por Bento Mota (colunista convidado)
O Brasil é o último país que faltava para fechar o grande bloco de esquerda que então se configura em Nuestra america. Desde o Norte do México até a Patagônia, vemo-nos novamente diante de um grande pedaço da terra continuum, razoavelmente coerente, e de esquerda. É verdade que existem muitas diferenças entre um Nicolás Maduro, na Venezuela, e um Alberto Fernandez, na Argentina. Mas com a exceção da Guatemala (Alejandro Giammattei), Equador (Guillermo Lasso), Uruguai (Luis Lacalle Pou) e do Paraguai (Mario Abdo Benítez), a continuidade é evidente. Há quem coloque Biden e Trudeal nessa soma já extraordinária. Quer se inclua os EUA e o Canadá, quer não, no entanto, só entre nosotros temos mais de 640 milhões de pessoas que estarão sob governos de esquerda a partir da posse de Lula em 2023.
Todos sabem que no início do século XX também tivemos um processo semelhante ao atual: Hugo Chávez, Evo Morales, Fidel (ainda vivo), Nestór Kishner, Lula, entre outros. Essa posição política não passou despercebida pela ciência políca da década passada. Heinz Dieterich, por exemplo, chegou a chamar a experiência de Chávez como o “socialismo do século XXI”. Lanny Rohter, por outro lado, batizou esse momento de “maré rosa”, termo alusivo à uma postura de esquerda, em alguns casos socialista, mas que não tinha Cuba ou o século XX como modelo, mas uma (nova) afirmação dos ideais da social-democracia. Todas essas investigações, entretanto, são unânimes em considerar o boom das commodities estimulado pela China um incentivo econômico importante nesse processo. Mas se essa tal “maré rosa” foi forte o suficiente para ganhar um nome, ela também terminou de forma abrupta sem receber qualquer classificação, inclusive com uma tentativa de golpe na capital mais alta do mundo.
O que dizer sobre o momento atual? Esperaremos algum gringo dar um nome para o momento histórico em que vivemos?
Sem dúvida, essa geração é muito distinta da anterior. No primeiro decênio, vivenciamos experiências mais radicais, com lideranças mais maduras, consolidadas e – por que não? – pretenciosas. Ideias como patria grande e republica bolivariana foram frequentemente veiculadas, até mesmo institucionalmente. O fortalecimento do Mercosul, a parceria direta com a China e certas heranças políticas do século XX ainda podiam ser sentidas, ainda que como uma reverberação distante. Peronismo, sindicalismo, Estado de bem-estar social figuravam no céu político daquele raiar de século e milênio. A situação, neste momento, parece bem distinta. Pandemia. Trump. Ucrânia. Políticas identitárias em marcha. Uma nova cultura de massa tiktoker no front. Inflação generalizada em (quase) todo o mundo. China retraída. Uma “nova direta”, que compreendemos tão mal quanto padecemos dela.
As novas lideranças dessa segunda ola - na falta, ainda, de uma palavra melhor -possuem muitas particularidades e diferenças entre si. Petro (da Colômbia) é um ex-guerrilheiro, e o primeiro presidente de esquerda do seu país. Alberto Fernandez (Argentina) nem de longe tem a mesma força de Néstor Kishner, embora esteja à sombra de Cristina e tenha ao seu favor o legado peronista. Luis Arce, na Bolívia, foi ex-ministro de Evo Morales e segue o mesmo modelo plurinacional da maior liderança indígena das américas. No Chile, o novíssimo Gabriel Boric - de menos de 40 anos, ex-líder estudantil - certamente foi favorecido pelas manifestações de 2019-2020, cujo esplendor, com suas bandeiras mapuche e wipala, notabilizou-se em todo o mundo. Lopez Obrador, no México, nesse ponto se diferencia muito de todos os anteriores: mais velho, com muita experiência, e taxado de “populista” e “tradicional”. Por fim, uma das grandes diferenças com a “onda anterior”, é a de que Lula é o único remanescente da geração anterior no poder, num cenário em que quase todas as lideranças do momento anterior ou já morreram, estão velhas, ou opinam e governam sob a sombra de outras figuras.
Sem dúvida é mais difícil ver as semelhanças do que as diferenças entre as duas gerações. Para além dos aspectos que marcam o mundo inteiro, podemos destacar: (1) A preocupação ecológica. A causa amazônica, o problema dos desastres climáticos e, dentro do discurso neoliberal, a “sustentabilidade” vem se tornando um problema cada vez mis real e urgente. (2) Críticas ao neoliberalismo. No pós-pandemia, as críticas ao liberalismo ganharam cada vez mais força pela necessidade de um programa de saúde pública geral e pelo controle de uma inflação generalizada. (3) Ressaca e medo da extrema direita. Após as desastrosas gestões de Donald Trump e Boris Johnson e agora Bolsonaro, certamente o mundo assistiu, esfacelado, ao significado dessa nova-direita de Bannons, Qanons, Olavos e altright no poder, o que certamente fortaleceu uma reação a ela. (4) Certa positividade herdada da geração anterior. A despeito de todas os problemas, assistiu-se à um indiscutível crescimento do PIB de todas as economias citadas e uma distribuição social melhor do que em tempos anteriores. Evidentemente, o caso da Nicarágua e da Venezuela são tristes exceções desse processo que parecem fazer parte de outros problemas que não examinaremos aqui. (5) Todos possuem certa preocupação com as políticas identitárias, inclusive a indígena. (6) É possível que, como o recrudescimento extrema direita, a oposição pós-guerra fria entre neoliberalismo versus keynesianismo mude para um certo consenso “iluminista” versus o a nova direita. Nesse ponto, provavelmente a grande unidade que agora se forma provavelmente conferirá certo protagonismo à América (já não totalmente) católica.
Horas depois das eleições, Biden e Macron escreveram quase que imediatamente para Lula após o pleito. Figuras tão opostas como Zelenky (presidente da Ucrância) e Putin conclamaram a importância da eleição de Lula. Mas na América do sul Lula parece ter recebido um destaque ainda maior. Alberto Fernandez pegou um vôo na manhã seguinte para cumprimentá-lo vividamente. Mujica discursou ao seu lado em São Paulo. Maduro também o parabenizou prontamente. Petro, Boric, Cristina Kishner, e tantas outras lideranças esperavam ansiosos pelo resultado da eleição do maior sindicalista do século XX. Vejamos qual será o epíteto que ele ganhará no nosso tempo
(Texto escrito por um carioca, desde Buenos Aires, ao som de “Los espíritos”, no mesmo dia em que centenas de ‘patriotas’ acenam – com a bandeira de Brasil – a saudação nazista)
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