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Foto do escritora palavra solta

Caroline Valansi e a construção de uma erótica contra-hegemônica

Atualizado: 14 de set. de 2020

de Pollyana Quintella



A sexualidade deve ser tratada com atenção em tempos de grande estresse social, anuncia o trabalho luminoso, em led. Sob muitos esgotamentos, nossos corpos têm respondido com teimosia ao endurecimento do presente. Teimosos são os corpos que não aguentam mais, mas seguem pra lá e pra cá, incessantes. Teimosos esses corpos que dormem, acordam, comem, cagam, trepam e desejam, embora restem escombros. O que é essa atenção de que fala a frase no trabalho? Creio que seja um bom ponto de partida para pensar a respeito da pesquisa de Caroline Valansi, seus percursos e inquietações.



Caroline Valansi, Tratado, 2019


No início deste ano, pude curar uma exposição individual da artista no Centro Municipal Hélio Oiticica, no centro do Rio de Janeiro, quando reunimos um conjunto de trabalhos realizados nos últimos anos. Ao entrar no espaço expositivo, o público se deparava com outro led luminoso, desta vez anunciando que “Cinema também é templo”. Parte de suas letras eram de um antigo cinema de rua, o Cine Tijuca, hoje já inexistente, e que pertenceu à família da artista. Além disso, era possível ver ali intervenções em cartazes de filmes históricos, fotogramas, serigrafias e intervenções digitais que criavam entrelaçamentos entre a indústria cinematográfica e a erotização dos corpos femininos em diferentes momentos históricos.


Não era raro que, diante daqueles trabalhos, o público começasse a acessar memórias pessoais com o cinema, ao investigar as promessas que a sala escura nos faz: pequenos encontros eróticos, intimidades não autorizadas, momentos de introspecção, distração de problemas outros. Rita Lee já havia capturado o nosso fascínio: “No escurinho do cinema / Chupando drops de anis / Longe de qualquer problema / Perto de um final feliz”. Estar no cinema pode ser um escape da realidade ou, ao contrário, um mergulho de cabeça nela. Deve haver um final feliz, nos sussurra a indústria cinematográfica.


Exposição Cine Desejo, Centro Municipal Hélio Oiticica (CMHO), Rio de Janeiro, 2020.


Cinema Também é Templo, 2016


Mas as coisas mudam, as coisas mudaram. A cidade do Rio de Janeiro, durante os anos 1960, chegou a possuir quase duzentos cinemas de rua, embora hoje conte com menos de quinze. Eram estabelecimentos que funcionavam como grandes centros de socialização, e contavam com uma estética própria. Com o tempo, caíram em decadência em função da TV, da internet, além da especulação imobiliária, dos shoppings e dos serviços de assinatura.


Muitos foram substituídos por igrejas — espécies de contra-cinema. Outros, ao contrário, transformaram-se em cinemas pornográficos para sobreviver, alimentando um vasto imaginário com produções de todo tipo, de pornochanchada a Hollywood.


Contudo, além de reforçar nossa relação de encantamento com as imagens, são também os filmes que demarcam fortes relações de poder. Afinal, quem pode narrar e representar, tornar visível? Como a sexualidade feminina é representada na tela ao longo das décadas, ao fazer da mulher mais objeto do que sujeito? É provocada por essas questões que a obra de Valansi atua na tríade imagem-poder-sexualidade, ao buscar construir uma outra imaginação sexual que responda às imagens canônicas.


Aqui, nos cabe considerar a discussão colocada pelo pós-pornô, que a partir dos anos 1990 reivindica um erotismo para além da genitália, ao compreender todo o corpo como um território a ser explorado, com múltiplos órgãos sexuais. Junto ao pensamento queer e aos estudos de gênero, o movimento também investiu em formas de questionar os padrões de beleza corporal. Paul B. Preciado, por exemplo, define o pós-pornô como um exercício de construção de nossa própria sexualidade, muitas vezes pautada pelo olhar e ação do outro.


É o momento em que corpos femininos, não brancos, transsexuais, deficientes, entre outras minorias sexuais, se empenham em garantir outras formas de produzir, circular e consumir imagens eróticas mais diversas que a fetichização mainstream, o que leva a artista e escritora espanhola Maria Llopis a afirmar que "O pós-pornô é teoria e carne". Trata-se de um processo simultaneamente individual e coletivo, engajado em ultrapassar a unilateralidade do discurso sexual e atuar com outras práticas significantes.


Em "Sempre um bom filme" (2015), Valansi combina uma série de peças de um antigo projetor 35 milímetros com fotografias pornô de mulheres em situação de orgasmo — um encontro entre o técnico e o subjetivo. Amplificadores, lanternas, lâmpadas e outros aparatos transmutam-se em objetos capazes de fornecer prazer feminino. Aquilo que outrora era utilizado para objetificar esses corpos têm seu papel invertido através de uma imaginação sexual que vai além da monocultura do pau/dildo. Também em "Pornografia Política" (2015), a artista se apropria de cartazes de filmes pornôs feitos a mão na década de 1980 e recontextualiza seus enunciados a partir da cena política brasileira. Ironicamente, Caroline se refere à baixaria da política nacional e, na via oposta, requisita o sentido político presente na sexualidade. É sexy o “jeitinho brasileiro”? Difícil não pensar nas cenas que viraram notícia de deputados vendo filmes pornô no celular durante sessões e assembleias, os mesmo que discursavam a favor da imaculada família durante a votação de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A família tradicional brasileira tem sérios problemas com a sua intocável moralidade.



Sempre um bom filme, 2015.


Pornografia Política, 2015


Mas, chamo atenção para o procedimento: em ambos os trabalhos, Valansi opera sobre imagens já existentes, recontextualizando-as para produzir um sentido invertido, deslocado.


É um modo de fabricar imagens que criticam nossa maneira usual de ver, criticam a confiança que depositamos sobre essas narrativas. Seu gesto produz uma espécie de distância em relação a imagem original, colocando-a em crise. É preciso enxergar a artificialidade presente em toda narrativa visual e o trabalho nos convida a isso.

É também o caso de "Corpo Cinético" (2018), em que uma série de colagens reconfigura imagens eróticas de corpos nus, ao perverter a perspectiva original. O olho tenta completar a cena, mas algo está fragmentado, fraturado, perdido. Além de suprimir a identidade dos corpos e reforçar o anonimato, essas colagens privilegiam uma noção de corpo como máquina, sexo como parte de uma engrenagem. Todos nós já fomos, somos ou seremos uma espécie de sex machine.


Corpo Cinético, 2018


Não se trata de abandonar a pornografia, o que seria recusar o direito a ficcionalizar nossa sexualidade ou perseguir nossos desejos a partir da representação, mas produzir torções nela, alargar seu campo de operação. Na série "Carne Viva" (2019), formas abstratas de forte contraste revelam aos poucos partes de um corpo interior feminino, como um zoom íntimo.


Se nos aproximamos um pouco mais, conseguimos ler adjetivos que performam outra feminilidade, entre o humor e a ironia. Não há qualquer figura aqui, ao contrário dos outros trabalhos. O vocabulário é sugestivo, e leva os leitores a imaginarem contextos eróticos não determinados pelas imagens comuns. Nesta mesma perspectiva está a "Cartografia", de 2020, quando a artista buscou mapear a relação de algumas pessoas com a palavra desejo, diagramando gatilhos, atrações, repulsas, fetiches. Com a obra, percebemos que o corpo produz seu próprio léxico e repertório, ora compartilhado, ora particular. Além disso, mais uma vez o sexo é pensado para além das imagens representativas, dando espaço para uma elaboração mais íntima e singular. Somos obras de nós mesmos, exercitando alguma escrita de si.

Diante de todos esses trabalhos, me vejo fazendo perguntas que não cessam de se repetir: Que mundos estão sendo criados pelos nossos desejos? Como desenhar uma subjetividade mais livre, mais singular? Não haverá final feliz, como deseja a música de Rita Lee, mas ao longo desse percurso esperamos construir territórios mais fecundos.

Carne Viva, 2019

Cartografia, 2020



*Você pode conhecer mais sobre o trabalho da artista em http://carolinevalansi.com.br/

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