Éramos inseparáveis, eu e meu irmão, sobretudo em matéria de guerra. Devo admitir que partiam de mim, na verdade, a maioria das provocações, como é de costume ocorrer aos irmãos mais velhos, esses destronados. Certa vez, a família distraída com algum programa televisivo dominical, subi ao andar de cima, me armei de uma tesoura e cortei fora os dois olhos do sapo de borracha do meu irmão — sapo que, diga-se de passagem, já havia sido meu, e cujos olhos esbugalhados me pareceram, naquela ocasião, implorar para serem decepados.
Outro expediente infalível eram as cócegas. Eu conhecia bem os pontos fracos dele — a barriga e as solas dos pés. O jogo começava manhosos, com leves afagos ou cutucões, evoluindo para ataques mais arrojados que derivavam em risadas de desespero, mijo nas calças e, obviamente, num ou outro soco que ele deferia contra mim, sua pequena torturadora. “Bem feito”, dizia minha mãe.
O banco traseiro do carro, que éramos obrigados a dividir por horas a fio nas longas viagens de família, também era palco de combate. Nossos pais eram precavidos: já nos faziam engolir umas tantas gotas de Dramin antes mesmo de ligar o motor. Mas eventualmente o sonífero perdia o efeito, e me parece que algum alarme humanista os impedia de aplicar a segunda dose assim que a primeira desencantasse. Despertávamos, então, prontos para nosso inferninho ambulante, onde, para desespero dos adultos, esbravejávamos um contra o outro com as bocas cheias de farelo de bolacha.
É claro que tínhamos nossos momentos de ternura, em que eu momentaneamente esquecia estar diante do inimigo. Lembro-me, por exemplo, de um jogo curioso ao qual recorríamos em momentos de espera — os estafantes lobbies de hotel, as infinitas filas para visitar o enésimo museu cheio de urnas funerárias ou múmias que nos pareciam quase idênticas, mas detinham a atenção do meu pai por minutos sem fim. A brincadeira consistia no seguinte: um de nós pensava numa música e, em seguida, tamborilava no antebraço do outro marcando as batidas de sua linha melódica. A este cabia acertar a música que o outro reproduziu com os dedos em sua pele. Quase sempre nos entendíamos, e a sensação era de um pequeno êxtase: pela cumplicidade, pela comprovação da eficiência de um código secreto que havíamos criado juntos.
Com frequência minhas duas amigas Joana e Camila se juntavam a nós, a nessas ocasiões a artimanha triplicava. Camila era mais mansa, tinha um humor quase niilista, e foi com ela que aprendi a sentir tédio, essa angústia almofadada que se tornou um elo entre nós: bufávamos como senhoras amarguradas, ríamos da nossa pequena desgraça e repetíamos numa voz afetada, do alto de nossa primeira década de vida: “que téeeeedio!”. Joana, por sua vez, era a valentia em pessoa: não só topava qualquer parada, como as incitava. Para ela o mundo era um grande laboratório dos corpos e da inteligência, e quando estávamos juntas tudo parecia ser possível.
Quando tínhamos cerca de nove anos, passamos um feriado na casa de campo de amigos dos meus pais. Um bosque de pinheiros dividia o terreno da casa de uma enorme represa. Desbravamos o exército de árvores até o fim, com a intenção de nadar na água terrosa da represa; mas o fim do bosque era uma cerca de arame farpado, um obstáculo sinistro entre nós e o sonhado mergulho. Não nos restava opção a não ser tentar atravessá-lo. Joana abriu espaço entre dois arames e me encorajou a passar entre eles. Se Joana mandava, eu obedecia. Mas o arame tensionado foi mais forte que os bracinhos da minha amiga, e o resultado foi que fiquei presa pelas calças nas malditas garras da cerca. Não me lembro de como saí de lá, mas, vejam bem, aqui estou.
As férias eram longas naquela época, e muitas vezes passávamos horas na minha casa, eu, meu irmão e nossos amigos, inventando o que fazer. Um par de anos depois do episódio dos arames farpados, o tédio me levou a uma maquinação absolutamente autoral.
Antes de narrar a peripécia, é necessário fazer uma breve introdução. Sou fumante, uma fumante que ama o que faz, sinto dizer. Uma fotografia antiga comprova meu amor pelos cigarros: aos dois anos, sentada no chão diante de uma mesa de centro, entre as pernas dos adultos, manuseio um maço de Marlboro vermelho. Olho fixamente para ele. Pareço maravilhada.
Mas naquelas férias, já com uns doze anos e ainda virgem de tabaco, resolvi dar um passo adiante. O alvo da operação era, mais uma vez, meu irmão, que é dois anos mais novo e, à época, se interessava mais por dinossauros do que por drogas lícitas.
Resolvi manufaturar um cigarro falso — mas que provocasse o mesmo efeito visual de um verdadeiro, ou seja: carecia de fumaça. Foi mais simples do que eu imaginara: cortei pedacinhos de papel sulfite — um para mim, outro para Camila e outro para Joana — pintei uma faixa amarelada na ponta de cada um e os enrolei em tubinhos. O fator fumaça foi resolvido com três incensos que afanei da minha mãe, e que foram cortados no mesmo comprimento dos cigarros de papel sulfite e colados com um discreto durex por dentro deles. Pronto. Faltava agora acendê-los e horrorizar meu irmão com o nosso terrível delito.
Entramos no quarto dele com estrondo e exibimos nossos cigarrinhos que exalavam fumaça perfumada. E o efeito foi justamente o esperado. Meu irmão arregalou os olhos e disse, muito sério: “NÃO PODE”. Caímos na risada, é claro, mas logo revelamos a pegadinha, o que deve tê-lo deixado tão aliviado quanto constrangido.
Hoje penso nessa história e quem se constrange sou eu. Havia uma honestidade em meu irmão que eu tentei destruir obstinadamente, e não consigo entender bem por quê. Talvez eu quisesse de alguma forma prepará-lo para o que eu, um pouco precocemente, já pressentia: a vida é cheia de sujeira, fumaça, arame farpado e fraude, mas também de invenção e alguma alforria.
Gostaria, porém, de ter brincado mais com ele e seus dinossauros de borracha. O T-Rex com suas mãozinhas atrofiadas e dentição exemplar; o Pterodátilo azul em pleno voo; o Estegossauro e seu dorso petalado; o pescoço escultural do Braquiossauro — que, aliás, não era fumante.
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