Os poemas aqui publicados sairão no livro Júbilo (no prelo, 2023)
MORGADO, Flávio. Onde se perjura o pacto colonial?. Série PIPA-PAUTA, Intervenção no Parque Guinle, Laranjeiras - RJ, 2022. Fotografia: Oto Mello
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devir-Linha 2
se alguém me bancar,
eu sei me vestir,
só me falta é roupa, Iaiá.
só me falta é roupa.
Mestre Marçal, samba de Wilson das Neves
paris com desprezo não me intimida.
minha guia é vermelha, de contas marrons.
é nesse paideuma de desamparos,
cujos fiapos formam uma trama
que me dou uma integridade irrestrita:
camuflagem de vira-lata, inglês de quadril,
banho de canela, bater com as duas pernas.
Rimbaud me comoveu
entre Ramos e Claudinho&Buchecha.
se há porosidade, o caminho se entrega:
existe um gesto em sair sem guarida.
dá calo, dá ranhura, e tudo isso
excita fricção, quer inteireza de conflito,
frontalidade, marte em leão.
desejo em conciliações impossíveis:
fome de matéria sem borda
casar com mulheres casadas
propor Hegel ao Exaltasamba.
por isso esse devir, que é destino, que é odu,
que não desvia de onde a virtude pedala e balança,
e se a zaga pesa a lombra: é porque o sucesso
está bem menos no que voa
e bem mais justo no que fica,
é uma lei de laje: não se põe no alto sem o cerol.
e no que ponho minha modéstia à parte,
na negociação entre o talhante e o lírico :
sou PIPA
MORGADO, Flávio. Dois já é quadrilha, 2022, Série PIPA-PAUTA, papel de seda fino preto e branco e sacos de lixo. 80 X 66 cm. Fotografia e assistência: Allain Junior
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na cama que se contorna o leme
à turca
nosso rumo
contorna o bairro
contra as mãos dadas
os generais do pijama
a discrição matrimonial
e as palavras,
que poderia sussurrar, mas grita:
eu quero esfregar meu gosto no teu
te roço dormindo
te como no beco da fome
!!!
as vezes
você só diz tô aqui
(e o meu diabo quase
já dava nome aos filhos)
falsa conversão de Constantinopla
(é pelo pecado que se reafirma Roma),
estrategicamente localizada
entre o Corno de Ouro e o mar do medo,
no front da guerra você seduz:
rota da sede, atalho da peste.
concessão de um Xá,
saída de uma meia-lua, o
gosto secreto dessa boca-pimenta...
nos conduz, pelo faro e
pelo erro
(feito dois gatos no cio
que confundem a rua
na sua aposta alta)
Fotografia: Marina Rodrigues
Flávio Morgado (Rio de Janeiro, 1989) nasceu e foi criado em Brás de Pina, zona da Leopoldina, subúrbio carioca. É poeta, autor de "um caderno de capa
verde" (7Letras/2012); "uma nesga de sol a mais" (7Letras/2016); "Refinaria da cólera" (Coleção Megamini/2019); "preciso" (7Letras/2019) e "Quero te dar o corpo total do dia" (em parceria com a artista plástica Marcela Cantuária, editado pela Revista Philos/2021).
Graduou-se em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, e fez seu mestrado em História da Arte pela PUC-Rio. Atualmente leciona em escolas particulares, oficinas literárias e acompanhamentos artísticos. Em 2020, junto com amigos, fundou a
Revista A Palavra Solta, mídia online de crítica cultural, que além da edição, assina a coluna de política. Em 2019, deu início ao projeto percurso-performance “Todos os caminhos são o meu caminho”, em que abria tiragens do Tarô de Marselha em vias públicas de cidades pelo Brasil, em troca de objetos pessoais, que iriam, posteriormente, abastecer o mercado de quinquilharias de zonas periféricas. Também em 2019, pôde estudar mais sobre tarô com Moreno Fazari e Lorenzo Deboni, assistentes do cineasta e tarólogo chileno Alejandro Jodorowsky, em Paris. Em 2022, começou um projeto de poema-expandido com pipas em intervenções públicas com as séries PIPA-VERSO; PIPA-PAUTA; PIPA-LUTO. Sua pesquisa gira em torno do fundamento religioso, como uma espécie de herança familiar escolhida; e do afeto, em sua acepção mais comunitária e suburbana. Teve poemas traduzidos em coletivas estrangeiras para o espanhol, inglês, alemão, francês e grego.
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