é responsável por 90% dos abalos sísmicos do mundo e abrange 50% dos vulcões existentes no mundo.
Werner Herzog, ao ser perguntado por um cientista se entedia os vulcões como algo destrutivo, lhe responde: definidamente não. O cineasta explica que foram os vulcões que propiciaram a atmosfera necessária para nossa sobrevivência, humana/não-humana (Visita ao Inferno, 2016). Herzog explica “o solo pelo qual andamos não é permanente. Não há permanência no que estamos fazendo, nem permanência nos esforços do ser humano, não há permanência na arte nem na ciência. Há uma crosta que, de alguma forma, está se movendo [...]”. No decorrer do filme de Herzog, somos expostos a uma série de mitologias criadas ao redor dos vulcões e também do fogo cuspido deles. Diante da força desconhecida das explosões, comunidades de regiões diferentes do globo criam rituais para conseguir fazê-los dormir, para domá-los.
Durante a quarenta do coronavírus, Julia Arbex tem trabalhado em uma série de geografias, moldadas em papel e desenhadas com nanquim. Arbex as chamou de Curvas de nível. No interior do mesmo processo, a artista criou uma série de volumes pintados em tons de verde (Curvas de terreno), além de fragmentos volumétricos chamados de Fracções – desenhos de recorte. Quando a perguntei como era o processo de construção dessas formas, Arbex me explicou que suas geografias eram forjadas no processo de trabalho, na rotina diária. O que descobrimos é uma série de estruturas ilhadas, com cumes, acidentes, crateras e rasgos em formas de manchas, linhas, recortes. Desses trabalhos, me interessa como o processo da artista vai sendo urdido por um não-saber. Julia Arbex está criando uma geografia movente, ilhas sem coordenadas possíveis. Embora existam equipamentos avançados capazes de prever erupções vulcânicas, o despertar de um vulcão possui ainda capacidade de nos surpreender. Os caminhos do fogo nos hipnotizam.
É possível sentir a chegada da hora do parto. O corpo se prepara. A barriga pesa. O colo amolece. A criança se vira, gira espremida. Não há mais espaço. Às vezes é possível ver os quiques na barriga da mãe. Sua cabeça aponta para o canal vaginal. Normalmente nos esquecemos que parir envolve movimentos de duas subjetividades, o da mãe e o da cria. Se no período expulsivo nosso corpo nos avisa a cada contração que é hora de fazer força para parir a cria (apesar do medo, do arrebatamento, do estado de vigília, do cansaço, da dor), a criança também se move para fora. Ela é toda desejo. Chegou a hora de ser cuspida.
Frame de "Visita ao inferno" (2016) de Werner Herzog.
Dedico esse ensaio a Inês Carneiro, a que não tem medo de vulcões. Agradeço as leituras generosas de Cecilia Cavalieri, Maria Palmeiro, Mariana Pimentel, Mayana Redin e a revisão de Maria Helena Torres. Meu obrigada também a Julia Arbex, Luiza Baldan e Marina Fraga.
Notas
[1] Agradeço a Mayana Redin ter-me apresentado o trabalho de Carmen.
[2] Baldan, Luiza. A imagem no fim. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais. Área de concentração: Linguagens visuais. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, mar. 2020, p. 135-136. Disponível em: <https://www.academia.edu/42757803/A_imagem_no_fim_Luiza_Peixoto_Baldan>.
[3] Salum e Morais, Maria de Lima et al. “Fatores psicossociais e sociodemográficos associados à depressão pós-parto: um estudo em hospitais público e privado da cidade de São Paulo, Brasil.” Estudos de Psicologia, 20(1), jan.-mar. 2015, p. 40-49. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/epsic/v20n1/1413-294X-epsic-20-01-0040.pdf>. Acessado em 27 nov. 2020.
[4] McCoid, Catherine Hodge; McDermott, D. LeRoy. “Toward decolonizing gender: female vision in the upper paleolithic” [Para a descolonização do gênero: visão feminina no paleolítico superior]. American Anthropologist, new series, v. 98, n.2, jun. 1996, p. 319-326. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/682890>.
[5] Ler Haraway, Donna J. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX.” In Tadeu, Tomaz (org. e trad.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p. 52.
[6] Ler Palmeira, Marília. “Trabalho de parto.” Disponível em: <https://teteia.org/post/617936396288737280/trabalho-de-parto>. Acesso em 27 nov. 2020.
[7] A expressão utilizada por Cecilia Cavalieri em suas pesquisas viria de uma co-contaminação com a pesquisa de Luciana di Leone, na Abralic de 2016. Em “A economia do leite: corpo, nutrição, linguagem em alguns poemas na Argentina”, Luciana usa a expressão “fala láctea” retirada de O prazer do texto, de Roland Barthes, que menciona “esses fonemas lácteos que o jesuíta maravilhoso Van Ginneken colocava entre a escrita e a linguagem” e ele, Barthes, definiria como “movimentos de uma sucção sem objeto”. Em 2018, Luciana publica “A poesia latino-americana: por uma poética do corpo grávido e da língua láctea”, em Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível (org. Gustavo Silveira Ribeiro, Tiago Guilherme Pinheiro e Eduardo Horta Nassif Veras. Belo Horizonte: Quixote+Do). Cecília mapeia a expressão em outras escritoras: Tida Carvalho no zine Barkaça 6, em Robert Marteau, no poema “Le pain, le vin”. Em troca de email, me envia o poema “Saudade”, de Marina Tsvetaeva (03 de maio de 1934): Saudade! Um mal-não-mal, há muito, em mim, desmascarado: é indiferente, tanto faz onde viver-me-em-mim-ao-lado, / se na viela – para casa, com a sacola – ou na sombria toca minha – se for minha – vago catre de enfermaria, / ou no quartel. Pouco importa se vou ser presa – leão na jaula ou posta no olho da rua pelo dono e senhor da porta. / Sem tino ou rumo – urso perdido – patas entre placas dançantes – onde humilhar-me ainda, por uns tempos – pior que antes? / De minha própria língua-láctea, vou tresmalhar via e caminho, pois conta pouco em que idioma não vai compreender-me um Zinho/ que passa – grão-leitor de torres de papel, em sebos de traças... Tempos modernos, sei – mas sou alguém aquém e além das raças! / Virei de pedra um tronco torto, torso sobrado em alameda. Tudo se iguala e arremeda, – e, mais que tudo e mais que todos / o que um dia me foi caro, marcas de mim... tarefas... datas... foi-se também, também se foram – alma penada reencarnada! / Tão longe desterrou-me aquela terra-mãe, que o refinado faro de um policial, fungando-me a alma, nem cheiro sentiria dela. / Tudo é-me igual e igual a mim (“No templo, é estranha; em casa, estorva”) – mas não, talvez, onde sentisse doce... o amargo fruto da sorva.
[8] Vale ler a cosmopolítica de Cecilia Cavalieri em formato de post na Semana Mundial de Amamentação, disponível em:< https://www.instagram.com/p/CDb5O8HpT5Y/>. As mitologias reunidas pela artista também estão em: <https://materlactea.github.io/selvagem/>.
[9] Ver post de Cecilia Cavalieri “O seio que amamenta é perigoso: 4/7”, 5 de agosto de 2020, disponível em: <https://www.instagram.com/p/CDhftpMJ3Fi/>.
Natália Quinderé é coeditora de Teteia (teteia.org) e doutoranda em História e Crítica de Arte pela UFRJ. Participou da coletânea "Art museums of Latin America: structuring representation" (Nova Iorque: Routledge, 2019), com o ensaio “Pedrosa and Malraux: impossible meetings in the museum of copies”. Foi selecionada, em 2019, para a bolsa de curadoria oferecida pelo Goethe Institut/Instituto Francês do Rio de Janeiro, com o projeto “Musée-Museum: 15 dias, 4 horas, uma obra-prima”.
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