por Luna Grimberg
É estranho escrever esta coluna neste momento; não piso em uma sala de cinema há pelo menos dezoito meses. Se antes eu mirava um equilíbrio no meu consumo entre filmes e séries, ficou claro que deixar as horas correrem, gastá-las, imersa em um único universo, era o melhor jeito de atravessar a tempestade. Penso numa criança que me disse gostar de “assistir tela”; pra ela, toda imagem em movimento, em qualquer dispositivo, tem o mesmo valor: um videogame, um youtuber abrindo uma caixa, um filme. Deve haver ótimos textos contemporâneos sobre o transbordamento da linguagem do cinema, mas, por ora, vou ficar com citações como “uma criança me disse”. É bom não subir a barra. Não sei como escrever sobre cinema agora. É distante a lembrança de encarar a tela gigante, junto de estranhos que (tossem e) reagem, comentam, riem, choram. Dividir com eles um único feixe de luz atravessando o escuro, como um farol. Assim como tantas pessoas, passei boa parte da pandemia à deriva.
O streaming nos deixou prostrados diante de um oceano de títulos, uma extrema conveniência que consolidou nosso afastamento da experiência tátil, não só das salas de cinema, como das videolocadoras, de passear com os dedos descobrindo obras por autores, países, épocas. No cardápio doméstico da televisão, gêneros e formatos se misturam. Nossos olhos ficam como os dessa criança, sem consciência histórica, sem discernimento dos meios de produção, os olhos vagando pelo excesso de títulos genéricos, cujos créditos, fichas técnicas e datas de realização muitas vezes estão inacessíveis.
Mas, com olhar atento, algo pode emergir, uma pérola pode brilhar no meio do lodo. Foi o que senti ao assistir a Treme (2010), série relativamente esquecida, agora disponível na HBO Max.
O primeiro episódio, por si só, daria um bom filme. A cartela inicial diz “Nova Orleans, Louisiana. 3 Meses Depois”. A história, cuja protagonista é a própria cidade de Nova Orleans, começa quando seus moradores, três meses após o desastre causado pelo furacão Katrina, ensaiam o retorno para suas casas, muitas delas alagadas, e seus locais de trabalho, muitos dos quais deixaram de existir.
Traumatizados pelas perdas monumentais, (“Don’t ask me about my house” é uma frase recorrente), os personagens encaram a bancarrota física e espiritual que se instaurou na cidade. Uma vez que a água baixou e os corpos foram — quase todos — enterrados, o que os encontra é a negligência: o abandono do Estado, as seguradoras que não pagam indenização, a sociedade que virou os olhos. São notícia amanhecida, perdidos em destroços.
O desinteresse em recompor o tecido social de uma cidade pobre e majoritariamente negra é quase ativo, e vai se tornando gritante aos olhos desses cidadãos, que lutam, no âmbito individual e coletivo, para reconstruir o que foi perdido. Nova Orleans não é esquecível, nem substituível, não é um lugar que se abandona. Há cultura ali, há história, raízes. Há de se juntar os cacos e renascer das cinzas.
Treme foi co-criada por David Simon, autor de The Wire (se você não viu The Wire e se cansa de pessoas te dizendo para ver, sinto informar, as pessoas estão certas, veja The Wire). Os elementos narrativos e estéticos que consagraram essa como a maior série de todos os tempos estão presentes também aqui. Além dos gigantes atores Wendell Pierce e Clarke Peters e de um elenco brilhante, que também inclui John Goodman e Steve Zahn (recentemente visto em White Lotus, mas em Treme, ainda melhor).
Treme não é um policial, um drama, uma distopia ou uma comédia, embora possa ter tudo isso. Longe de perseguir sua atenção na lógica da sedução dos primeiros minutos, com ganchos e armadilhas que te tratam como um experimento de laboratório, o jogo dramático é outro. Nada é servido a você em uma bandeja, e, no entanto, você está em um banquete.
Precisamente dirigida, a série joga com você; te transporta a um mundo relativamente caótico e a situações que já estão acontecendo. As pessoas falam jargões específicos, citam nomes que você nunca ouviu, se referem a eventos que já aconteceram. É sua a deliciosa tarefa de decifrar o que dizem e por que o dizem, o que fazem e por que o fazem. Você chega a se perguntar se aquilo é uma espécie de documentário, de tanta vivacidade e espontaneidade que vazam pela tela. (De fato, há participações especiais de músicos, chefes de cozinha, celebridades habitantes ou entusiastas de Nova Orleans). Já em outras passagens, você tem certeza estar diante de um grande elenco com um belo texto dramático em mãos. O caminho é sair da ansiedade organizadora e desfrutar o sabor das cenas, gestos, gírias, piadas, nuances, atmosferas, subtexto; assim, aquele mundo se expande progressivamente diante dos seus olhos. Spoiler: é tudo muito bem construído. Spoiler 2: pegue seu caderno para anotar a quantidade absurda de músicos que eles citam.
Quanto mais se adentra o mundo de Treme, mais vai transparecendo a densidade e a extensa pesquisa que finca os pés da ficção no chão, dando a dimensão real da tragédia. Através das personagens, que habitam diferentes esferas sociais e geográficas da cidade, descobrimos as múltiplas facetas do trauma. Cada um deles foi afetado pelo Katrina de um jeito singular. Há quem tenha perdido a casa, ou apenas o telhado. Há quem tenha ficado sem trabalho ou perdido fisicamente o que lhe permitia trabalhar. Há quem perdeu entes queridos e quem ainda os procura, em vão, na bagunça burocrática da cidade que teve seus arquivos afundados. Há quem tenha saído de lá por conta do furacão, e há quem tenha voltado. Há ainda aqueles que perderam algo etéreo: a sensação de pertencimento, de história, de vizinhança. Na sobreposição dessas experiências, você enxerga ou tenta enxergar o que se passou em Nova Orleans.
A diversidade e a representatividade que são hoje praxe das produções audiovisuais, muitas vezes de maneira ainda artificial, aqui habitam o coração da história. Treme é um bairro no qual escravizados viviam livres antes do fim da Guerra Civil norte-americana. A série celebra isso com seu elenco, em grande parte negro, representando personagens dos mais variados, algo que poucas produções fazem com sucesso até os dias de hoje. Séries contemporâneas, que optam por retratar o racismo pela ótica da branquitude e seus privilégios, têm muito o que aprender com essa, feita há mais de dez anos atrás. Além disso, muitos dos corpos que vemos ali se encontram longe da beleza “padrão” televisiva. Com uma fotografia e uma direção de arte que evitam a plasticidade e a esterilidade, é outro o belo vai se instaurando; específico, autêntico, vivo. A diversidade é substância, e não um acessório.
Treme te mostra um mundo que não é justo, nem nunca será. A máquina do Estado e do capital, em vez de proteger as pessoas ou viabilizar suas vidas, as esmaga constantemente. É um panorama revoltante, mas nunca retratado de forma cínica. É uma celebração daqueles que se importam, lutam, tomam ar para não se afogar. E, uma recordação de que, para além da dureza e da morte, há a vida: humor, prazer, comida, coletividade, pertencimento. E música. Dentro da cena, encadeando cenas, nas discussões das personagens, viajando pelos bairros, no subtexto das histórias, na procissão que passa, no velório, no ritual. Há cenas extremamente comoventes, pelo cuidado e solenidade com que são feitas, representando rituais tradicionais antigos, aulas de história e resistência. Outras que mostram o vigor e potência daquela cena musical, para além do olhar turístico, viciado e superficial. A música é o pulso que conduz e te leva, sensorialmente, a recordar — ou descobrir — que aquela cidade pode estar em escombros, mas é imaterial.
É um dos temas da série quanto os cidadãos de Nova Orleans se sentem cansados, explorados, consumidos, devorados pela mídia e pelos olhos do mundo diante de sua tragédia pessoal. Há uma cena impactante de um ônibus turístico chegando para monetizar em cima dos destroços, viajantes ávidos com suas câmeras apontadas para um grupo de personagens que tentam reconstruir suas vidas. Contemplar, do conforto dos nossos lares, a dor alheia, mesmo dentro de uma ficção baseada em fatos reais, pode ser um ato vil. Mas em Treme há uma lição de dignidade na representação da dor. Você está com os personagens e nunca às custas deles. E, às vezes, eles te afastam, te deixam desconfortável, no escuro, e mostram que há mais em Nova Orleans do que você mesmo possa entender.
É difícil não notar que o que aconteceu em Nova Orleans tem muito em comum com o que ocorreu aqui, em Mariana e Brumadinho. E agora, tentando sair do desastre da pandemia que passa dos 600 mil mortos, negligenciados pelo Estado, explorados, consumidos, muito do que se diz ali ecoa por aqui. De onde se tira forças para recomeçar, superar o luto e viver novamente? A quem se cobra pelos danos reversíveis e irreversíveis? Como se reorganizar?
As semelhanças são tantas que um dos primeiros temas a atravessar Treme é a volta do carnaval. Personagens se perguntam se é possível celebrar, recuperar o ânimo e a alma, no meio de tanta perda. Alguns estão céticos, outros acham que é a única coisa que se pode fazer. Lembrar, dançar, festejar, resistir. Não deixar a tormenta levar o melhor de nós.
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