por Flávio Morgado e Marcelo Reis de Mello (colunista convidado)
Em homenagem ao centenário do educador Paulo Freire, propus um diálogo, como ele tanto gostava, ao molde de suas correspondências, sempre tão afetivas, com o também professor, poeta e amigo Marcelo Reis de Mello.
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O educador palestrando em Osasco, década de 90
Flávio, giocatore,
Antes de chegar a Paulo Freire, peço licença pra começar esta nossa troca de cartas abertas com uma passagem de uma das aulas do Zé Miguel Wisnik sobre o Grande sertão: veredas em que ele intui que, apesar de todas as tentativas de tradução do livro pro italiano, espanhol, alemão, inglês, francês e muitas outras línguas, Guimarães Rosa, talvez, continue sendo o “nosso segredo”. Afinal, como traduzir justamente aquilo que falta no que se lê? A voz do velho narrador se constrói nas pausas e ao silêncio se encaminha, adiando a morte. É ao inferno da escrita que nós, leitores, somos lançados. Mais do que o pacto fáustico de Riobaldo na encruzilhada, Grande sertão trata de um pacto diabólico [1] entre os praticantes de uma língua (língua em estado nascente, brasileira, forjada em geografia bárbara: nonada[2]). Tão necessário como impossível traduzir — até mesmo ao português — é o nome tupi dos veios d’água que roem os morros na aridez do sertão (anhanhonhacanhuva[3]). As pequenas veredas sob a superfície agreste do texto.
Só que quando a gente fala desse “nosso segredo”, com Zé Wisnik, o pronome possessivo dá a impressão de que bastaria ser brasileiro pra participar do pacto da leitura. No entanto: o que é ser brasileiro? Precisamos considerar que o Grande Sertão não é nunca a demarcação oficial de um território, um “Brasil”, e sim, ao contrário, experiência radical de uma incerteza (mais do que cartográfica) ontológica: só a errância realiza a Aventura.[4] Inexiste ali um Brasil estável, oficial, unificado. Jagunço é dissenso. Os lugares são passagens de tropas, ensaio sem fim, antessala purgatorial. “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.” O Liso do Sussuarão, por exemplo, jamais se apresenta apenas como um enorme platô sobre a Serra das Araras; ele constitui o ponto do livro e da estrada em que o mundo subterrâneo, ctônico, toca a superfície da terra (ali onde o texto se faz textura). Liso é também o que interrompe o “as´pro” da paisagem sertaneja; sussuarão pode também ser bicho, fera: substantivo masculino de suçuarana, a onça-parda, puma.
Giocatore mio, espero que entenda a excentricidade do itinerário. Esta devia ser, e é, uma carta sobre o professor Paulo Freire, às vésperas do seu centenário. O fato é que, como um cabra dedicado à poesia (mesmo filho de pedagoga e neto de professores), sou bem tímido em matéria de pedagogia, e achei mais justo entrar nessa conversa pela literatura, pela linguagem. Aproveito pra arriscar uma aproximação pouco usual entre Freire e Rosa, revisitando uma palavrinha cara ao vocabulário do Paulo: inacabamento. Sempre que possível, o professor voltava a ela pra frisar que a educação só acontece porque somos seres inacabados. O que quer dizer que a gente não aprende pra chegar ao pódio do saber, um lugar estático, do qual miramos, lá embaixo, os ignorantes do mundo. Não. A educação é horizontal. Aprendemos pra expandir os horizontes da nossa existência, sendo capazes de agir e transformar a realidade. “Ver”, “olhar”, “mirar” ainda não significa que somos capazes de ad-mirar (o simples sufixo ad- indica que as coisas que vivemos podem se tornar forças espantosas, com movimento, direção, aproximação). E se para admirar-se com algo é preciso estar junto, estar com, para (se) educar é preciso ser capaz de (se) admirar:
Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, tranformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente este é capaz, por tudo isto, de comprometer-se. (Paulo Freire, Educação e mudança, 1979)
O processo educacional deve ser dialógico, mas até para o diálogo há limites. Inclusive, arrisco dizer que a importância da conversa em Paulo Freire recalcou um pouco a potência do conflito e da desobediência, em seus livros (podemos desenvolver mais essa ideia, se você quiser). No grande romance-poema de Guimarães Rosa, para traçarmos paralelos, a história se constrói na forma de diálogo, entre o ex-chefe de jagunços Riobaldo e seu interlocutor anônimo, um “doutor” da cidade. São dois indivíduos de vidas, lugares e classes bem diferentes, e essa tensão não é ignorada. Mas o que move a história é o sentimento de inconclusão ou inacabamento ontológico do jagunço, que o coloca numa posição sempre provisória, transitiva, entre ensinar e aprender. É muito bonito e emocionante o modo que o personagem tem de se admirar com tudo, tentando aprender o tempo todo, mesmo (ou sobretudo) quando se torna professor.
Quando aparece o amor da sua vida, Reinaldo/Diadorim, aí é que ele não para de se perguntar sobre o (não)sentido da travessia. O sertão vira uma floresta de signos esfumaçados: “Diadorim é minha neblina”. É este amor que move, pr’além de qualquer outro pacto diabólico, a guerra contra os poderes constituídos, a desobediência implacável do jagunço, seu pacto com o diabo. O que Riobaldo aprende (e não é pouco), aprende com/pelo amor. Paulo Freire: “Não há educação sem amor”. Riobaldo: “Quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade”. E noutro ponto: “O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando”.
Quando falamos em Paulo Freire, em geral começamos pelos biografemas, pelo método de alfabetização, pelo ti-jo-lo de Angicos. A vida do Paulo foi extraordinária mesmo e é inclusive curioso como os acontecimentos importantes da sua vida estão ligados a mudanças de paradigma na política brasileira. Estes cem anos de Paulo Freire, com Paulo Freire, explicam muito sobre a história da nossa república. O que teria acontecido se Jango não tivesse sofrido o golpe em 1964 e Paulo tivesse conseguido implementar o Programa Nacional de Alfabetização? Em 1968, já no exílio, enquanto os militares preparavam o AI-5, Paulo Freire escrevia Pedagogia do oprimido. Mas para além desses fatos, ressaltados sempre, eu queria pensar no homem e no educador para além do mito Paulo Freire. Porque sua proposta de educação libertária é diametralmente oposta à mitificação: “Não posso me deixar seduzir pelas tentações míticas.” Isso nos cobra uma postura diante do mundo, que coincide, em muitos aspectos, com a profissão amorosa e rebelde de Riobaldo.
Bem, giocatore, eu ainda teria muitas coisas pra dizer, a partir dessa relação, mas estaco. Quero te ouvir um pouco, respirar, pensar no que já disse. Vem pro jogo, amigo.
Marcelo Reis de Mello
Rio de Janeiro, 15 de setembro de 2021
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O educador Paulo Freire faz formação de professores para replicarem sua metodologia (Foto: arquivo)
Meu irmãozinho,
Que maravilha receber essa carta. Nela é visível a sua disciplina com as coisas que lhe tocam e a permissão de que elas sejam congregadas às suas outras paixões. Daí que não me surpreenda isso que chama de “trajeto excêntrico”: a interlocução entre a literatura e a pedagogia. São dois gestos de generosidade, duas formas que se comunicam em sua necessidade prévia da escuta. E talvez esteja aí o eixo fundamental do “método freireano”: a emancipação subjetiva só é possível a partir de uma mediação porosa, algo completamente oposto a uma autoridade verticalizada. Com sorte, nos propõe isso um bom professor; e também assim se dá a literatura de profundos ouvidos de Guimarães Rosa.
Começo pensando essa questão da generosidade e da escuta, porque me dei conta, pesquisando para a nossa correspondência, que toda mitificação que há em torno da figura de Freire, acaba por deixar uma série de lacunas, que se de um lado sustentam toda luta em torno de sua memória, por outro, dificulta uma compreensão efetivamente mais profunda, inclusive de seu perigo para a Direita.
Por isso proponho o cruzamento de duas narrativas em torno de sua trajetória: a experiência germinal e objetiva de Angicos, no Rio Grande do Norte na década de 1960, e o despejo da Ocupação Paulo Freire, do Movimento dos Sem Terra, em 2019, longos anos após a sua morte.
Quando Paulo Freire chega a Angicos, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Norte, a missão era provar que seu método seria capaz de alfabetizar trezentos lavradores em apenas 45 horas.
O método parece simples, mas se olharmos em contraponto às pedagogias dominantes era um abismo para os professores da época. O Brasil estruturou desde sempre, e isso é sintoma claro da sua construção exclusivista da cidadania, escolas conservadoras, baseadas no que Paulo chamaria de “conhecimento bancário”, em que a noção de aluno é absolutamente passiva e castrada, seu objetivo é uma inconsútil disciplina e um desempenho condecorado numa meritocracia de meia dúzia.
Freire propõe um exercício de intensa disponibilidade afetiva dos professores, uma mediação porosa, a qual mencionei acima, que viria a permitir um entendimento daquela realidade. Não se trata de um preparo ao conhecimento da classe dominante, um depósito bancário de valores e costumes da opressão; Paulo quer que o discente chegue ao entendimento de sua sintaxe, de sua gramática: regional, aldeã, lavradora. Paulo quer que Diadorim escreva a si próprio.
E a estratégia para isso é criar a partir da necessidade, é escutar e propor as tais “palavras gerativas”. Que nada mais é, e isso é de uma beleza absurda, que a devolução formal (escrita) de uma realidade já posta, já do convívio. E a partir dessa uma palavra, tudo que está ao redor do lavrador se ilumina sintaticamente. O que antes era uma garatuja de doutor, agora é um mundo que se abre. Bastou sair da fórmula: “Vovô viu a uva” (não se plantam uvas em Angicos) e trazer palavras como “tijolo”, “tigela”, “povo”, “voto".
Para os que não são professores, e provavelmente foram alfabetizados ainda na infância, que leem essa correspondência, talvez tudo isso pareça muito simplista. Mas é a força afetiva desses gestos que conduz toda essa narrativa de emancipação.
Vou dar a vocês um exemplo que vivi. Recentemente fui contratado por uma escola tradicional, com formação conservadora e religiosa. Fui chamado aos 45 do segundo tempo, no meio do ano letivo, para substituir uma professora de 78 anos, que tinha mais de quarenta de casa. Uma turma inicial do Ensino Fundamental II.
Embora a escola seja particular e os acessos culturais e materiais bem mais facilitados, isso não significa que a velha fórmula do ensino bancário e de seus recursos castradores ainda não deixem seu efeito. Eu chegaria a dizer, inclusive, que uma classe média escolarizada que elege o bolsonarismo, ela só pode ser fruto de um projeto educacional absolutamente castrador e preso a um ciclo de opressão. Mas voltando à sala de aula. Assim que cheguei, fiz questão de me inteirar sobre os procedimentos pedagógicos. E para quem já tem uns bons dez anos de sala de aula, eu bem sei que um será o que a Coordenação instrui e outro, o que as crianças relatam. A coordenação me passou a diretriz disciplinadora. As crianças, uma aula de História monótona, em que qualquer balbucio discente seria condenado com a exclusão da sala e todo conteúdo era “entregue” em uma leitura da professora. “Página 25: A colonização na América...” e assim seguia: por uma hora e meia!
O garoto, portanto, não sabe o que é um livro didático, sobre quais circunstâncias ele é escrito, o que faz um historiador, o que significa aquela aula, o que é a palavra colonização, o que é e onde fica essa América que a leitura menciona. Ele está com sono, uniformizado, o sapato aperta e esse não entendimento geral vai ter que se tornar, no mínimo, uma nota 7,0 daqui a duas semanas. Fora o evidente fator ansiogênico da escola, realmente a única vez que a palavra “tijolo” é lembrada nessas condições, é na sala dos professores: tijolo-aluno. São iguais, são maleáveis, são passivos.
Na minha primeira aula, sabendo disso, tomei duas decisões simples: sorri e olhei eles nos olhos. Puxei uma cadeira como a que eles estavam sentados, sentei como eles, projetei afetivamente a minha presença, disse meu nome, apresentei o que penso como escola, como História, perguntei os seus nomes. A primeira aula tinha quinze alunos, a segunda teria trinta e cinco. Na quarta, eles já me chamariam de “Flavinho”. E nesse momento, um continente afetivo foi conquistado. E só depois dessa troca justa, impossível de ser pensada sem que fosse respeitada a dignidade dessa criança e a subjetividade desse educando, é que qualquer movimento educacional poderia começar. E a verdade, é que depois que esse pacto é selado, o andamento do conteúdo é meramente um detalhe. Eles já estão implicados em dois valores, que ao longo da sua vida serão desdobrados: a responder com autonomia quando convocados, e a compreensão da necessidade de devolução dessa mesma legitimidade a qualquer presença. Aprende-se a andar coletivamente.
É só depois disso que se pode, honestamente, convocar a turma a entender o genocídio indígena ou as nuances de uma historiografia ligada ao poder, e que toda essa compreensão, para muito além da sua média escolar, é a condição primeira de seu movimento enquanto cidadão. A escola passa a ser um meio de libertação.
Tudo isso, porque sou um professor após Paulo Freire, é ele o meu lastro teórico, o farol de toda essa possibilidade de rede afetiva. Como a que ele estendeu em Angicos, tramando com mais trezentos lavradores os nós de uma experiência que marcaria a todos como a passagem de uma estrela que prevê liberdade, tão nociva ao poder, que era preciso cegá-los novamente.
Freire realizou sua experiência ainda sob o governo de João Goulart. A promessa era de que um ano depois ele se tornaria ministro da Educação, o que de fato aconteceu, mas foi brutalmente interrompido pelo golpe de 1964.
A experiência de alfabetizar tantos lavradores em tempo recorde, não é só esperançosa, é revolucionária. Em 1963, o Brasil ainda se orientava pela Constituição de 1946, que apesar dos ligeiros avanços democráticos (sobretudo se pensarmos que ela surge da tentativa de sanar a ditadura do Estado Novo), ainda não dava conta da grande exclusão eleitoral que a república, de maneira orquestrada e constante, exercia sobre os analfabetos. A massa, como gostam de chamar.
A exclusão dos analfabetos é o projeto de cidadania da república. É sua forma de lidar com o contexto pós-abolição, mantendo as hierarquias simbólicas e materiais, e essa espécie de iluminismo de engabelação, em que se nomeia uma “Constituição democrática”, mesmo que se tenha menos de 30% de participação eleitoral. Freire vai no cerne dessa ferida. Se o problema da cidadania encontra o muro do analfabetismo, então que pulemos esse muro.
Em 1964 o golpe eclode, Paulo Freire, então ministro da Educação, tem seu mandato cassado, parte para o exílio e o seu Plano Nacional de Alfabetização é suspenso. Mas não há nada que apague o que essa promessa abriu.
Freire passa por diversos países, escreve. Ao voltar ao Brasil, chega a assumir a Secretaria de Educação da cidade de São Paulo na década de 90 e morre alguns anos depois. Tornou-se Patrono da Educação Brasilieira em 2012, durante os anos do PT e, desde então, sua memória se atiça como um siri na lata.
Antes, sutilmente perseguido, agora passou a ser nominado. Sobretudo depois da ascensão de Olavo de Carvalho ao cargo de intelectual da nova direita o método de Paulo Freire passou a ser duramente perseguido. Defendendo argumentos de que “mil sambistas não valem um solfejo de Bach” ou que “gramática regional é a produção de um Brasil imbecil”, o astrólogo elegeu o educador popular como o maior comunista da História desse país.
E sim, Capitano mio, eu poderia ir aqui para dentro de toda potência efetivamente socialista que há em Paulo Freire. Porque há. Seria ingênuo não ler nas suas entrelinhas a escola pensada por Gramsci, a disposição política de seu pensamento sobre autonomia. Seria ingênuo não pensar que são essas as indagações que vão acolhê-lo em um exílio de anos, onde ele foi execrado por um governo, que truculento ou não, entendeu a profundidade de seu gesto simples. Por outro lado, seria no mínimo perverso querer obnubilar essa influência, como quem pudesse reduzir toda sua implicação política a uma simples benevolência, e não compreendesse, que Paulo Freire vai à educação básica porque crê em transformações de estrutura. Nesse sentido, prefiro que a direita o odeie e o persiga (o que não deixa de ser um sintoma óbvio, uma frontalidade com as suas próprias contradições), do que o tente tomar para si, anulando toda sua potência revolucionária.
O índice de perigo que passou a simbolizar seu nome é tão grande, que não é à toa que em 2019, no primeiro ano de mandato do bolsonarismo, a Ocupação Paulo Freire, em São Paulo, foi despejada. Quase como escolhida a dedo.
O MST é o movimento social mais organizado do país, carregando consigo a marca de ser o maior produtor e exportador de arroz do Brasil. A maneira como o Movimento toma seus princípios é a explicação do tamanho da sua resiliência, mesmo em uma História como a nossa. Uma das tradições dos assentamentos é a construção da Escola dos Sem-Terra, que fundamentada no método Paulo Freire, torna a aprendizagem em conscientização da própria luta.
Lembro quando entrevistei uma coordenadora de uma escola de assentamento. Depois aprender sobre todo o trâmite burocrático de como fundar essas instituições, perguntei a ela como era alfabetizar uma criança nessas condições, como fazer para dar alguma noção de pertencimento em um contexto de luta, de acampamento, de deslocamentos, de violência contra a casa conquistada. Não poderia esperar uma resposta mais freireana: “soletrando o desterro.” A luta é a gramática deles. É dessa maneira que se sustenta uma tradição, uma luta social, e com alguma esperança, ainda que débil, um país possível.
Que outro método caberia a essas escolas, amigo? Que outros princípios seriam possíveis, nessas circunstâncias, se não os de Paulo Freire? Como sua teoria se dá no cerne de uma prática de escuta ativa, não é como se uma realidade se adaptasse a um método, é o método que se ajusta ao real. Há em Freire um prazer pela travessia, o inacabado, o movimento. Tenho para mim, que como o Rosa, Paulo Freire sabia que o Brasil profundo não é um sítio, mas um certo modo de se andar.
Flávio Morgado,
Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2021
Sugiro que ao fim dessa leitura se escute essa canção de João do Vale com Clara Nunes
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Flávio, giocatore, amigo,
Que bonita sua carta. É bom conversar com um professor de História. Um poeta-professor. De toda a carta, este seu final me fisga a língua: “como o Rosa, Paulo Freire sabia que o Brasil profundo não é um sítio, mas um certo modo de se andar.” Ou, pouco antes, essa imagem forte do letramento que nasce da possibilidade de soletrar o desterro. No caso, são três as palavras geradoras, que, em conjunto, ressignificam umas as outras: [Movimento] [Sem] [Terra]. A aquisição desse vocabulário é essencial para a compreensão tanto dos vínculos afetivos como do projeto político da comunidade, abrindo, ao mesmo tempo, a possibilidade de entender a própria língua como lugar de constante movimento e conflito. Toda língua é “cheia de línguas”, como escreveu Hélène Cixous. Obviamente, essas três palavras não produzem os mesmos signos (não significam a mesma coisa) num assentamento do MST e numa mesa de jantar da classe média, ou numa cobertura da Vieira Souto: terra sem movimento.
Sobre o método de alfabetização do Paulo, que você começou a explicar, eu gostaria de lembrar também que, depois de investigar as palavras geradoras (apresentadas ao lado das imagens correspondentes), os alunos eram estimulados a montar novas palavras, a partir das suas famílias silábicas. Da palavra TIJOLO, exemplo mais difundido, seriam apresentadas as três seguintes famílias:
Ta-Te-Ti-To-Tu
Ja-Je-Ji-Jo-Ju
La-Le-Li-Lo-Lu
Na ficha da descoberta, depois de uma leitura na horizontal e outra na vertical, que revelam os sons vocais, a turma começa a realizar a síntese oral, “fazendo” palavras novas: “Tatu”, “luta”, “lajota”, “tito”, “loja”, “jato”, “lote”, “tela”. E são estimulados a aproveitar livremente a vogal de uma das sílabas, tirando, talvez, o “i” de “li” para formar “le(i)-te”. Em Educação e mudança, Paulo conta de um alfabetizando de Brasília, que, “para emoção de todos os presentes, inclusive a do então ministro da Educação, Paulo de Tarso, disse: ‘Tu já lês’. E isto foi na primeira noite em que começava a alfabetização.”
Tu já lês! Com a descrição dessa cena, tão bonita, entendemos por que não há de existir educação sem empatia, sem troca, sem algum amor. E, como ensina Riobaldo, “qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Lição amorosa invariavelmente colada à biografia do Paulo, que, antes mesmo de ser um professor socialista, foi um professor humanista, um homem ligado à educação de base pelas iniciativas pastorais, às quais se dedicaria durante toda a vida. Assim é que ele conjuga as Pedagogias do oprimido, da autonomia e da indignação (como Ação cultural para a liberdade) a uma Pedagogia da esperança e da solidariedade.
É sobre essas duas últimas palavrinhas que eu gostaria de falar um pouco mais, esperança e solidariedade, antes de encerrar minha participação nas nossas epístolas paulinas. Aliás, foi acertada a opção pelas cartas (ao invés de textos solitários e sisudos) para pensarmos os cem anos do Paulo. Ele gostava das correspondências. Escreveu inúmeras cartas e alguns livros-cartas, depois do exílio forçado. As cartas, sobretudo no caso de uma troca entre amigos, nos colocam diante de uma dimensão importante do ato educativo, na perspectiva freireana, e que, não por acaso, é uma das fontes filológicas da palavra solidariedade: a philia (em grego) ou amicitia (em latim).
Em determinado momento, na sua carta, Flávio, você visita a própria prática enquanto professor de História dentro de uma estrutura escolar antiquada, uniformizadora, amiúde violenta. Daí a importância não somente da qualificação formal adequada, na sua área de atuação, mas de uma expressão corporal generosa; a mirada horizontal pros alunos, um sorriso que saiba acolher amorosamente as diferenças. Como professor (trabalhei durante anos com turmas do 5º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, em escolas públicas e privadas, e hoje trabalho com adultos, numa universidade estadual), me identifico integralmente com essas questões.
Nos últimos meses temos estado bastante próximos, giocatore, e outro dia você me perguntou, durante uma brincadeira nossa com o Italo, o que eu faria se fosse nomeado ministro da Educação. Uma das coisas que eu respondi, lembra?, foi que tentaria acabar com a monodocência, por um lado, e com a atomização curricular, por outro. Em suma, que lutaria pra destruir a solidão em sala de aula (enquanto ainda houver salas de aula, típicas invenções de uma estrutura classista, fechada, verticalizadora). Com raras exceções, e exceções quase 100% elitistas, ainda não conseguimos chegar sequer à intuição de Tolstói, há mais de cem anos: “a escola deixará de ser talvez como nós a compreendemos, com estrados, bancos, carteiras: será talvez um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa”.
É aí que entra uma pedagogia da solidariedade (decorrente da philia grega: o amor-da-amizade envolvido na partilha dos saberes, como nestas cartinhas), contra a solidão acachapante das nossas escolas. Em 2008 estive na Escola da Ponte, uma instituição pública no interior de Portugal, na condição de professor visitante, pra conhecer in loco o projeto pedagógico desenvolvido e implementado pelo professor José Pacheco (com o qual eu havia tido a oportunidade de conversar algumas vezes, aqui no Brasil). Certo dia, lá mesmo, adquiri um livrinho escrito por ele, apresentado pelo Rubem Alves, chamado Sozinhos na escola. Uma coleção de crônicas sobre o problema da solidão e da falta de solidariedade, em escolas dos dois lados do oceano:
Alguns anestésicos discursos neoliberais incitam a devolução da escola à comunidade. Mas onde está a “comunidade”? Como se pode promover diálogo se não há interlocutores? Até por dentro, as escolas são arquipélagos de solidões, jangadas de pedra à deriva! E todo professor que aspire a ser solidário, terá (como diria o meu amigo Pedro) de se imaginar um navegador solitário.
De todas as cenas que me marcaram, nessa breve visita à Escola da Ponte, a que mais me marcou foi a de uma miudinha, recém alfabetizada, apoiando o caderno na parede para copiar alguma coisa que eu, vindo de outro mundo, não entendi logo de cara: “É a pauta da assembleia de hoje, professor. Hoje é o dia da nossa assembleia.” Claro, claro, hoje é o dia de vossa assembleia. Lá na Ponte são os alunos, de todas as idades, os corresponsáveis por organizar periodicamente a plenária com pais e professores, para tratar dos problemas surgidos e debatidos na escola, deliberando em conjunto sobre temas de interesse comum.
Estou contando essas coisas, giocatore, porque acho que para ajudar a “desmitologizar” Paulo Freire, tirá-lo da condição — — institucional, burocrática — — de mero Patrono da Educação Brasileira, é fundamental ativar uma perspectiva histórica mais ampla, que compreende tanto a história pregressa da educação (por exemplo, seu diálogo com Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira...), como sua herança direta ou indireta: o trabalho dos professores que o sucederam, dentre os quais, nós modestamente nos achamos.
Por fim, além da Solidariedade, eu anunciei que falaria um pouquinho também sobre a Esperança. No caso de Paulo Freire, os textos da Pedagogia da esperança foram um modo de revisitar, com seu olhar crítico, questões colocadas na Pedagogia do oprimido. Mas não vou seguir caminho tão repisado. Assim como quis trazer, na primeira carta, uma abordagem mediada pela travessia amorosa de Riobaldo e Diadorim, em Grande sertão: veredas, que nos permite pensar o Brasil mais como sintoma do que como símbolo de alguma coisa, prefiro terminar esta segunda carta com a noção de Esperança esboçada por um filósofo, Giorgio Agamben, em seu ensaio “A Aventura”.
O último capítulo do ensaio é dedicado a Elpis, a esperança, que seria um dos rostos (ou máscaras) que a aventura — — Tyche — — apresenta a cada vez. Nesse livro, o Demônio, tremenda obsessão de João Guimarães Rosa, presente em toda a narrativa de Grande sertão,[5] é retomado por Agamben não como uma contraface de deus (um deus maligno), mas na forma de Eros: o Amor: um semideus. Essa perspectiva coincide, acho eu, com aquela adotada por Riobaldo, ao longo da travessia infernal (“o sertão é dentro da gente”), cujo destino é determinado pela entrega da sua vida ao amor, e, portanto, a algo que invariavelmente fica pra trás, faltando. Porque ir ao encontro do amor é experimentar, a cada momento, a nossa incapacidade de amar. Por outro lado, é isso, precisamente, o que nos impele ao salto, à aventura. Não a saciedade dos sentidos, mas o encontro com Eros, um semideus, filho de Penia (a penúria) e Poros (artifício, malandragem: oposto de aporia). Eis aí a possibilidade de uma “mediação porosa”, como você disse, Flávio. Transcrevo o final do livro de Agamben,
O amor é, nesse sentido, sempre sem esperança e, todavia, apenas a ele pertence a esperança. E este é o sentido último do mito de Pandora. O fato de que a esperança, o último dom, permaneça encerrada na caixa, significa que ela não espera a sua realização fatual no mundo. E não porque remeta a sua satisfação a um invisível para além, mas porque ela já sempre foi, de algum modo, atendida.
O amor espera porque imagina e imagina porque espera. Espera o quê? Ser atendido? Na verdade, não, porque é próprio da esperança e da imaginação ligar-se a algo que não pode ser atendido. Não porque elas não desejem obter o próprio objeto, mas porque, enquanto imaginado e esperado, o seu desejo já foi sempre atendido. Que, segundo as palavras do apóstolo, “na esperança nós fomos salvos” (Rom., 8, 24), é, por isso, ao mesmo tempo verdadeiro e não verdadeiro. Se o objeto da esperança é o que não pode ser atendido, é somente enquanto insalváveis — já salvos — que esperamos na salvação. Assim como supera o seu atentimento, a esperança ultrapassa também a salvação — e também o amor.
Eita, mais uma vez escolhi um caminho difícil. Não quero dizer, com essa perspectiva filosófica sobre a Esperança, que a educação como prática da liberdade em Paulo Freire, esteja relacionada a uma questão abstrata, a uma utopia desligada das lutas diárias que é preciso encampar. Sua Pedagogia do oprimido é dedicada “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim, descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.” No entanto, se esta luta se dá a partir da esperança (e a esperança em Paulo Freire é sempre, também, de ordem ontológica), significa que não se trata apenas de habitar e aprender a lutar num mundo previamente organizado, cujos sentidos estiveram sempre aí, prontos, à espera de leitura e decifração. Educar e ser educado significa, enfim, considerando a dimensão utópica do comprometimento, permitir-se uma existência mais do que ética, poética. Ou seja, uma vida capaz de ultrapassar a mera reprodução dos signos instituídos: criação de linguagem, linguagens, sobre e pelas quais cada indivíduo se coloque à altura da Aventura que escolheu narrar.
É isso. Que os cem anos de Paulo Freire sirvam para ajudar a desmitologizar o seu nome, mais do que para consolidá-lo como uma estátua de praça. Solidariedade que constitui os laços de amor entre nós, os vivos: philia. Ler o mundo para entender a necessidade da luta (Angicos é um grande exemplo). Ler as imagens e os livros para ressignificar a vida, sempre e incessantemente, na medida em que Eros se impõe. Concluo com uma historinha bonita do professor Willie Bolle, que, quando chegou da Alemanha, pra estudar a obra do Guimarães Rosa, cortou a lombada do Grande sertão: veredas e revestiu as paredes do apartamento com as quinhentas páginas do romance. E ali ficou, uns bons anos, morando dentro do livro.
A vida é luta. Quem mói no as’pro não fantaseia.
E, também, possiblidade de piração. Construção de mundos.
O Brasil é um, nenhum e cem mil.
Vida longa ao professor Paulo Freire. Vida longa a você, meu amigo.
Obrigado pela conversa,
Marcelo Reis de Mello
Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2021
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O antropólogo Darcy Ribeiro e o educador Paulo Freire
Manito, Capitano!
Preciso começar lhe dizendo duas coisas: a primeira, já muito bem sabida entre os nossos é que eu diria o famoso jargão do Italo — “Muito bem colocado, Marcelo!”; a segunda, e que em boa medida é o que mais me emociona nessa correspondência, é que de fato há na philia — essa que menciona com seus fantasmas aliados aos vivos que lhe abraçam — uma disciplina afetiva que é muito bonita. Poder reconhecer que a partir de uma premissa aparentemente simples de trocar correspondências em torno da obra de Paulo Freire, já é o ponto de partida de uma troca que não exige menos do que a presença efetiva, com toda sua carga emocional e o rigor de quem, na bela medida da admiração, traz consigo toda a sua bagagem: como quem se apresenta inteiro, como quem aposta na erudição como uma possibilidade de generosidade. E não é sobre isso tudo isso aqui? Sobre não estar só.
Nos murais das mais belas escolas estão, por muitas das vezes, as piores intenções. Entre flores, caridades, doações de agasalho, há silêncios que ensurdeceriam Paulo Freire. Formas (heteronormativas, claro) de como se constitui uma família, comemorações caricatas do “Dia do Índio”, noções de um sofisma nocivo sobre educação, sociedade, coletivo, indivíduo. E tudo isso, frente ao sintoma, inserido no cerne da ferida, eu posso lhe garantir (e sei que você sabe): é de uma solidão absurda.
Não me lembro de ter tido nenhuma rusga com qualquer aluno nesses anos de carreira, de uma forma que a minha única explicação é de que há de fato uma abertura genuína. E por outro lado, já está dado, ele será meu aluno, e essa realidade, essa presença posta, é incontornável. Se ele for negro, menina, pessoa trans, cigano, filho adotivo de um casal homoafetivo, é essa a realidade que eu vou precisar entender, aprender, e, em alguma medida, o que ele espera de mim, ensinar. E não será sob uma forma autoritária, religiosa ou moral que eu vou conseguir construir essa ponte com um mundo, que também ele está florescendo. Essa porosidade é de mão dupla. O que difere, ao menos em tese, é que dada toda estrutura opressora da escola (e ela se sustenta na forma, no hino, na classe, nas cadeiras enfileiradas...), essa porosidade discente ela precisa ser cativada. Nós é que nos preparamos, cursamos pedagogia, licenciaturas, para estruturar essa ponte. Então, já de cara, essa solidão é posta na docência.
Por muitas vezes, como a minha disciplina implica essa fabulação, eu olho ao redor e penso que talvez meu aluno nunca tenha escutado sobre aquele assunto, que ele habita uma cidade que está gritando em seus símbolos e monumentos, e ele simplesmente os atravessa, que as outras aulas de Humanas talvez não se comuniquem, porque muitas vezes não sei sequer quem são esses outros colegas. Ou seja, por muitas vezes, eu não sou só o professor de História, sou também o Brasil Império, o próspero Reino de Mali, a frustração americana no Vietnã, o rancor dos torturados pelo DOI-CODI, as afegãs de Cabul. Você é professor e também sabe disso: não é terrível e linda essa responsabilidade?
Eu acho que foi essa a pergunta que mais fiz aos meus colegas nesses dez anos de carreira. E repito: é grande a solidão.
A dimensão da solidão de um educador é na sala dos professores ecoarem argumentos como “aluno é mimado demais”, “esses moleques enchem meu saco”, “tem aluno aí que não quer nada e depois vai reclamar quando for caixa de supermercado”. Na sala dos professores em que a hora aula é deplorável, o clima é de tensão, frustração e domingo. Na sala dos professores em que a hora aula garante um HB20, o clima é de indiferença, egocentrismo e sexta-feira.
Como pode ser a culpa do educando? Ele acabou de chegar. E mesmo que as condições sejam as mais precárias possíveis, ser professor não significa assumir um sacerdócio do sacrifício, inclusive as melhorias de classe são conquistadas na chave da philia. Mas só é possível se irmanar, quando a noção de educação é comum.
Mas a verdade é que boa parte das escolas compõe uma rede gerenciada por uma holding. Coringas do capitalismo jogam com a educação na bolsa de valores, o Estado adota uma negligência propositiva, os sindicatos são esvaziados e doutores disputam a dentes vagas na educação básica.
Proposta uma homenagem ao Paulo Freire, colegas olham desconfiados, outros se retiram da sala. A direção alega que é tomar um partido que não cabe à escola (??), e que sendo assim, existe um “protocolo”. O que significa que certas coisas são responsabilidades da família, e que por esse “protocolo”, não se discute sexualidade, raça e classe nas escolas. Campanhas de agasalho são feitas e registradas na comunidade ao lado, mas os alunos não sabem o que impõe esse abismo. Religiões de matriz africana também entram no index, digo “protocolo”, e “assuntos religiosos são estritos à educação familiar”, enquanto a escola ostenta um santo católico de mais de dois metros na entrada.
E muitas das vezes, e lhe digo isso sem falsa compaixão, tento pensar que não é um projeto, não é uma doutrina. Mas é tudo muito mais sutil e sorrateiro. Está ligado a uma noção da escola enquanto negócio, o aluno como cliente e o diretor escolar como empresário. Isso é um projeto: claro, inclusive muito bem-sucedido. Mas veja a merda: o seu sucesso é o completo fracasso do país. Fracasso educacional, que leva a um fracasso da cidadania, que leva a um fracasso político, e onde começa, termina: um fracasso da nossa subjetividade.
É essa atmosfera belicosa que choca o ovo dessa serpente. A capitalização banal do ódio, da nossa falta de empatia, da nossa incapacidade de organização coletiva, é o que vai eleger o fascismo. É o que vai, nas suas brechas, permitir que entre as cinquenta maiores fortunas do país, estejam em 2021, nove bilionários que fizeram sua grana na educação. Quando um deles comprou uma escola que trabalhei, seu discurso de “posse” era de um desbravador: “o mercado das escolas ainda é pulverizado no país, com a minha rede de mais de 210 escolas pelo país e mais de 25 mil alunos, eu me sinto um pioneiro”.
Lamento, my boss, mas o monopólio é uma prática por essas bandas de cá tão pioneira quanto a Primeira Missa. Seu orgulho é o mesmo de um capitão donatário.
São homens brancos, bilionários, ligados a institutos neoliberais que visam construir “escolas de excelência”, com mensalidades exorbitantes; ao passo que o Estado, seu parceiro oculto, vai destruindo a estrutura da educação pública, e ampliando o descompasso entre as classes. O que mantém a conservação social, alarga o abismo de acesso à universidade (que logo também é um mercado a entrar na dança) e repactua toda a sociedade numa lógica meritocrática dessa pedagogia do cinismo.
São nessas escolas que os murais estarão lindos, com frases motivacionais sobre as árvores, um pedido de oração com uma criança negra e em situação de rua no mural do pátio de 5 mil reais a mensalidade. Paulo Freire, e veja aí o tamanho da sua potência, não é cabível a todo esse constrangimento, então é preciso contorná-lo. Censura? Jamais. “Protocolo”.
E veja você que triste, Capitano mio: veio você cheio de uma esperança destemida, e eu lhe devolvo essa marmita de carne moída e fúria. Mas é esse o tamanho da nossa solidão.
Uma solidão que, diferente dessa resiliência patológica que o capitalismo implica a todo educador, se sustenta uma utopia de um abraço desmedido, eternamente em remissão. Algo que só atinge a integridade na doação.
Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob a pena de não fazê-lo bem. Desrespeitado como gente no desprezo a que é relegada a prática pedagógica não tenho porque desamá-la e aos educandos. Não tenho porque exercê-la mal. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política consciente, crítica e organizada contra os ofensores. Aceito até abandoná-la, cansado, à procura de melhores dias. O que não é possível é, ficando nela, aviltá-la com o desdém de mim mesmo e dos educandos.[6]
Então é essa estratégia de sobrevivência que lhe devolvo. A possibilidade de voltar a Paulo Freire como quem volve à tabula inicial, às epístolas, ou essa maneira, também terrível e linda, que temos de dar as mãos aos nossos mortos (não os deixando então morrer), assumir a sua via crucis, compartir a sua fúria e a sua entrega. Não foi sempre sobre isso, a solidariedade, as aulas de História?
Viva Paulo Freire, a educação popular, a amizade.
No front e contigo,
Flávio
Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2021.
Notas
[1] Sobre a diferença entre simbólico/diabólico, recorro ao filósofo italiano Giorgio Agamben. No último capítulo do seu livro Estâncias, ao pensar sobre caráter necessariamente duplo do signo (união entre significante e significado), ele defende que o “simbólico” (unido) é, simultaneamente, o “dia-bólico” (cindido): “O simbólico, o ato de reconhecimento que reúne o que está dividido, é também o diabólico, que continuamente transgride e denuncia a verdade deste conhecimento.” Essa me parece uma chave produtiva de leitura para a dimensão paradoxal dos signos em Grande sertão: veredas.
[2] “Nonada” é a primeira palavra do Grande sertão. E, embora dicionarizada em português, já impõe muitas dificuldades de tradução, pelo seu efeito polissêmico. Assim, desde o início, a partilha da palavra com os praticantes da língua de Guimarães Rosa, se dá não somente pelo reconhecimento de códigos previamente estabelecidos, mas, sobretudo, pelas possibilidades abertas durante a travessia poética. Experiência sempre estranha, bárbara (em que bárbaro é o conjunto de signos que não sabemos traduzir e que muitas vezes soa como um reles balbucio: bar, bar, bar...).
[3] “Anhanhonhacanhuva” é uma palavra tupi que significa “água parada que some no buraco”. Guimarães Rosa se vale dela em seu conto “Recado do Morro”, em que escreve: “Fim do campo, nas sarjetas entremontãs das bacias, um ribeirão de repente vem, desenrodilhado, ou o fiúme de um riachinho, e dá com o emparedamento, então cava um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num emboque, que alguns ainda têm pelo nome gentio de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrão, travessando para o outro sopé do morro, ora adiante, onde rebrota desengulido, a água já filtrada, num bilo-bilo fácil, logo se alisando branca e em leves laivos se azulando, que qual polpa cortada de caju.”
[4] Voltando a Agamben, é muito bonito o seu livro sobre A Aventura, traduzido pelo querido Cláudio Oliveira, em que afirma que “a aventura é para o cavaleiro tanto o encontro com o mundo, quanto encontro consigo mesmo e, por isso, fonte ao mesmo tempo de desejo e de espanto.” Ou ainda: “Aventura e palavra, vida e linguagem se confundem, e o metal que resulta da sua fusão é o do destino.”
[5] “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso — por estúrdio que me vejam é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela — já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças — eu digo. Pois não é ditado: ‘menino — trem do diabo?’ E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes...O diabo, na rua, no meio do redemunho...”
[6] FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, Paz e Terra, 1996. Página 67.
MARCELO REIS DE MELLO é poeta, crítico e professor de literatura. Doutor em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense, com a tese "Poesia, escrita insignificante: balbucio, desastre, apagamento". Atualmente é coordenador efetivo da área da literatura da Coart UERJ. Publicou, entre outros, os livros Elefantes dentro de um sussurro (Cozinha Experimental, 2017) e José mergulha para sempre na piscina azul (Garupa, 2020). Também é o curador da seção de Tradução desta revista.
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