por Flávio Morgado
O tom talvez fosse duro, mas ainda esperançoso. Assim imagino o antropólogo Darcy Ribeiro, atento e revoltado, cunhando essa frase realista, ainda hoje tão ressonante na minha vida profissional: “a crise educacional no Brasil não é uma crise, é um projeto”.
(O antropólogo, escritor e político Darcy Ribeiro)
Seu lugar de fala era o de um homem que atravessou quase todo século XX com o olhar arisco e o punho em riste aos projetos mais execrados de nossa história: a questão indígena, a luta de classes e a educação pública. O meu, o de um filho desavisado de sua esperança: professor há dez anos de educação secundária, mais precisamente, de cursos preparatórios para o vestibular. Isso até 2018, quando resolvi me desligar de minhas funções e já explico.
Darcy, depois de ter percorrido Brasil adentro (geográfica e animicamente), aproxima-se de Leonel Brizola e seu mandato de governador em 1982, e torna-se o responsável pela implementação dos Centros Integrados de Educação Pública, os CIEPs (popularmente conhecido como “Brizolão”), no estado do Rio de Janeiro. Já contando com toda sua base teórica bem fundamentada: ao pensar o espaço físico da escola em relação à cidade, sua integração com o espaço cotidiano, sua arquitetura (assinada por Oscar Niemeyer) e seu papel central na educação de um país com índices assustadores de analfabetismo, também por isso, o CIEP já teria sido o projeto mais concreto em relação à educação pública. Sustentada em uma história de exclusão, a trajetória educacional do país sempre foi a de construir funis e nunca de permitir condições de igualdade. Como dito, é um projeto.
Em que sentido é um projeto? Esse texto ficaria imenso, e talvez isso valesse até uma tese de doutorado, o que torna impossível pensar aqui cada nuance desse projeto, que talvez seja o único a conseguir a façanha de ser o mais bem-sucedido de nossa história. De fato, nunca oscilou, nunca chegamos perto do projeto de desigualdade fraquejar. E o resultado unânime disso é que todos os outros precisam fraquejar para que só esse dê certo. Não existe desenvolvimento tecnológico sem educação; não existe autonomia econômica sem educação; não existe Congresso honesto sem educação. Mas então a quem isso interessa? Quem manipula esse jogo a seu favor?
Vamos tentar elaborar aqui uma linha de raciocínio minimamente objetiva, e como bom vício de professor, elegendo alguns exemplos históricos emblemáticos. Por exemplo, a fundação da primeira universidade no Brasil. Ela só viria a acontecer 310 anos depois da fundação do Brasil enquanto uma conquista portuguesa. Ou seja, o que existia de educação básica era um misto de alfabetização funcional e rígido controle moral exercido pela Igreja Católica. A educação tinha um norte e ele era bem objetivo: o Brasil é uma colônia, lá não se deve produzir pensamento e a função educacional é a de domar esses “brasis”. Curioso que as escolas religiosas (sobretudo as que são bancadas pela Igreja Católica) ainda sejam os primeiros lugares em notas do ENEM, ainda que sua filosofia seja muitas vezes próxima ao adestramento.
Claro que a vinda da Corte Real portuguesa para o Brasil em 1808 traz com ela a necessidade de uma vida também cortesã. Para além de domar, era agora preciso, e urgente, que o Brasil passasse a ter instituições sólidas, intelectuais, e começasse a formar a sua própria aristocracia. Assim é fundada a Escola de Medicina da Bahia e finalmente a elite poderá economizar nas passagens de navio na formação de seus filhos. Temos então a primeira instituição educacional patrocinada pela Corte, mas que serviria a sua própria formação.
Com a Independência e toda sua negociata, o Brasil elabora (ou melhor, o Imperador impõe) a sua primeira constituição e assim pela primeira vez é oficialmente entendido o povo brasileiro em sua autonomia e seu conjunto de leis. Lá, que além de estabelecer a monarquia hereditária como sistema político, também é elaborado um sintomático projeto de cidadania (ou não-projeto): ficava definido que para os poucos cargos elegíveis da nação, somente uma mínima parte poderia votar, e uma minoria dessa minoria poderia se candidatar, tudo isso tendo como base o fundo censitário ( os bens, o poder econômico). Ser cidadão no Brasil, ter essa legitimidade, valia alguns alqueires. Temo que ainda valha.
Para votar, embora não tivesse o critério educacional explícito (alfabetizados ou não), isso na verdade só não acontecia porque em um contexto pós-colônia em que o abismo social é ainda mais assustador (afinal a terra era dividida entre donos e escravos) não exigia esse critério, era preciso ter terras, estar alinhado aos interesses da Corte, obedecer cuidadosamente aos critérios de exclusão daquele projeto e aprofundar todas as nossas contradições. O resultado: uma nova nação dividida entre donos (que votam e se revezam no poder, constitucionalmente legítimos), o povo e, ainda em sua maioria, os escravos. Uma aristocracia plutocrata estava em franca ascenção e o projeto de nação sobre o nosso lombo.
Com o alargamento social brasileiro, o surgimento da burguesia, as concessões e as vistas grossas do Império, o critério educacional passa a valer como quesito de cidadania. Analfabetos não poderiam votar, e assim prevaleceu até 1988. Era uma nova forma, menos rude, menos evidente, de manter a desigualdade sem precisar lançar mão do critério econômico. Uma vez desenhado que esse abismo, para além das propriedades, também define o perfil educacional de uma nação, o critério de alfabetização poderia aparecer, afinal ele manteria a mesma distância entre as classes.
Então de cara, já dá para perceber que o analfabetismo no Brasil foi durante anos negligenciado porque era uma ferramenta fundamental de dominação política. Pensem comigo: os analfabetos só puderam votar em 1988; em 1998, dez anos depois, o censo do governo FHC constatou que o Brasil tinha uma taxa de mais de 60% de analfabetos no país. Ou seja, por quatrocentos anos, mais da metade da população (isso porque se pegar taxas do Império esse índice ultrapassa 75%) foi alijada da participação política efetiva. Porque sim. Porque não fosse isso, o Brasil não seria exatamente assim: uma terra de tanto a conquistar, tanto a dar e tanto a ter, para poucos. Bem poucos.
Nos idos da Ditadura Militar, sua propaganda ufanista e estatal lança o famoso MOBRAL (Movimento Brasil Letrado). Comovendo milhões de universitários à velha prática do enxugar gelo com boas utopias, o governo federal prometeu alfabetizar o país inteiro. Sob um Estado de censura e imprensa perseguida, o que torna impossível analisar os dados oficiais, de fato houve uma queda na taxa. Poderíamos dar esse mérito a eles? Não. Porque de maneira efetiva não houve a alfabetização, dando início a um fenômeno tão estranho quanto brasileiro que é o semialfabetizado. Ou seja, o alfabetizado funcional. Para atender demandas mínimas de um país que almejava o capitalismo moderno e minimamente passar uma boa imagem à Unesco e instituições internacionais, a alfabetização em massa promovida gerou uma espécie de cidadão que só é alfabetizado para funções capitalistas: assinar o próprio nome, saber ler para diferenciar, não para interpretar. Quem aprende a ler costuma dizer que ganha um mundo novo. O semialfabetizado é uma concessão mínima ao parque letrado da burguesia: “entenda o que for importante para o seu serviço, saiba assinar a carta de demissão que eu lhe redigir, separe minhas encomendas e seja uma secretária de boa caligrafia”.
Para um país que atravessou a escravidão de maneira tão fundante, sobretudo em seus piores vícios, que viu um projeto de anti-cidadania ser insistentemente erigido contra o povo, jamais iriámos conseguir sair dessa vala educacional se não fosse pensada a base do problema: a luta de classes. O abismo de dignidade, é essa a palavra cara do Brasil, que ela estabelece.
Darcy elaborou uma escola que dialogasse com a cidade e suas vicissitudes: a dificuldade de transporte (daí serem tantos CIEPs), a dificuldade de alimentação diária da família pobre carioca (daí o projeto de uma escola integral, com direito às refeições), da importância do esporte, do ir à escola que atravessa a cidade, da escola que se deixa atravessar (e que bonito foi o Niemeyer traçar essa arquitetura aberta como símbolo de educação). O projeto visava bases iguais, condições dignas. Ocupação integral dos meninos pobres (muitas vezes criados pelo desgoverno das ruas), alimentação básica, condições de higiene, um alcance tátil da cidadania. Foram poucos anos, logo o projeto foi boicotado, Moreira Franco eleito e a burguesia carioca regozijou. Eram recursos demais, estruturas demais, legados demais para que as demandas da elite pudessem suportar. Quando perguntava ao meu pai, brizolista roxo, como poderia um político acabar com um projeto tão sério, eu ainda era de um tempo que o tempo não andava para trás e jamais imaginaria viver na fase adulta manifestações contra um isolamento social que previne o povo da morte. Hoje eu entendo melhor: é o Brasil, cada vez mais cínico.
(NIEMEYER, Oscar. [Centro Integrado de Educação Pública - CIEP]. s.d. Fundação Oscar Niemeyer. Coleção Oscar Niemeyer.)
E aí agora, que chegamos a essa altura do texto, não podemos esquecer que eu sou professor e que todos os dias essa reflexão vinha como um "anti-mantra" a minha profissão. Foram até aqui quase dez anos, não posso reclamar porque fui exceção. Dei aula em colégios que não atrasavam o pagamento, pagavam acima da média indigna do professor, puderam me proporcionar conforto, aprendizado profissional, mas ainda assim, anestesiado, eu sou um professor, e no Brasil, isso é constante ativismo.
Há pelo menos cinco anos que eu vinha ouvindo na sala dos professores sobre compras de escolas, holdings, AMBEV, Instituto Millenial, tudo isso. Eu sempre achava que era mais um movimento de mercado, agora com esses nomes cafonas, essa coisa meio coach, meio executivo, de fato eu não estava entendendo a dimensão do problema até o colégio que trabalhava ser comprado.
Comecei a ler sobre e descobri que isso fazia parte de um novo fenômeno no mercado que é a oligopolização educacional do Brasil. Ou seja, o monopólio da educação particular no país por poucos grupos da elite, as tais holdings. Recentemente o programa “Greg News”, apresentado pelo Gregório Duvivier, fez uma importante análise sobre o papel da Kroton, a maior holding educacional do país. Vale pelo tamanho do susto assistir ao programa. Resumindo, são grupos de investidores que descobriram que a educação particular no país era ainda um dos poucos mercados pulverizados do Brasil (não dominado por monopólios), e que para além dos lucros imaginados, seria um produto indispensável ao andamento do país. A equação é simples como um tubarão caçando: oferece um caminhão de dinheiro para os donos de escola (algo que muda realmente a vida financeira do sujeito e nos torna incapazes de julgar), estabelece o velho “sob nova diretoria”, demite velhos profissionais, contrata novos pela metade do preço (“ah, não quer? Procura outro. Ah, o outro também é do mesmo dono”), horizontaliza o processo de educação nas famosas “redes de ensino” e vende isso em apostilas e planos de organização da sala de aula (curiosamente os mesmos há duzentos anos).
Essas escolas não são construídas por Niemeyer. Algumas estão em shoppings, outras em caixas pretas, prédios comerciais, espaços claustrofóbicos à hiperatividade infantil e necessária. Não usam Paulo Freire, a não ser como pano de fundo de algum projeto pedagógico mal-ajambrado e direcionado à parte da população que conhece a Europa, as cantinas são caras, as mensalidades são balizadas pela geografia da desigualdade, pela rede de contatos burguesa. Seu filho vai fazer networking. Vai competir Mercedes e casa em Angra, vai competir Iphone, e fiquem tranquilos papais, também vão repetir com esmero seu preconceito de classe e de cor. São escolas que cobram acima de três mil reais a mensalidade e abocanham 60% das vagas do Enem. Por que lá estão os melhores? Não. Porque lá está a fórmula, porque lá está o esqueleto da redação que eles ensinam como uma espécie de carimbo para aprovação, lá está o treinamento exaustivo, a robotização do desempenho, a competição pétrea dos valores burgueses em foco do Enem. A média de um aluno de escola dessa no Enem é 680, de um estudante de educação pública é 380.
(Darcy Ribeiro cumprimenta o educador Paulo Freire na década de 80)
Mas há a cota. Tão agredida pela elite, tão pouco e tão urgente, mas ainda essa sintaxe da concessão, ainda essa brecha oferecida por um projeto que visa os mesmos nos mesmos lugares. A cota é uma boa surpresa com um resultado fantástico. Não a solução e é ainda sintoma dessa desigualdade.
Por anos, salário em dia, utopia diariamente alimentada, ainda assim foi difícil pôr a cabeça no travesseiro e não pensar o quanto minha segurança profissional reafirmava um mesmo abismo. Como tantas vezes meu trabalho não estava institucionalmente limitado a um adestramento: cadeiras, hierarquia, forma, dez, vinte aulas no mesmo modelo (balizado rigidamente pelo Enem, afinal não é formar cidadão, é aprovar na prova) em um dia. Não era eu ali de batina com uma palmatória na mão em 1530, mas era eu ali, de camiseta da moda, contando piada para amenizar a tensão que o modelo que eu vendo enquanto professor produz. Sou eu o gestor e o algoz da crise emocional do meu aluno. Sou eu o gestor e o algoz da minha crise de consciência.
Por isso, meus alunos (que eu morro de saudades) esse texto é direcionado e dedicado a vocês. Porque jamais houve um engano na minha escolha, mas me permiti um encantamento, uma afirmação da educação como única via revolucionária da vida, que não me permite coadunar, afirmar, ou esconder que o pior inimigo do aluno é a escola, é este projeto de educação. Por isso, o Enem não será adiado, porque ele é a cereja desse bolo desigual, é a carta na manga do cinismo meritocrata, que esse texto prova historicamente ser injusto. Sua manutenção é uma atitude política. E ainda que seja adiado, muito possível por conta das trincheiras abertas entre o Congresso e o Executivo, o que nos importa é saber que a sua prerrogativa é a da desigualdade na preparação, no acesso e na distribuição desse ensino.
Rio de Janeiro, 11 de maio de 2020
P.S.: Dias após a edição desta coluna, o Governo Federal decidiu recuar e aceitar o adiamento do ENEM, como já tinha sido aprovado no Senado. A prova acontecerá em até 60 dias. Mas o atraso é de 500 anos.
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