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Foto do escritora palavra solta

Como rasurar este tecido traumático?

por Flávio Morgado


É possível pensar em alguma resposta a todo esse tecido traumático que se tornou o Brasil?



Ataque de bolsonaristas ao Planalto, 8 de janeiro de 2023. Fonte: Uol




Crise humanitária em Roraima, extermínio do povo Yanomami. Foto: Uol




Garimpo ilegal na terra indígena Yanomami, em Roraima. Foto: BrasildeFato




Bolsonaristas acampados em Brasília cantam o hino nacional para um tanque de guerra, 2023. Fonte: Século Diário




Ao montar esse breve álbum, já na pergunta feita pelo software, o engasgo: "deseja guardar como?". Existe outra possibilidade de ler essa frontalidade de Brasil, de um ethos escamoteado por séculos, que põe a sua cara monstruosa perante os mínimos avanços sociais conquistados, se não como um trauma?


Porque por mais que a estes engasgos, tenhamos o hábito do apagamento, do esquecimento, ou da anistia; não é este o papel político da memória, e o que o bolsonarismo levantou do lodo, traz de traumas e ritos de repetição do já-visto, são incontornáveis desta vez. E quando posta esta frontalidade, como a que roubou todas as pautas nos últimos quatro anos, devastou o país e ainda teve a audácia de tomar a Praça dos Três Poderes uma semana após a posse de Lula, não resta outra coisa senão nomear: e não no escorregadio e (agora) plausível "golpistas", que a Globo falando chega a me dar confusão; também não é categórico como um encaixe de uma luta de classes simples; estamos falando de um processo de luta contra o direito à vida, à soberania nacional (esse termo sujo de poder, mas frágil em nossas reservas ecológicas), ao diálogo. São bandidos, constitucionalmente bandidos. E por isso a detestam. Apenas corra rápido na internet o olho sobre os perfis e irá entender o que Bolsonaro arregimenta: é o que tiver de mais perdido e disposto a tudo no país - o que mistura classes, mas não a hegemonia do discurso suicidário da extrema-direita.


O que está acontecendo em Roraima, na terra indígena do povo Yanomami, como a História nos permite, até por efeitos de persuasão (elemento fundamental da Memória), ladear conceitos, é um HOLOCAUSTO YANOMAMI. Um genocídio. Provado, visto e estampado ao mundo inteiro. Com direito, não só à negligência, pois ela não existe nos termos que é posta desde 2018, mas com o apoio incondicional, a representatividade direta de garimpeiros, bancada do boi e da bala. O Brasil desviou vacina contra a malária, quem faz esse transporte até as aldeias? Os militares.


Três leis foram sancionadas pelo governador de Roraima, apoiador inveterado de Bolsonaro, com amplo apoio e legalização do garimpo em terras indígenas. Só não foram postas como lei estadual porque o STF barrou, mas nada que impedisse a prática. Porque assim age o bolsonarismo, no bafo quente do blefe. Se o governador apoia, porque as polícias condenariam qualquer avanço? Quem tem o comando delas? O próprio.


Curioso pensar que um ex-capitão, expulso por indisciplina e incapacidade cognitiva do mesmo Exército, seja dele o maior legado de seu período mais inchado no poder: a Ditadura. E não é o progressismo sonso de um Delfim Neto, e nem a falsa discrição de classe e partido das senhoras de Copacabana; não, o bolsonarismo é um herdeiro direto dos porões daquele período. Ao dar o golpe em Dilma, ainda como parlamentar, Bolsonaro dedica seu voto ao torturador da ex-Presidenta. Não só o nomeia, com lustres e patentes, mas o invoca: "o terror de Dilma Roussef".


Esta mesma subjetividade vai alcançar o Poder Executivo dois anos depois, inflar a máquina pública de milicos, e enquanto estamos achando que só há cortina de fumaças no absurdo, quase como um confronto, ele simplesmente está acontecendo. E pior do que o desgosto da supresa, é o amargo conhecido desse antigo paladar.


Ninguém matou mais os indígenas no Brasil do que a Ditadura Militar. Por trás de um discurso encapuzado de progresso, havia um velho moedor contra os povos originários. Ou tornam-se mão de obra, ou passam a colaborar, ou se integram (perdem seu modo de vida e vendem seu tempo ao que extermina a floresta) ou estarão em extinção. 1988 os protegeu. Ao menos, em tese.


Trinta anos depois, um presidente eleito pelo povo, e eleito sob bravatas de "não demarcarei um centímetro de terras indígenas!". Não só não demarcou, como foi o chefe dos cupins. Caiu como uma luva a pandemia para o seu projeto de extermínio, e agora talvez a gente entenda a postura ideológica, além da corrupta, que estava por trás da negligência em relação às vacinas. Ficou comprovado que houve o desvio de vacinas que salvariam os indígenas, e a proposição de contato com povos aldeados para que alastrasse a contaminação. Perdemos 54 línguas entre 2019 e 2021.


Não é preciso só rastrear e punir seus comparsas. É preciso que o CPF (como ele gosta de cancelar) Jair Bolsonaro pague. É preciso que saibamos nomear cada ato posto a frente, porque ele é incontornável. Mas não como um elefante imenso na sala, mas como uma infestação silenciosa de cupins - com respaldos e sobras históricas o suficiente para terminar seu serviço.


Quando preparava este texto, ainda em janeiro, movido ao alívio/esperança da linda posse de Lula, iria propor esta nova coluna coringa como um espécie de espaço de possíveis reconciliações e reencantamentos. O título talvez fosse "nem anistia, nem ministério do rancor". Mas veio o 8 de janeiro implacável, uma semana após a posse apenas: furando Djanira, roubando a Constituição, depredando o patrimônio público. Em nome de que? Financiados por quem? Os nomes começam a aparecer e nada foge ao óbvio. Parece que a cada fio puxado, uma Ariadne terrível o tece infinitamente no horror. Temo quando começarem a divulgar sobre o caso Marielle. Temo quando a mídia começar a minar o Congresso com seus acordos pelo Orçamento Secreto. Há um nó na República. Tentar contorná-lo é dar a ele estrutura. Não há anistia ou esquecimento possível perante tudo que está sendo posto. Está tudo tão evidente, que os réus roem a própria corda. Então é preciso ir fundo neste trauma. Apostar na rasura - este gesto que soterra de vida o traumático, o que não se quer dizer. Se corroem pela base, deixemos então cair sobre eles o peso de cada instituição. Fazendo valer a eles o engasgo, o crime, a necessidade da rasura quando já nos pensávamos no caminho do encanto.




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