curadoria de Marcelo Reis de Mello*
Para marcar este recomeço da seção de traduções da Revista A Palavra Solta, fiquemos com o trecho de uma carta de Marina Tsvetaeva a Rainer Maria Rilke, datada de 6 de julho de 1926 (escrita não em russo, mas em alemão, durante seu exílio na França):
“Escrever poemas já é traduzir, a partir da língua materna – para uma outra, não importa se o francês ou o alemão. Nenhum idioma é [o] idioma materno [Keine Sprachte ist Muttersprache]. Escrever poemas é escrever segundo [Dichten ist nachdichten]. É por isso que não entendo quando as pessoas falam de poetas franceses, russos, e assim por diante. Um poeta pode escrever francês; não pode ser um poeta francês. Isso é ridículo.”
Bem longe de qualquer desejo de pureza e univocidade, desejamos às e aos poetas, tradutores e leitores que aqui se juntam, na partilha desta errância (com a língua sempre outra da poesia) uma Babel feliz. Continua vivo o que ainda é capaz de mudar. E uma língua só está morta, como escreveu o linguista celta francês Joseph Vendryes, “quando não se tem mais o direito de cometer erros nela.”
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Essa química entre quem recebe-quem chega É inclusiva, complexa, molecular, Delicatéssen. Joga no Google. Quem recebe enreda Quem chega ou quem chega Atrai formas inferiores De amor, como o amor que Quem cuida tem por uma criança Em Setembro E Janeiro, quando a criança Está no pico do Vulnerável? São essas questões suficientes Para violar Seu desejo por arte Que chega de um lugar Estrangeiro? Quais são os limites Dessas boas-vindas? Afinal, eu não sinto nada Por você.
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This host-guest chemistry Is inclusive, complex, molecular, Dainty. Google it. Does the host envelop The guest or does the guest Attract diminished forms Of love, like the love A parent has for a child In September And January, when the child Is at its most Vulnerable? Are these questions enough To violate Your desire for art That comes from a foreign Place? What are the limits Of this welcome? After all, I don’t feel anything For you.
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Uma porta se abriu na lateral De rocha pura E eu atravessei. Imagens de uma vida alternativa Encheram minha psique Como corujas molhadas. Eu não conseguia suportar as expressões faciais Das pessoas Que me eram mais próximas, uma fonte De constrangimento. Então fui embora, Pra nunca mais voltar Intacta. Ou para uma casa Que era intacta. Sim, como todo mundo, Tive que lidar Com sentimentos fortes Que se moviam através do meu corpo Como cortinas de chuva Bordadas Com diademas azul marinhos.
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A door opened in the side Of sheer rock And I stepped through it. Images of an alternative life Filled my psyche Like wet owls. I could not bear the facial expressions Of the people I was closest to, a source Of embarassment. And so I left, Never to return Intact. Or to a home That was intact. Yes, just like everyone else, I had to deal With the strong feelings That moved through my body Like sheets of rain Embossed With navy blue diadems.
Bhanu Kapil (1968) nasceu na Inglaterra, filha de mãe e pai indianos. Vive nos Estados Unidos, onde ensina poesia, ficção, performance e seminários de escrita híbrida. Mais recentemente, sua prática criativa se expandiu para incluir performance, trabalhos improvisados, instalação e ritual. É autora de cinco obras completas de poesia/prosa: The Vertical Interrogation of Strangers (2001), Incubação: um espaço para monstros (2006) (publicado no Brasil pela Bolha editora), humanimal [a project for future children] (2009), Schizophrene (2011) e Ban en Banlieue (2015). Os dois poemas aqui apresentados foram retirados do livro How to wash a heart (2020, vencedor do Prêmio T.S. Eliot) que retrata a incômoda dinâmica entre uma imigrante e um anfitrião branco de classe média.
Julia Raiz escreve e traduz.Seu primeiro livro “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela ContraVento editorial, também lançou o megamini “p/ vc” pela 7Letras em 2019. Em tradução publicou “Bash Back! Ultraviolência Queer” (Crocodilo e n-1 edições) e “Mundo Barbie” de Denise Duhamel (editora Jabuticaba, no prelo). Edita em coparceria os blogs literários totem & pagu, firrrma de poesia, e Pontes Outras, dedicado à tradução, também faz parte do coletivo de escrita membrana. Mantém o podcast Raiz Lendo Coisas no Spotify, @julia.raiz
* A partir desta edição, nossa seção de Tradução terá a curadoria do poeta Marcelo Reis de Mello.
Marcelo Reis de Mello (Curitiba, 1984) é poeta. Doutor em Literatura Comparada pela UFF, é orientador efetivo da área de Literatura da COART/UERJ. Publicou, entre outros, Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental, 2017) e José mergulha para sempre na piscina azul(Garupa, 2020). Traduziu ao português livros de Miguel de Unamuno, Luis Felipe Fabre, Arturo Carrera, Daniel Link, entre outros.
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