por Pérola Mathias
Lula toma posse, pela terceira vez, como Presidente da República. Reprodução
Se o carnaval quem faz ainda é o folião, a democracia quem faz é o povo e sua vontade soberana, expressa, sobretudo, nas eleições. E foi assim que, no primeiro dia de 2023,
Luís Inácio Lula da Silva foi empossado pela 3ª vez presidente. Ele subiu a rampa do Palácio do Planalto de mãos dadas com representantes do povo, seu vice, as respectivas primeiras damas e a cachorrinha Resistência. Não bastasse a emoção do momento em que vimos o Cacique Raoni, uma mulher negra, uma criança e uma pessoa militante dos direitos das pessoas com deficiência acompanharem o presidente, o ato aconteceu acompanhado da execução de “Trenzinho do Caipira”, de Villa Lobos, por uma orquestra ali presente.
Entre o 1º e o 2º turno da eleição de 2018, durante o período de militância na rua, acabei participando ativamente do planejamento e execução de um ato simbólico em São Paulo para apoiar Fernando Haddad e repudiar a violência política que matara o mestre Moa do Katendê: um flashmob com músicos das duas principais orquestras da cidade embaixo do vão do MASP executando Trenzinho Caipira e a 9ª de Beethoven. A primeira, claro, era a conexão profunda com a cultura brasileira, que naquele momento estava não só ameaçada, como prestes a ser esmagada por um governo atroz. A segunda, havia soado enquanto se derrubava o muro de Berlim.
A Toccata de Villa Lobos, um dos movimentos da Bachiana Brasileira nº2, fez a ponte entre um momento em que a esperança se esvaía ao que a esperança voltava a mover-nos enquanto brasileiros. Seria o fim dos sigilos e o começo da busca por justiça diante dos genocídios (sim, no plural) contra nosso povo, promovidos pelo governo anterior. O som da locomotiva do “Trenzinho do Caipira” me levou ao transe da felicidade compartilhada com milhares de pessoas que estavam ao meu redor, que transbordava em choro, risada, alívio e amor.
Mas o “Trenzinho” não foi a única música a marcar aquele instante, ainda que tenha me conectado diretamente com nossa ação direta na rua em 2018. Também embalou o momento da posse “Amanhã”, de Guilherme Arantes. Era, de fato, um dia de louca alegria, em que a equipe do presidente - leia-se a primeira dama Janja - havia ainda preparado o imenso Festival do Futuro. A festa não se resumia a acompanhar a cerimônia oficial e seus procedimentos de praxe, mas se tornou ponto de encontro e diversão para o dia todo, para todas as idades e classes - e para quem aguentasse o sol ardido do cerrado na arquitetura sem sombras da cidade de Niemeyer. O Festival do Futuro durou do início da manhã do dia 1º à alta madrugada do dia 2 e contou com mais de 50 artistas só em seus dois palcos principais.
Desenhados e executados por Batman Zavarese, a estrutura dos palcos Elza Soares e Gal Costa trazia um design arrojado sobre a bandeira do Brasil, enfeitado com uma fileira de estrelas vermelhas no centro. Seu formato aludia também à obra OKE OXOSSI, de Abdias do Nascimento. Era mais um recado: intolerância religiosa aqui não. Cantaram Teresa Cristina, Maria Rita, Duda Beat, Luedji Luna, Rael, Salgadinho (quem não viu Salgadinho cantando “Lua vai” debaixo do céu limpo e enluarado de Brasília, perdeu)... Enquanto eu procurava um derradeiro espetinho para comer, ouvi Alessandra Leão cantar “Boa Hora”. Vi Jards Macalé usando um elegante traje de maladro e Martinho da Vila pedindo pra toda gente cantar.
Nesse mesmo momento, no mini Palco do DF, o DJ tocava o samba enredo mais famoso da União da Ilha do Governador, enquanto um homem deitado no gramado ali em frente da pista repousava deitado na grama ao lado de sua mulher, que fazia a vigília sobre seu sono ou sua bebedeira. Quando finalmente arranjei o último salsichão da Esplanada, o DJ do Palco DF tocava a faixa mais conhecida do rapper baiano Vandal.
Ali do lado, mais cedo, blocos de carnaval e cortejos haviam animado a manhã dos eleitores foliões. E nem só de festa pagã se ergueu a alegria dos sete cantos do Brasil presentes no Planalto, porque o gospel também teve vez. Já Pabllo Vittar e o rajadão que eu me prometi ver a qualquer custo, só se cumpriram altas da madrugada - então não foi dessa vez. E ali mesmo pensei que a ideia de que o Festival do Futuro deva ser algo para Governo Federal e GDF pensarem como estratégia de utilização do espaço público de Brasília e alavancamento do turismo na cidade no fim do ano não é ruim - já que, a cada vez que alguém espirra nesse pós-pandemia, mais um festival é criado privado é criado, cobrando ingressos astronômicos.
Obviamente, uma segunda edição não juntaria as centenas de milhares de pessoas que foram ali para prestigiar Lula e ver a história se concretizar diante dos olhos, com o sonho enrustido de comemorar a vitória - suada - pulando nos espelhos d’água da Praça dos 3 Poderes. E também poderia ser pensado para não acabar a comida e não ter tantas filas. Coisas que até passaram despercebidas no meio de tanta emoção.
Foto: Thais Mallon
Enquanto a maioria dos artistas que passaram pelo Festival cantaram uma ou duas músicas, à banda Baiana System foi destinado um show completo. Não era para menos, eles receberiam no palco a ministra da cultura Margareth Menezes. Não era qualquer convidado, Margareth, junto a Sônia Guajajara no Ministério dos Povos Indígenas e Anielle Franco no Ministério da Igualdade Racial, representa o fim do bolsonarismo enquanto política de Estado (no executivo federal).
E o Baiana System é uma das bandas que mais carrega público no meio da música independente. Os shows da banda foram crescendo ao longo dos seus (agora) mais de 10 anos de existência, a banda se tornou mais robusta e a relação entre música e visual se tornou uma de suas grandes marcas - resultado da parceria com Filipe Cartaxo e, no Festival do Futuro, com a expertise de Zavarese em projeções. Além da excelente interação de Russo Passapusso, vocalista, com um palhaço que vestia a camiseta da seleção do Brasil. A quantidade de elementos simbólicos naquele palco - como a camiseta da UFBA usada pelo guitarrista Beto Barreto - extrapolam os limites deste texto, mas eles estavam lá e são relevantes.
Se no nosso flashmob militante de 2018, um músico negro tocou um berimbau vestido com uma camisa em homenagem ao Mestre Moa, assassinado no dia do primeiro turno daquelas eleições; também no show do Baiana System, especial para a posse de Lula, o percussionista da banda, Ícaro Sá, veio à frente do palco para fazer ecoar o instrumento, sendo logo em seguida acompanhado pela banda.
A primeira música que iniciou o ritual do show era um abre caminhos: “folha de arruda, pé de coelho e sal grosso / Espada de São Jorge /Banho de descarrego, nêgo”. Mais do que necessário para tirar a energia pesada, com cheiro de morte, dos últimos anos. A cultura negra - Axé -, a cultura baiana - Oxe -, e a religiosidade de matriz africana - Exu -, se juntaram com a referência à unidade do Brasil com a América Latina, os povos andinos e a ancestralidade. Além da participação da “brachilena” Claudia Manzo, constou no setlist uma das mais potentes músicas do Baiana, “Sulamericano”, do álbum “O Futuro não demora”, que diz:
as veias abertas da América Latina
Tem fogo cruzado queimando nas esquinas
Um golpe de estado ao som da carabina, um fuzil
Se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu
A triste história dos golpes de Estado na América Latina viria novamente nos assombrar dali a 7 dias. As cenas de destruição que vimos no 8 de janeiro eram impensáveis para quem estava vivendo a alegria do dia 1º. Mas os bolsonaristas só repetiram a história mesmo como farsa patética. E se a justiça agora corre atrás, não é garantido que não vai deixar ninguém fugir. Mas a gente pega - mata e come. “Desobediência às ordens que podem nos destruir”.
É claro que a participação da ministra Margareth Menezes, com seu imponente traje vermelho sob um manto de estampa africano, teve a execução de uma das canções políticas mais tocadas do Olodum, “Faraó”.
O delírio era evidente (merecido também, né?!). Mas o fato de a Cultura, enquanto termo com múltiplos e amplos sentidos antropológico e sociológico, ter ganhado proeminência em uma das cerimônias mais importantes da Nova República, anunciando novos tempos, era forte demais para não se abalar. Enquanto o nome do inominável não era citado nem pra dizer que ele já tinha ido embora.
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