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Foto do escritora palavra solta

Com os dois pés dentro da imagem: perguntas para Marcela Cantuária

Atualizado: 14 de set. de 2020

por Pollyana Quintella



(Fotografia: Vicente de Mello, 2019)



As imagens ao nosso redor estão em disputa. Estão em disputa aqui, nas telas do computador e do celular. Dividem abas, redes, aplicativos, eus virtuais, figurinhas de whatsapp. Estão também em disputa na minha mesa. Porta-retratos, reproduções fotográficas em livros, xerox barata, embalagens. Estão ainda em disputa na minha rua. Outdoors, estampas, logomarcas e assim sucessivamente...

Disputamos as imagens sobretudo porque elas parecem apontar algum resto de diferença. Revelam alguma parte que não conhecemos, capturam algo que não vimos. Não à toa as selfies são tão ingratas. De trinta tentativas, talvez uma seja publicável. Tentamos domesticar a diferença da imagem, amaciá-la. Nem sempre é possível. Mas convive aí algum fascínio -- afinal, estamos cada vez mais rodeados delas -- e também uma espécie de ameaça -- por elas somos condenados, julgados, marcados.

Além disso, percebemos que as imagens do presente transformam constantemente a narrativa do passado, e as imagens do passado, por sua vez, nos transformam no presente. Lutamos pelo direito de acessar as imagens velhas, repositórios resistentes de afeto e narrativa. Lutamos pela sua sobrevivência. Reproduzimos, restauramos, acondicionamos. Lutamos também pelo direito de acessar as imagens novas, horizontes de imaginação, aventura criativa, pistas do porvir.

Agora, em 2020, reivindicamos que cada um possa produzir sua própria imagem, mas tememos os sequestros das nossas fotos. As nuvens armazenam nossos nudes, o aplicativo reconhece a nossa cara, a câmera de segurança registra o delito, a webcam permanece ligada 24 horas. Um vídeo caseiro, despretensioso, pode virar meme ou acabar no site pornô. A máquina nos trai. Enviamos fotos sem querer. Já era. O poder, ao que parece, adora a performance visual: se julga capaz de controlar os símbolos, selecionar as imagens, fazê-las circular segundo uma finalidade específica. Mas, ironicamente, o que é imagem está em todo o lugar, e nem sempre de maneira autorizada. O museu solicita não fotografar, embora a gente dê um jeitinho. No meio desse embate, a produção artística se nutre de todo tipo de ambiguidade. Encontra-se nesse cabo de guerra entre imagem e poder, fricciona usos, reelabora sentidos, compõe ficções. Creio que o trabalho de Marcela Cantuária atue mais ou menos por aí. Os ícones de resistência do passado tornam-se indicativos de alguma força do futuro, memória do que foi e do que virá. A pintura é colagem de diferentes repertórios, ilha de edição contemporânea, conjugação de forças. É magia, alquimia, política. Marcela quer reconquistar as imagens, criar uma relação íntima com elas. Entre e-mails e mensagens de whatsapp, conversamos sobre o labiríntico universo da imagem. Aqui segue:

***

Polly: Marcela, eu sinto que a nossa geração sofre de certa dificuldade de imaginar, embora produza muitas imagens. Constantemente fracassamos no exercício de elaborar futuros possíveis, horizontes compartilhados. Ao contrário, desconfiamos cada vez mais das imagens, da capacidade que elas têm de nos representar. Seu trabalho, no entanto, nos convida a alargar esse imaginário. Há um embate com o desgaste da imagem, uma busca por uma visualidade própria. Enquanto pintora, gostaria que você falasse sobre o poder que resta às imagens da nossa era.

Marcela: Eu percebo que a nossa geração se nutre bastante de imagens então acabo me encontrando num campo fértil para criação. Para mim, uma imagem forte é como uma música que te faz chorar. Com ela vem a memória, cheiro, sensações. Então a partir daqui eu posso te dizer que a imagem exerce em mim um princípio lunar, que ativa a memória de afetos. Por mais que na maioria dos casos de exposição ou fruição das pinturas (principalmente agora em quarentena, rs) elas acabem circulando através da luz da fotografia, no instagram, em sites etc, as imagens que crio são concebidas – simbolicamente falando - sob a luz da noite, buscando o lado mais profundo do real que acaba fazendo fronteira com o sonho...



(Comissão da Verdade 1, série Futuro do Pretérito, acrílica s/ tela, 30 x 40 cm, 2018)

Polly: Falando sobre essa circulação digital, como você vê as diferenças entre a imagem-luz -- a reprodução da pintura no instagram, por exemplo -- e a imagem-carne -- quando estamos diante da própria pintura?

Marcela: Acredito que a imagem-luz não se fixa tanto na retina quanto a imagem-carne. As coisas passam muito rápido no feed do instagram, é um território até de disputa, pq quando eu posto uma pintura sei que o trabalho vai dividir a linha do tempo com propagandas, selfies, matérias de jornal etc... Agora, quando você vai até uma exposição, acaba doando mais tempo observando as faturas, sentindo as diferenças entre as escalas. Não dá pra ver a direção da pincelada por fotografia. Também tem o fato de que todas as imagens são reduzidas ao mesmo tamanho que caiba na tela do celular. Uma pintura vista na internet dá pra gente “ter ideia” do que é, mas só dá pra saber mesmo no corpo a corpo. Confesso que me aproveito desse lance de grande circulação da imagem-luz, transformando o espaço de legenda como sinopse da obra sabe, me interessa fazer que as pinturas sejam entendidas. São mulheres guerrilheiras, de luta que represento, então quanto mais rápido e democrático for a fruição dessas imagens, melhor. Então acaba que tem esses dois lados, ao mesmo que tempo que se perde pela técnica, se ganha na acessibilidade instantânea.



(Os mortos não estão mortos, óleo e acrílica s/ tela, 150 x 300 cm, 2020)

Polly: Seu repertório simbólico é múltiplo. Como uma cirurgiã, você vai costurando fragmentos de ícones diversos, que por vezes nos parecem pedaços de sonhos delirantes, mas identificamos ali alguns referenciais importantes. Às vezes, a pintura é a oportunidade de aprender sobre uma nova história. São figuras de resistência, narrativas resgatadas. Como se dá a coleta dessas imagens que compõem o trabalho?

Marcela: É como se eu registrasse tudo na mente (lê-se numa pasta infinita do pc) e num dado momento me ocorre uma grande desorganização mental, elas vem se embaralhando, criando outras camadas inéditas e eu me contorço para dar sentido a essa nova organização. Surge então a narrativa. Não chega a ser completamente lúdica, tampouco aleatória, porque eu considero o valor real das figuras e cenas retratadas. Esses corpos de luta, quando fundidos com elementos da imaginação (princípio lunar), acabam se caracterizando como um ponto de partida para algo que ainda não aconteceu. As imagens exercem para mim um tipo de prefiguração do futuro, uma possibilidade, como um dispositivo de esperança.



(Comissão da Verdade 3, série Futuro do Pretérito, acrílica e óleo s/ tela, 30 x 40 cm, 2018)


Polly: Tomo emprestado a pergunta de Marie-José Mondzain: a imagem pode matar? (rs)

Marcela: Eu pergunto: uma imagem pode resistir? O poder das imagens é absoluto, quando você olha uma imagem, você se transforma e ela não. A gente reflete, se incomoda, se questiona e a imagem segue imóvel, distante, às vezes enigmática. Eu diria que ela perturba o afeto projetado, podendo até perverte-lo. Numa perspectiva materialista da imagem, eu me surpreendo como quantos momentos decisivos na história se mantém vivos e se propagam através da imagem. Quando eu escolho uma personagem que se levantou contra as opressões impostas, eu penso individualmente em como manter a história dela viva, busco ser honesta com o que sobrou da história de cada uma. Não tem espaço pra cinismo, deboche. E como a história não permite espaços vazios, uma figura sempre te leva a outra que te leva a outra trajetória e assim vai, é gostoso pesquisar porque me inspira. Também considero muito importante a mediação entre a imagem e o público, para contextualizar o conteúdo, atribuir alguns sentidos, sabe. Quando eu posto uma pintura, coloco na legenda um pequeno texto e sinto que nesse momento dá pra criar uma ponte mais generosa para fruição, sem limitar a subjetividade de ninguém, mas para entender a pintura como um instrumento pedagógico.



(Voltarei e serei milhões, série Mátria Livre, óleo e acrílica s/ tela, 200 X 150 cm, 2018)

Polly: Uma imagem do passado:

Marcela: luta

Polly: Uma imagem do presente:

Marcela: de

Polly: Uma imagem do futuro:

Marcela: classes





(Nise da Silveira, óleo s/ tela, 150 x 110 cm, 2020)



Marcela Cantuária vive e trabalha no Rio de Janeiro. É bacharel em Pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Em 2020, foi convidada a participar da residência FountainHead, em Miami, nos EUA, e de uma exposição no Museu Instituto de América, na Espanha. Em 2019 abre, na galeria A Gentil Carioca, a individual “La Larga Noche de los 500 años”, mesmo ano em que realizou “Suturar Libertar” no Centro Municipal de Arte Helio Oiticica e participou das coletivas “Histórias Feministas”, no MASP e “Estratégias do Feminino” no Farol Santander em Porto Alegre, e das residências PAOS GDL no México e Kaaysa em São Paulo. Integra os acervos do Museu da Maré e do Museu de Arte de São Paulo. Seu site é o marcelacantuaria.com.br

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