por Pollyana Quintella
PQ: Ana, você pode contar um pouco como se deu seu encontro com as artes visuais? Quando e como você entendeu que seria através da prática artística o seu lugar de experimentação e afirmação no mundo?
AH: Eu acredito que esse encontro vem do meu desejo de fazer as coisas acontecerem, produzir em um sentido mais amplo. Eu fiz vestibular para Produção Cultural justamente por isso, por uma vontade de tornar as coisas possíveis, inventá-las, fazê-las acontecer. A partir daí, acho que posso dizer que vem o encontro com as artes visuais. No terceiro semestre do curso, era o ano de 2010, peguei uma aula de livros objetos e foi incrível! A proposta era estudar os artistas brasileiros e os seus trabalhos em formato de livros ou cadernos de arte, além de termos que produzir o nosso próprio livro ao final do semestre. Não me esqueço disso, me senti totalmente imersa nessa pesquisa sem entender bem o que ela era, o que era aquilo tudo na verdade. Eu fiz o trabalho e apresentei pra turma numa das aulas finais. Montei o livro de artista com um bocado de folhas finas e quase translúcidas, dobradas ao meio e presas por duas grosseiras dobradiças de metal, pesadas, dando assim uma forma de livro. O professor, Ítalo Bruno Alves, comentou generosamente essa experiência dizendo que o trabalho era delicado e trazia uma tensão entre mais x menos, força x fragilidade pelo uso dos materiais escolhidos. No manuseio do livro, as folhas praticamente se rasgavam por conta das dobradiças. Lembro que ao final da aula eu praticamente cochichei, meio sem jeito, quase como uma confissão para ele que não queria parar de fazer aquilo, que queria ser artista. Ele sorriu e me disse que eu tinha que estudar na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Foi o que eu fiz, onde tudo começou.
PQ: Você costuma dizer que a sua formação em Vila Valqueire, Zona Oeste, é um dado importante da sua produção. O que te interessa nessa experiência suburbana?
AH: Eu nasci, cresci lá e acredito que essa vivência é mesmo o que forma a gente. Claro, no sentido positivo e também negativo, porque além de crescer no subúrbio, eu vivi a infância na famigerada e politicamente incorreta década de 1990, ainda muito machista, misógina e sexista. O subúrbio por um lado pode ser muito opressor, mas ele não é só isso, ele também é generoso, caloroso, só sabe quem viveu por lá. Isso tudo me interessa muito, a relação entre as pessoas principalmente, o vizinho que recebe a sua encomenda quando você não tá em casa, sabe? Esse modo de viver onde há um compartilhamento maior da intimidade, uma atenção constante na vida uns dos outros, o bate papo na calçada nas noites quentes de verão, a vendinha de garagem, a moça do sacolé, as crianças brincando nas ruas, os cachorros latindo todos juntos como numa sinfonia, essas coisas que aproximam, a força que isso tem.
PQ: Queria que você comentasse uma certa obsessão sua pelo doméstico: as camas desarrumadas, as casinhas feitas de vários materiais, reproduzidas exaustivamente. Que casas são essas? Nesses últimos anos, acompanhando o seu trabalho, fico pensando que ele é um exercício de construir um lugar para habitar. Faz sentido pra você?
AH: Totalmente! Em 2014, depois de anos trabalhando com fotografia, sentia que ela já não me bastava, e então, descobri os cubos de açúcar numa ida despretensiosa ao mercado. Eu sabia que eles seriam os tijolos que iriam construir a minha casa, mas eu não sabia ainda de que modo construí-la. A série O menor abrigo surge com a casa de açúcar, que vem de um desejo tanto plástico, quanto conceitual. Até esse momento, eu trabalhava com fotografia, principalmente pinhole, pinhole digital, experimentações no laboratório fotográfico com negativos, ampliações, revelação, câmera analógica, com fotos da minha família ou imagens de arquivos. Logo, esse dado da plasticidade, tanto na construção da imagem quanto da câmera, que eu podia fazer literalmente com as minhas próprias mãos, já era uma questão fundamental no meu processo.
O menor abrigo #1 (2015), Açúcar, 3 x 3 x 2 cm.
Eu passei quase um ano trabalhando com os cubos de açúcar até conseguir chegar à forma da casa, com uma construção não literal, pois O menor abrigo #1 (2015) não tem paredes ou cômodos, portas ou janelas. Ele evoca uma ideia de casa mais onírica, como um pequeno amuleto, uma casa que se encerra em si mesma, construída com apenas 8 cubos de açúcar e cabendo na palma da mão. Após essa primeira experiência, continuei trabalhando com a ideia da casa com outros materiais, que ditavam por sua constituição, a escala, a forma e a quantidade de esculturas de cada uma das 5 casas da série. As casas foram feitas respectivamente de açúcar, vidro, porcelana, madeira e carvão. Acho que posso dizer com isso que elas são as minhas casas, ao passo que também são as de todos. Eu gosto mais do que elas escondem do que revelam, pois num primeiro olhar, vemos algo acolhedor, singelo, frágil e até bonito, mas se olharmos um pouco mais, podemos perceber o que o material coloca, já que o açúcar em excesso pode matar e o vidro cortar, por exemplo.
O menor abrigo #5 (2017), carvão, 1,5 x 1,5 x 1,5 cm.
O menor abrigo #2 (2015), vidro, 7 x 7 x 7 cm.
Acontece algo semelhante com as camas da série Guardar Silêncio (20019-2021), elas mais omitem do que denunciam, na verdade. Elas deixam indícios de uma cena, de que alguém esteve ali, de que algo aconteceu. Juntamente ao dado da escultura ser feita diretamente na barra de sabão de coco, e com isso, trazer todo o seu repertório histórico que remete à limpeza, ao trabalho doméstico e compulsório delegado às mulheres, a falta de autonomia e a violência implicada em todo esse processo que se originava no interior das casas. Assim, eu vou cada vez mais entrando dentro da casa, explorando os seus materiais, e, a partir de uma narrativa criada por eles, essencialmente evocada pelo seu uso doméstico, acredito que mais do que construir um lugar para habitar, me interessa desconstruí-lo, expor as suas entranhas.
Camas da série Guardar silêncio (2019/2020), sabão de coco
PQ: Você experimenta diferentes materiais durante o processo: cera, sabão, carvão, vidro, banha, açúcar, sal. Cada trabalho exige o desenvolvimento de uma nova metodologia, podemos dizer assim. Que sentidos esses materiais agregam ao trabalho? No caso de "O menor abrigo", por exemplo, as casas de açúcar são ambíguas, pois se reforçam alguma doçura óbvia na construção do imaginário do lar, também são frágeis e quebradiças.
AH: Os materiais são tudo para mim! Eles dizem muito e a partir do seu uso dentro do campo da arte, sinto que dão consistência e legitimam tanto a minha poética quanto às questões que quero levantar. Já estou trabalhando com eles há alguns anos e com o passar do tempo, a experimentação com esses materiais me fez perceber que a construção do trabalho não era apenas uma “apropriação” para a arte, mas a instauração de um repertório que contém e expõe uma potência política que nasce do doméstico ao mesmo tempo que a questiona e tenciona.
PQ: A sua família e história pessoal também são assuntos constantes de algumas obras. Como você negocia entre dimensão pública e a dimensão privada? Ao tornar alguns afetos seus públicos, eles acabam sendo mais coletivos?
AH: Sim. Acredito que essas questões que envolvem o trabalho só são minhas enquanto ele está dentro da minha cabeça ou em processo no ateliê, já que uma vez que o trabalho toma o mundo, se torna público, então passa a falar por todos quando levanta questões sobre a casa, o morar, a intimidade, o corpo e as relações entre as pessoas.
Carte de visite (2015), fotografia e cartão, 13 x 9 cm.
PQ: Quanto à produção mais recente, os "caquinhos" parecem recuperar um repertório suburbano carioca. Pode contar um pouco sobre eles?
AH: Claro! O meu trabalho fala da casa e isso implica em muitas questões e nuances dentro de todo o seu processo. Sinto que no início eu precisava construir a casa, a necessidade era essa, depois fui entrando e trabalhando com os seus materiais de uso cotidiano, entendendo o seu espaço, e agora, voltei para minha casa de infância, no subúrbio. Estou olhando pra casa pela primeira vez considerando o local onde se situa e o que isso coloca em questão. Os Caquinhos (2020-2021) começam assim, e, de algum modo, me sinto reconstruindo ao mesmo tempo que estou extraindo algo desse repertório do subúrbio carioca. Eles por enquanto são objetos e capachos que faço com o mesmo princípio da aplicação do piso de caquinho das casas. Eu também estou mais escultora do que nunca (risos), porque o trabalho vem ganhando escala, peso, forma, demandando cada vez mais de mim.
Caquinhos da série Casa (2021), concreto e cerâmica, 145 x 10 x 10 cm.
PQ: A palavra também tem ganhado uma importância, como na série de capachos e na série de bandeiras com saco de lixo. De onde veio esse interesse?
AH: O uso da palavra começou no ano passado com o capacho Coragem (2020). Eu sinto que ele veio nesse momento de distanciamento social devido à pandemia, como um mote, eu fiz o capacho e instalei na porta da minha casa. Era aquele pontapé para conseguir sair de casa num momento tão delicado e lidar com tudo que estava acontecendo. Logo depois me vieram outras palavras, como fôlego, resiliência e futuro, mas acredito que o uso da palavra veio pela emergência do que estávamos e ainda estamos vivendo. Tenho trabalhado com elas nos capachos, que inicialmente eram mais industriais, emborrachados, feitos por encomenda. Agora, tenho trabalho mais com capachos ordinários de um tecido mais sintético, que compro e pinto eu mesma.
Coragem (2020), capacho, 40 x 60 cm.
Futuro Coragem (2021), capacho, 40 x 160 cm.
A série das bandeiras me vêm ao mesmo tempo que os capachos, e, então, eu começo a produzi-las com saco de lixo preto, branco e amarelo. A palavra entra por cima e é feita com o mesmo plástico, que aqueço para que grude. Esse trabalho é feito assim, só com plástico e calor, é essa certa “invenção de uma técnica” para experimentar esses materiais inusitados que me acompanha sempre. Prontas, as bandeiras, flâmulas e birutas são hasteadas com cabos de vassouras velhas. Tenho chamado essa série de Brasil país de todos. Uma das últimas que fiz foi a biruta Futuro (2021), que como função primordial do próprio objeto, mostra a direção que sopra o vento, e com isso, de certa forma, para onde aponta o nosso futuro.
Bandeira Coragem, série Brasil país de todos (2021), saco branco e cabo de vassoura, 90 x 150 cm.
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Ana Hortides (1989)
Vive e trabalha no Rio de Janeiro. Artista visual e pesquisadora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ/ RJ), mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF/ RJ), na qual se graduou em Produção Cultural. Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV)/ RJ. Sua pesquisa se desenvolve em torno da casa, do íntimo, do habitar, da figura e da representatividade da mulher, da potência política do doméstico.
Realiza exposições individuais e coletivas, dentre outras: Casa Carioca (2020-2021) - Museu de Arte do Rio - RJ; Espaços íntimos (2020) - Arte Londrina 8 - Londrina/ Paraná; 1º Salão Artes para adiar o fim do mundo (2020) - Casa Visual Galeria/ Tocantins; Impávido Colosso (2019) - A Mesa/Rio de Janeiro; Mostra de Arte da Juventude - MAJ (2019) - Sesc Ribeirão Preto/São Paulo; 1º Salão Vermelho de Artes Degeneradas (2019) - Atelier Sanitário/RJ; Junho de 2013: cinco anos depois (2018) - Centro de Arte Hélio Oiticica/RJ; Flutuantes (2018) - Paço Imperial/RJ; Pouso de Emergência (2018) - Caixa Preta/RJ; VIDEOARTE AGORA VIDEOARTE (2018) - galeria A Gentil Carioca/RJ; Molde: Conversas em torno da escultura e do corpo Feminino (2017) - galeria Anita Schwartz/RJ; De Sangue e ossos (2017) - galeria Matias Brotas (Vitória/ ES); Escola em transe (2017) - Escola de Artes Visuais do Parque Lage/RJ; Novas Poéticas (2016) - Museu do Futuro/ Curitiba; Casa de infância (2016) - Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica/RJ; Desescritos (2015) - Centro Cultural Paschoal Carlos Magno (Niteroi/RJ); 5 a Mostra (2014-2015) Escola de Artes Visuais do Parque Lage (RJ); Exposición de Fotografía Estenopeica - Pinhole Alrededor del Mundo (2013) - Museo Presley Norton, Guayaquil/ Equador.
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