por Aldones Nino
Esta imagem foi gerada usando a tecnologia DALL-E 2 desenvolvida pela OpenAI.
Diante do rápido avanço das grandes empresas de tecnologia no desenvolvimento de soluções de inteligência artificial, emergem diversas questões relacionadas à nossa interação com essas inovações e ao impacto que podem exercer em nossas vidas profissionais. O papel da inteligência artificial vai além da automatização dos processos de geração de imagens, estendendo-se também aos campos da curadoria e museologia. No âmbito cultural, a relevância dessa discussão tem crescido progressivamente, levando-nos a refletir sobre como tais avanços podem afetar as práticas e processos envolvidos na produção, gestão e apresentação de arte e cultura, impactando todos os elos da cadeia.
Os algoritmos são fundamentais para a ciência da computação e a programação, pois eles fornecem a estrutura e o método para resolver problemas e realizar tarefas. Devido a sua proeminência em quase todos os aspectos da nossa vida diária a era atual é frequentemente descrita como a "Era Algorítmica". Direcionando muitas das plataformas digitais, tecnologias de mecanismos de busca na internet, recomendações de mídia social, navegação por GPS e assistentes de voz. Onipresentes e essenciais para extrair informações destas enormes quantidades de dados - o chamado "big data". Os algoritmos estão moldando a sociedade e a cultura de maneiras significativas e às vezes controversas, desde a personalização de conteúdo até a tomada de decisões importantes em áreas como crédito, contratação e justiça criminal. Vivemos uma era marcada pela penetração profunda e abrangente dos algoritmos na tecnologia, economia, cultura e sociedade, tendo um impacto cada vez mais significativo na forma como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos.
Esta entrevista tem como objetivo adentrar na intrincada interação de três perspectivas - museologia, produção artística e curadoria - para oferecer uma visão abrangente das oportunidades e desafios introduzidos pela integração da inteligência artificial no atual cenário cultural. Ao envolver profissionais de diversos campos, pretendemos iniciar um diálogo significativo que não apenas nos permita compreender as implicações dessas tecnologias em cada setor, mas também descobrir preocupações e oportunidades compartilhadas que possam informar e direcionar futuras discussões e iniciativas no âmbito das artes visuais. Nesse cenário dinâmico, os profissionais são compelidos a desenvolver novas habilidades e adaptar-se às mudanças, garantindo que o elemento humano não seja perdido em meio à crescente incorporação da tecnologia. Enfrentar esses desafios é fundamental para garantir um futuro promissor para a arte e a cultura na era da inteligência artificial.
Nesta entrevista, apresentamos um diálogo envolvendo três profissionais, discutindo o impacto e as implicações do uso de tecnologias generativas. É importante mencionar que a preparação desta introdução e do texto seguinte foi possível graças à interação e colaboração com uma inteligência artificial, no desenvolvimento do conteúdo, revisão e tradução. No entanto, é fundamental reconhecer que, apesar do apoio da inteligência artificial, a contribuição humana permaneceu integral no refinamento e ajuste do texto, garantindo sua qualidade e relevância.
Neste momento, a conexão sinérgica entre humanos e IA está se tornando indispensável, reunindo as qualidades mais relevantes de ambos: a precisão computacional da IA e a delicada percepção que permeia os processos criativos humanos. No entanto, é concebível que, em um futuro não muito distante, os avanços nessas tecnologias possam atingir um nível de sofisticação que minimize a intervenção humana. Apesar disso, a habilidade humana única de interpretar, contextualizar e empatizar continuará desempenhando um papel crítico, garantindo que a aplicação dessas tecnologias esteja alinhada com nossos valores e normas sociais em constante evolução.
Aldones Nino (AN), doutor em Historia y Arte pela Universidade de Granada e em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em História, Política e Bens Culturais e graduação em Filosofia e em História da Arte. Atualmente, está se dedicando à exploração de processos colaborativos com algoritmos de aprendizado de máquina e redes neurais, avaliando como a tecnologia pode ser usada para desafiar ou divergir dos sistemas hegemônicos dominantes.
1- Como a Inteligência Artificial afeta a concepção de autoria e originalidade na arte, especialmente em um contexto onde a IA pode gerar obras de arte? Como essas discussões influenciam seu trabalho de curadoria e como você navega por essas complexidades?
AN: Embora a discussão sobre autoria e originalidade no contexto da Inteligência Artificial tenha conquistado proeminência recentemente, é uma questão que ecoa ao longo da história. No entanto, é crucial que ampliemos o escopo deste debate para aprofundar nossa compreensão sobre a influência da IA no cenário cultural. Em minha opinião, tal abordagem pode obstruir a visão dos avanços significativos necessários para entender e adaptar-se à realidade emergente da última década. Esse tipo de discussão não possibilita grandes avanços no conhecimento necessário para atuação em nossa realidade.
Eu considero a IA (até o estágio atual) uma ferramenta que será cada vez mais usada pelos artistas, similar ao modo como sempre assimilaram de todas as inovações tecnológicas que já foram produzidas. Peguemos, por exemplo, a invenção da fotografia no século XIX e o questionamento desta como uma forma de arte válida, em virtude de sua capacidade de reproduzir a realidade de maneira precisa e mecanizada. Ou o debate acerca da incorporação da tecnologia de informática na criação de arte na segunda metade do século XX. Os artistas, em sua busca por novas formas de expressão, têm usado consistentemente a tecnologia emergente em suas práticas. Portanto, o surgimento da IA como ferramenta para a criação de arte não é uma ruptura radical, mas uma continuidade da interação histórica entre produção artística e inovação tecnológica.
Contudo, acho que a discussão muitas vezes permanece muito centrada na criação de imagens, deixando de lado a vasta gama de outros processos em que a IA também pode ser uma ferramenta valiosa. Ela pode desempenhar um papel crucial na pesquisa necessária para a concepção de uma obra de arte, ajudando os artistas a compilar e analisar informações de maneira mais eficiente e talvez até a descobrir conexões que poderiam ter sido negligenciadas. Além disso, ela também pode ser usada para gerar sugestões formais e de composição para trabalhos em outras mídias, expandindo o campo de possibilidades e permitindo que os artistas experimentem de maneiras que podem não ter sido consideradas anteriormente. Existe um enorme potencial não apenas de transformar o produto final da arte, mas também de reformular todo o processo criativo. E acredito que seja essencial que este debate se expanda para considerar a contribuição de todos esses aspectos.
A resistência à adoção de novas tecnologias na criação de arte é um fenômeno recorrente, intrínseco à própria natureza da inovação e mudança. Sendo necessário considerar que o cenário artístico, assim como muitos outros campos, busca estabelecer tradições e normas que o regulam e asseguram sua manutenção. Quando emergem tecnologias inovadoras que desafiam as normas preexistentes, é natural ocorrer resistência à mudança. Tais avanços tecnológicos frequentemente englobam conceitos e processos complexos, que podem ser desafiadores de assimilar, gerando, assim, sentimentos de apreensão e desconfiança diante do desconhecido. E novas tecnologias, especialmente aquelas que automatizam algum aspecto da produção de arte, chocam-se com um imaginário que confunde ideias tradicionais de que a arte é uma expressão singular e direta do artista como indivíduo, ignorando as nuances e processos colaborativos, pautados muitas vezes por múltiplas ferramentas.
A discussão acerca da legitimidade das obras criadas por Inteligência Artificial como arte pode parecer, a meu ver, um tanto ultrapassada. Vivemos um momento de expansão de fronteiras em todas as áreas do conhecimento, e a arte não é exceção. Portanto, me parece mais relevante refletir sobre como essas novas tecnologias podem contribuir para o avanço do campo artístico do que se limitar a questionar se elas se enquadram ou não em definições preestabelecidas de arte.
Acredito que ainda há muito a explorar em relação às produções pioneiras que abordaram estas questões. Exemplos notáveis incluem Harold Cohen e o seu programa AARON, desenvolvido em 1968 na Universidade da Califórnia, em San Diego, EUA, com o intuito de gerar imagens por meio de processamento computacional. Na mesma época, Waldemar Cordeiro, em colaboração com o engenheiro Giorgio Moscati, que tinha acesso a um computador IBM/360-44 na Universidade de São Paulo, Brasil, criou obras como “Transformação em Grau Zero/ Transformação em Grau 1/ Transformação em Grau 2 (1969)”. Existe uma necessidade urgente de pesquisas mais aprofundadas sobre esses pioneiros na área de geração de imagens por meio de processos computacionais. A pesquisa de suas abordagens pode lançar luz sobre a gênese desse processo que vem convulsionando o sistema atual.
Harold Cohen, Untitled Computer Drawing, 1982. Tinta e corante têxtil sobre papel, 57,5 × 76,5 cm. Coleção Tate Modern.
Waldemar Cordeiro. Derivadas de uma imagem: Transformação Grau 0, 1969. Impressão offset sobre papel, 53 x 38 cm. Colección Susana y Ricardo Steinbruch.
Estou convencido de que a profusão de imagens originadas pela Inteligência Artificial marcará um episódio fascinante na história da arte, intensificando e trazendo ao palco principal algumas questões que sempre foram intrínsecas ao diálogo entre arte e tecnologia. Com a IA, estamos não apenas revisando e questionando as noções preexistentes de autoria e criação, mas também explorando novas possibilidades expressivas e narrativas que esta tecnologia tem a oferecer.
Minha crescente curiosidade para desvendar essas questões originou-se da minha recente parceria com um sistema de inteligência artificial, que deverá resultar em vários projetos. Um exemplo claro é a exposição "O Tempo é uma Ilusão", que será inaugurada em setembro no Collegium. Esta exposição coletiva foi moldada com a assistência da inteligência artificial, não como um tema explícito, mas como um recurso instrumental para o processo de curadoria - uma espécie de parceiro silencioso, auxiliando na pesquisa, elaboração de materiais e exploração de possíveis conexões no âmbito da proposta. A escolha das obras foi pautada a partir de um diálogo entre a Coleção Collegium e na Coleção de Juan e Patricia Vergez, ambas coleções foram agraciadas com o “Prêmio A” concedido pela fundação ARCO, onde Collegium ganhou na categoria ‘Difusión e Investigación del Arte Contemporáneo desde el Coleccionismo; e a coleção Vergez recebeu o prêmio na categoria ‘Colección Privada Latinoamericana”.
Já queríamos fazer um projeto de diálogo entre ambas coleções, e assim vimos que este ano seria um ótimo momento para desenvolver esse projeto dentro do programa Diálogos. Nesse projeto tive grande suporte dos algoritmos para estabelecer conexões e similaridades entre as obras. Além disso, através de minhas interações com o sistema de inteligência artificial, fui apresentado a um dos artistas que agora integra a exposição. Isso levou a uma subsequente comunicação e solicitação de obras disponíveis, resultando em uma adição valiosa ao projeto. Portanto, a inteligência artificial desempenhou um papel fundamental, tanto na concepção quanto na realização deste projeto, otimizando vários processos.
Minha decisão de colaborar com sistemas de inteligência artificial, resulta pelo fato de que pareceu-me mais intrigante entender e me relacionar mais profundamente com esses sistemas, compreendendo suas possibilidades e os possíveis impactos na prática curatorial, antes de começar a desenvolver um projeto expositivo que se concentra na relação entre os artistas e o impacto dos novos métodos de produção de imagens. Porém, nos últimos meses, venho desenvolvendo uma pesquisa que se baseia na produção de vários artistas brasileiros, com foco especial nos processos computacionais de geração de imagens. A exposição irá apresentar obras que utilizam algoritmos de aprendizado de máquina, e experimentos visuais que exploram a interação entre humanos e sistemas de inteligência artificial em relação à sociedade que os cerca.
2- De que forma a inteligência artificial pode ser aplicada no processo de seleção e organização de obras de arte para exposições de arte, facilitando a elaboração de um projeto curatorial?
AN: A inteligência artificial (IA) pode ser aplicada no processo de seleção e organização de obras de arte para exposições de arte de várias maneiras. Esta tecnologia, ao ser empregada no processo curatorial, tem o potencial de simplificar de forma significativa a montagem de exposições, levando em consideração a vastidão dos acervos artísticos disponíveis permitindo aos curadores se concentrarem na criação de narrativas significativas dentro do objetivo de cada projeto.
Um dos principais desafios na colaboração entre humanos e Inteligência Artificial (IA) no desenvolvimento de projetos curatoriais é o viés algorítmico. Este representa um obstáculo significativo, já que as máquinas aprendem com os dados fornecidos a elas e, se esses dados estiverem enviesados, os resultados gerados também serão. A IA pode inadvertidamente perpetuar a marginalização de grupos sub-representados na história da arte. Por exemplo, se os algoritmos forem treinados com dados refletindo uma história da arte dominada por artistas brancos, masculinos e ocidentais, eles podem continuar a favorecer essas obras e artistas em detrimento de outros. Portanto, é crucial que os desenvolvedores de IA estejam conscientes dessas questões e trabalhem para mitigar os vieses em seus algoritmos, incluindo o uso de conjuntos de dados de treinamento mais diversificados e a implementação de técnicas de aprendizado de máquina capazes de identificar e corrigir vieses. Este desafio destaca a necessidade de envolvimento de um curador humano em todas as etapas do desenvolvimento. É de extrema importância que esses curadores possuam treinamento adequado para interagir com sistemas de IA, permitindo que suas diretrizes atuem como uma defesa contra a perpetuação dessas estruturas problemáticas que estão no cerne da constituição da maioria dos acervos institucionais.
A IA também pode auxiliar na análise de grandes volumes de dados, identificando padrões e correlações que podem ser difíceis para os humanos detectarem, por isso é importante inverter esse jogo, aproveitando a possibilidade de identificar padrões e tendências, permitindo uma compreensão mais alargada da composição de uma coleção e das lacunas que podem existir. No que diz respeito às questões decoloniais, a IA pode desempenhar um papel significativo, sendo programada para identificar e destacar obras de artistas sub-representados ou marginalizados, contribuindo para um processo de curadoria mais equitativo e inclusivo. Ela também pode ser usada para desafiar as narrativas coloniais na arte, destacando obras que abordam questões que integram os processos de descolonização, como a consideração de variáveis, raciais, de gênero e classe. Também podendo contribuir com a descoberta de artistas emergentes de várias partes do mundo, que podem não ter tido a oportunidade de terem sua pesquisa acessada por métodos tradicionais de curadoria.
Outro desafio substancial na incorporação da Inteligência Artificial (IA) no desenvolvimento de projetos curatoriais é a necessidade de infraestrutura tecnológica avançada e conhecimento especializado. Esta exigência pode intensificar o fosso já existente entre as instituições de arte nos países do norte global e as demais. Instituições mais ricas podem ter acesso a tecnologia de última geração, bem como a especialistas em IA e programas de treinamento especializado, enquanto as instituições menores ou com menos recursos podem se encontrar em desvantagem, exacerbando ainda mais as disparidades já presentes no setor cultural. Por isso, é de suma importância empreender esforços para democratizar o acesso à IA no campo da curadoria de arte. Isso pode envolver a criação de parcerias colaborativas entre instituições, focadas na partilha de recursos e conhecimentos, bem como a elaboração de programas de treinamento em IA que sejam acessíveis a profissionais de diversas partes do mundo.
3- Como você vê o potencial da inteligência artificial para criar narrativas e conexões entre obras de arte e públicos-alvo, ajudando a desenvolver exposições mais envolventes e relevantes no contexto atual?
AN: A Inteligência Artificial (IA) possui um potencial significativo para criar narrativas e conexões entre obras de arte e públicos-alvo, desempenhando um papel vital na elaboração de exposições, mas por experiência própria, posso afirmar que os sistemas atuais não dão conta da complexidade das produções, muitas vezes apresentando alucinações quando abordam obras específicas, podendo atuarem apenas em linhas gerais sobre a pesquisa dos artistas. Por isso o acompanhamento deve ser feito por alguém que conhece e domina a produção a qual está sendo tratada. Ao mesmo tempo, quando os inputs vêm organizados, o resultado pode ser bem interessante, pois partindo de um conjunto de informações dado pelo usuário, a IA pode contribuir com as leituras e relações possíveis de serem articuladas em diálogo com as obras.
Também existe um enorme potencial de aprimoramento da organização física de uma exposição. A IA é capaz de manipular variáveis diversas relacionadas à arquitetura do espaço disponível, propondo layouts que melhoram a circulação e a experiência do público. Elaborando assim arranjos de exposição otimizados, considerando não apenas a relação estética e temática entre as obras, mas também o fluxo de visitantes.
Além disso, a IA pode ser usada para personalizar a experiência do visitante. Por exemplo, algoritmos de aprendizado de máquina podem analisar o comportamento dos visitantes e suas preferências para recomendar obras de arte que possam ser de seu interesse. Isso pode tornar a experiência mais envolvente e pessoal, aumentando a relevância da exposição para cada experiência individual. Isso é possível através do uso de algoritmos de aprendizado de máquina que podem processar e interpretar big datas complexos com informações de visitantes, incluindo especificidades demográficas, históricos de visitas anteriores, feedbacks, tempo gasto em diferentes partes de uma exposição e até as obras de arte que despertam mais interesse do público. Esses algoritmos podem identificar padrões e tendências nos dados que podem não ser facilmente perceptíveis para os humanos. Com essas informações, os curadores podem tomar decisões mais informadas e precisas sobre o planejamento e a organização, podendo selecionar obras que provavelmente ressoarão mais com seu público-alvo. Possibilitando a personalização da comunicação e do marketing de acordo com as preferências do público.
Existe também o potencial de contribuir com o acesso à arte, especialmente no ambiente digital. Algoritmos de IA podem ser usados para digitalizar e catalogar obras de arte, tornando-as acessíveis a um público global. Podendo também criar experiências de Realidade Aumentada (AR) e a Realidade Virtual (VR), permitindo que os visitantes explorem exposições de arte de maneira imersiva, superando fronteiras físicas de acesso.
4- Como o aprimoramento das capacidades de tradução da inteligência artificial pode facilitar a inserção de curadores e seus projetos no cenário internacional, superando barreiras linguísticas e potencializando a diversidade?
AN: A IA, através de ferramentas de tradução sofisticadas, pode ajudar a superar as barreiras linguísticas que muitas vezes limitam a compreensão e a apreciação de obras de arte de diferentes culturas e contextos. Esse aprimoramento nos recursos de tradução permite que os curadores acessem uma ampla gama de recursos, como documentos, pesquisas e textos relevantes em diferentes idiomas, permitindo que curadores de diferentes origens linguísticas possam participar de forma mais equitativa no cenário cultural.
Além disso, essas ferramentas podem auxiliar curadores que não tiveram acesso a uma formação linguística devido a barreiras econômicas ou outras limitações. Isso pode ser particularmente importante para curadores de grupos historicamente marginalizados. Ao longo da minha jornada profissional, a falta de domínio de línguas estrangeiras foi uma barreira significativa. Inúmeras vezes, essa limitação me impediu de participar de convocatórias ou de aproveitar oportunidades valiosas. A linguagem, que é uma ferramenta fundamental para a expressão e a comunicação, tornou-se, nesses contextos, um obstáculo à minha participação plena e efetiva nesse campo de disputa. Durante esse tempo, recorri frequentemente a programas como o Google Tradutor para superar essas barreiras linguísticas. Apesar de úteis, essas ferramentas têm suas limitações. As traduções, muitas vezes, não capturam as nuances e o contexto cultural subjacente, resultando em textos que, embora compreensíveis, carecem de fluidez e naturalidade.
Contudo, recentemente, com o aprimoramento das capacidades de processamento, tenho notado uma melhoria significativa na qualidade das traduções geradas sendo mais naturais e fiéis ao sentido original, permitindo uma maior compreensão e permitindo que eu me comunique de maneira mais eficaz. Claramente, as traduções geradas por IA ainda não substituem as traduções humanas, especialmente quando se trata de textos complexos e cheios de nuances. Ainda há muito a ser feito, mas estou otimista com as possibilidades que esses avanços tecnológicos estão abrindo.
5- Como você avalia o impacto da inteligência artificial no papel dos curadores, e quais habilidades você acredita serem essenciais para os profissionais dessa área na era da Inteligência Artificial?
AN: Na era da inteligência artificial (IA), os curadores precisarão ter uma sólida compreensão das capacidades e limitações dessa tecnologia, bem como das implicações éticas e sociais que vêm com seu uso. Compreender como a IA funciona não significa necessariamente que precisem se tornar especialistas em tecnologia, mas eles devem entender os princípios básicos de como os algoritmos de aprendizado de máquina operam e como são treinados. Eles precisam entender que a IA não é uma entidade autônoma, mas sim uma ferramenta programada por humanos que aprende com os dados que lhe são fornecidos.
Os curadores precisarão ter um profundo entendimento das questões de privacidade de dados na era da inteligência artificial. Respeitar a privacidade de dados não se resume apenas à conformidade com as leis; também se trata de manter a confiança do público. Ao utilizar IA para analisar dados do público e personalizar experiências de exposição, é vital que eles garantam que os dados dos visitantes sejam coletados, armazenados e utilizados de maneira ética e em conformidade com os padrões legais vigentes. As leis de privacidade de dados podem variar significativamente entre diferentes regiões e países, e continuam a evoluir à medida que a sociedade lida com as implicações das novas tecnologias. Portanto, será necessário manter-se informado sobre os últimos desenvolvimentos legais e as melhores práticas em privacidade de dados. Isso pode envolver uma estreita colaboração com especialistas em direito e privacidade de dados para garantir que os usos estejam alinhados com o atual panorama legal.
Será necessário buscar transparência em seu uso de IA e dados, comunicando claramente aos visitantes como seus dados serão utilizados e dando a eles a possibilidade de optar por não participar, se assim desejarem. Essa abordagem proativa à privacidade de dados pode ajudar os curadores a navegar na complexa interseção entre arte, tecnologia e dados pessoais na era da IA, garantindo que suas exposições sejam respeitosas aos direitos e expectativas do público.
Os curadores também precisarão desenvolver habilidades para trabalhar efetivamente com especialistas em IA e tecnologia. Isso significa ser capaz de comunicar suas visões e objetivos curatoriais de maneira clara e eficaz, e de colaborar com esses especialistas para traduzir essas visões em soluções técnicas. Poderá ser necessário, por exemplo, trabalhar com cientistas de dados para desenvolver algoritmos ou com engenheiros de software para desenvolver aplicativos. A habilidade de pensar criticamente sobre o uso da tecnologia será mais importante do que nunca. Questionando não apenas como a IA pode ser usada para atingir objetivos curatoriais, mas também se ela deve ser usada dessa forma, considerando as implicações éticas e sociais do uso da IA, e pesar cuidadosamente os benefícios potenciais contra os possíveis riscos. Necessitaremos ser mediadores críticos, colaborativos e conscientes da tecnologia, capazes de compreender, utilizar e principalmente questionar a IA de modo a aprimorar nossas práticas curatoriais.
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Lucas Lugarinho (LL), mestrando da Roaming Academy do Dutch Art Institute (Rotterdam, Holanda) e graduado em Pintura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao explorar o loop de feedback constante entre cultura, tecnologia e natureza, o artista navega por paisagens digitais de fóruns de subcultura, blogs enterrados ou vídeos super frequentados para conectar quais modos de vínculo com abstrações emergiram do reforço sistemático da revolução das telecomunicações do século passado em nossas vidas.
1- Como você vê o papel da inteligência artificial no processo criativo da pintura, especialmente no que diz respeito à geração de ideias, conceitos e técnicas inovadoras para o desenvolvimento de suas obras?
LL: Primeiramente eu gostaria de mencionar o fato de que eu não sou um expert no assunto e estou longe de ter o conhecimento de quem trabalha conceitualizando e construindo modelos de inteligência artificial. É importante dizer isso logo no início por duas razões: primeiro porque atualmente essas tecnologias se fizeram muito evidentes no tecido social, à medida que as suas novas ferramentas vêm tornando-se mais acessíveis (ao menos por enquanto) e mais discutidas tanto nas esferas políticas quanto no cotidiano dos usuários da internet. Assim como a maioria dos fenômenos que emergem das profundezas das redes e alcançam relevância social, cada estrato dessas redes narra esses eventos de uma forma distinta, e mais além do pânico ou da expectativa, o que para os especialistas é um vocabulário técnico cheio de nuances e disputas teóricas acaba sendo absorvido e replicado culturalmente de outra maneira, seja através do pânico, da exaltação, do moralismo etc. Longe de mim, entretanto, querer fazer um juízo de valor sobre quem deve ou quem tem o direito de comunicar ou discutir tais tecnologias, mas eu digo isso pra chamar atenção das responsabilidades inerentes a esse assunto (e como devemos sempre suspeitar de narrativas totalitárias ou sensacionalistas) e também exatamente para justificar o meu segundo ponto em relação ao tema: já que eu falo aqui como um artista e não como um expert, e isso permeia toda a minha experiência com a inteligência artificial.
Em relação ao meu processo pictórico, independente do papel que a AI venha a exercer sobre o meu processo, eu penso que a pintura é a priori uma forma de algoritmo, isso é, uma série de passos que seguem uma linha lógica (ainda que essa lógica seja um jogo ou uma dança entre o negar a lógica dos passos e acolhê-los, vide por exemplo o trabalho dos abstratos americanos). Nesse sentido, a AI entra no processo criativo da obra como um passo a mais, seja conceitualmente, na pré-produção, durante o processo ou na pós-produção. Durante a minha trajetória com as ferramentas de AI, do deep dream às GAN's e agora em sua encarnação mais pop o DALL-E, eu testei inserir e trabalhar paralelamente com a AI em quase todas as etapas do meu processo, de uma forma ou de outra. Entre alimentar uma referência direta ao programa para produzir a referência final que eu pintaria à tentar descrever minuciosamente o resultado de uma pintura semi pronta à AI para decidir algumas últimas decisões sobre tom, forma e tema, eu acho que eu não cheguei a criar nenhuma práxis específica de como trabalhar com as AI, até porque essas mesmas mudaram muito nos últimos anos, tão ou mais rápido quanto a qualidade dos gráficos em 3D mudaram ano durante a virada do século passado. Eu não busco utilizar nenhuma tecnologia no meu trabalho em função da inovação na arte, eu acho que a instrumentalização da inovação no contexto da arte contemporânea é um problema, e não uma solução, mas acredito que essa seja outra discussão. Eu prefiro pensar na ideia do processo pictórico como um jogo, onde no caso, a AI entra como mais um componente. Pra mim, o interessante de posicionar uma tecnologia no centro de qualquer obsessão artística é a sua ambiguidade política: ela em si incorpora uma enorme gama de preconceitos e herda para si mesma um mundo completamente fragmentado, mas você também pode observar muitos benefícios em potencial. Então ela pode ao mesmo tempo entrar no jogo do fazer artístico como um adversário (a AI que vai reforçar a precarização do artista), o aliado (a AI que vai te ajudar a pensar composições), um obstáculo (como fazer a pintura fisica sobressair ou ser incapturável pela alta demanda de dados), ou um instrumento (pintar em paralelo ou com estes programas). Quando eu penso em AI enquanto eu trabalho eu tenho todas essas questões tomando turnos na minha cabeça exercendo diferentes papéis na narrativa que é construir uma imagem no tempo expandido, no sentido de que a pintura (talvez de forma ainda mais evidente pela imediatez da AI) se constrói num tempo compartilhado entre o tempo humano, o tempo material e o tempo da imagem. Para uma tecnologia que misteriosamente não é nada inteligente nem generalista, ela parece conseguir brincar facilmente entre esses três tempos, o que me faz pensar que a imagem é um componente central dessa ferramenta, talvez até mais fundamental do que o conceito de inteligência.
2- De que maneira a inteligência artificial tem influenciado sua abordagem artística e o processo de criação, e quais são os principais benefícios e desafios que você encontrou ao integrar essa tecnologia em seu trabalho?
LL: Como eu mencionei anteriormente, eu flertei por alguns anos com a AI como um instrumento/ parceiro/ inimigo mas ainda não havia tido a oportunidade de trabalhar numa peça onde a AI estivesse no centro da obra, tanto conceitualmente quanto mecanicamente. Essa obra enfim se concretizou em "Abiogenesis” (2021 - 2023), o trabalho que eu acabo de apresentar no Museu de Arte Contemporânea de Monterrey (MARCO, México) e faz parte da coleção CIFO da Cisneros Fontanals Art Foundation. Entretanto, devido à pandemia do Covid, essa peça teve um ciclo de produção um pouco caótico: começamos a trabalhar em Abiogenesis em 2021 e apenas agora conseguimos apresentá-la.
Nesse meio tempo muita coisa mudou no cenário das AI, inclusive também a minha relação com esse campo e com a própria peça que nós apresentamos. Tentando resumir um pouco a trajetória desta obra, em 2021, enquanto eu residia na Cidade do México, eu comecei a me reunir com o Juan Miguel Vázquez, científico de AI e NLP (Processamento de Linguagem Natural), e o Miguel Ángel Rojas Santoyo, microbiolólogo, com o intuito de discutir a produção de uma obra sobre pintura, inteligência artificial e biologia. Na época eu acreditava que trasladar a noção de imagem como um recurso/ matéria prima ou commodity à uma ideia de imagem enquanto entidade biológica era um gesto importante no atual cenário artístico, não apenas como uma crítica ao conceito de meme em Dawkins mas também como um comentário ao que eu identifico como a exploração das faculdades imaginativas individuais, que escondem na infinitude da imaginação enquanto potencial humano as heranças coloniais que sustentam a ideologia dos atuais sistemas econômicos. Este gesto se manifestou em um software que apresenta e modifica, em uma grande televisão em formato vertical, uma pintura produzida especificamente para conter uma rede neural que gestiona a imagem como um ecossistema. A pintura inicial em si representa a figura de um sábio ou um andarilho em uma jornada rumo à incertidão, e o trabalho imita um aquário, onde as formas que habitam os limites físicos da pintura se manifestam como organismos em um ecossistema controlado.
Essa pintura se desenvolve com o tempo, 'alimentando-se' de imagens buscadas na internet e pouco a pouco ‘crescendo’ e modificando-se. Com a supervisão do Miguel Ángel, nós estabelecemos então alguns paralelos entre funções celulares de sintetização de nutrientes e os parâmetros formais de imagens digitais (quantidade de pixels, valores de colores, etc) numa tentativa de fazer com que a pintura emulasse a distribuição de recursos entre os organismos ali presentes. Neste sentido, a peça imita certos aspectos de um experimento científico.
Tomando emprestado o termo que se refere às teorias de como a matéria orgânica emerge de elementos inorgânicos, a ideia inicial de Abiogenesis era pensar o mutualismo quanto conceito sócio-biológico e aplicá-lo à relação observador/ imagem: mas o projeto acabou mudou bastante desde a sua concepção inicial, que planejava ser um software de uso pessoal/ local com acesso às imagens que circulam através dos dispositivos em uma dada rede de internet e que assimila essas imagens e muda a sua aparência com o tempo. O resultado a longo prazo seria uma pintura que atua como um espelho dessa rede e dos usuários que nela convivem, subvertendo uma expectativa do que a obra deve ser ou como ela deve se comportar: funcionando de tal modo que, assim como o conteúdo que consumimos molda e informa a nossa existência e realidades, essa pintura representaria em imagem a ecologia de meios incluindo o(s) espectador(es)/ usuário(s) enquanto agentes de fluxos de mídias. Com o apoio da Fundação Cisneros, que nos brindou a possibilidade de trabalhar nesse projeto para a sua coleção, nós adaptamos a ideia para o contexto de uma obra de museu ou obra de coleção de uma forma mais generalista: em sua forma atual, Abiogenesis tem acesso à internet mas não às imagens dos usuários das redes de instituições públicas (claro!), trabalhando então desde uma seleção de termos baseados nos seus próprios sets de treinamento.
Lucas Lugarinho. Abiogenesis, 2021 - 2023. Software de machine learning sobre pintura em televisão. Vista da exposição “Habitar”, no Museu de Arte Contemporâneo de Monterrey (Nuevo León, México), em cartaz entre 10 de março a 28 de maio de 2023. Foto de Germán & Gerardo.
Fora a adaptação do projeto inicial, inúmeros desafios foram aparecendo, em todos os aspectos da produção dessa peça. Juan, por exemplo, foi o único programador que trabalhou em todo o código da obra e nós tampouco tínhamos acesso à servidores de ponta para executar o treinamento dos modelos de redes neurais. A peça realmente se tornou uma espécie de AI de guerrilha, e o computador que atualmente roda o software acabou sendo um antigo notebook meio frankenstein que o meu pai tinha consertado e ajustado. Mas em minha opinião, acredito que essa seja a maior qualidade dessa obra, onde o programa em si se torna um exemplo da disparidade dos recursos disponíveis entre empresas multimilionárias e uma iniciativa em pequena escala que se recusa (por diversas razões), a empregar as ferramentas pré-estabelecidas disponíveis no atual mercado de inteligência artificial. Enquanto o Dall-E regurgita imagens em alta velocidade como o escravo perfeito que apenas escuta e executa, Abiogenesis só é capaz de gerar duas iterações por dia, sem um objetivo claro e tampouco uma multiplicidade de estéticas. Ao negar tanto este tempo acelerado de produção de imagens quanto a sua inconsistência de estilos, eu acredito que este trabalho alcança outras dimensões dentro das discussões ao redor dessas tecnologias, e este processo tem sido de muita importância para os trabalhos que eu venho desenvolvendo no momento.
3- Acredita que a utilização de inteligência artificial na criação de pinturas pode proporcionar novas formas de expressão artística e expandir os limites do que é considerado arte? Por quê?
LL: Ao meu ver, o atual uso das AI's no contexto das artes expõe diversas ansiedades globais ao redor do 'novo' e da inovação tecnológica e artística. Essa apreensão, por vezes teorizada no norte global enquanto crises estéticas ou crises da imaginação, são sintomas das limitações dos diversos projetos nacionais e transnacionais modernistas, e quanto estes fincaram raízes nas nossas expectativas ao redor das nossas idéias sobre cultura e arte enquanto à sua expansão histórico-linear (ainda que suas manifestações estejam em oposição a um dado status quo). Por um lado, na AI nós observamos uma tecnologia que, quando exposta às suas próprias incapacidades de servir-nos em uma dinâmica de demanda e produção (input - output), quase que acidentalmente encontra o que poderia ser reconhecido como a sua estética própria — vide o Deep Dream ou VQGAN, e os múltiplos vídeos onde inúmeras interpolações entre estilos de imagens fluem entre a incertidão e a abundância visual. Esta estética da abundância se anuncia enquanto uma nova etapa histórica de produção imagética, prometendo-nos uma nova era de ouro de imaginários antes inalcançáveis. Porém, ao contrário de outras tecnologias, que em seus momentos históricos expandiram as fronteiras formais da arte ao trazer novos meios estéticos que, na mãos dos artistas, forjaram-se em novos estilos e gêneros artísticos (por exemplo a fotografia, o cinema, os videogames) — a AI em seu atual estado curiosamente inverte certos aspectos dessa práxis moderna ao alimentar-se primariamente de dados já pré-existentes e ao prometer (de maneira suspeita) a socialização do papel do artista e o acesso à produção artística.
Eu acredito que esta anomalia tenha haver também com a própria fundamentação teórica da cibernética, que propõe na caixa preta uma práxis científica que dispensa o conhecimento dos processos internos das suas máquinas com o objetivo de compensar a imensa complexidade de traduzir os sistemas naturais em sistemas artificiais. Na lógica da caixa preta, os únicos recursos necessários para obter-se um resultado desejável são informação e tempo em proporções inversas: o máximo de informações computadas o mais rápido possível. Essa equação, que explica o aspecto estético da abundância das AI's (muitas imagens em muitos estilos em pouco ou nenhum tempo entre elas), invariavelmente se edifica através do acúmulo de, entre muitas outras coisas, mídias produzidas por artistas que por sua vez dependem da singularidade de seus trabalhos e estilos artísticos para sobreviver com alguma dignidade com os seus ofícios. O trabalho do artista contemporâneo que desempenha suas atividades nos chamados mercados ou instituições (exclusivas) de Arte talvez ainda não tenham sido tão afetados, por enquanto salvos pelo fetiche da obra material. No entanto, muitos ilustradores, designers, músicos e artistas digitais já vêem os seus trabalhos sendo roubados e seus estilos alimentados às redes neurais sem a sua permissão. Esta abundância então se traduz invariavelmente numa exploração assimétrica de dados, na incertidão (tanto estética quanto política) e no ecocídio, devido à sua alta demanda de recursos computacionais para realizar as suas funções. Alguns dos movimentos mais recentes das culturas digitais tem em seu cerne um aspecto crítico às noções de autenticidade ou inovação, como o plunderphonics ou vaporwave na música ou os games indie retrô, e eu acredito que este seja realmente um bom momento histórico para revisar a nossa relação com a autoria, a autenticidade e o novo (e quanto estas expectativas fazem parte dos projetos modernos do século passado), mas sem perder de vista as discussões em solidariedade aos trabalhadores de todos os setores, mercados e aspectos das esferas artísticas, sempre sob constante pressão econômica e risco de precarização.
4- Como você enxerga a interação entre a autoria humana e a contribuição da inteligência artificial na criação de uma obra de arte, ponderando se essa tecnologia poderia, de alguma maneira, reduzir o valor ou a originalidade da obra produzida? Além disso, quais são as possíveis implicações éticas e sociais do uso da inteligência artificial no campo da pintura, e de que forma essas questões são tratadas em seu próprio trabalho artístico?
LL: Eu acredito que as implicações éticas sobre o uso das AI nas artes não são de muita relevância para o meu trabalho artístico. Gostaria de explicar um pouco o meu posicionamento: ainda que eu acredite que o uso das AI em si tenham um grande impacto ético que se apresenta de modo mais generalizado, abarcando também outras áreas de uso, eu não tenho interesse em discussões sobre coautoria entre AI e humanos, se isso diminui ou aumenta o valor de um trabalho ou se o que as AI produzem são arte ou não. A razão é simplesmente pelo meu desinteresse em argumentar ou lutar pelo que é considerado arte e o que não é. Eu não acredito que esse seja o meu trabalho e eu busco não utilizar a minha prática como uma plataforma para disputar narrativas históricas ou atuais sobre arte enquanto categoria cultural. Como eu mencionei anteriormente, eu estou em completa solidariedade com os artistas que têm os seus trabalhos roubados pelos sets de treinamento, mas eu não trabalho com este medo em mente, provavelmente devido aos privilégios que eu carrego na minha prática e trajetória enquanto artista. Eu venho pensando sobre como a pintura que se manifesta fisicamente vai responder a essas tecnologias, imaginando quais os rastros materiais são realmente incapturáveis pela atual encarnação das AI's, e como estes fantasmas se comunicam com ansiedades mais antigas da própria pintura, encarnadas por exemplo na função sociocultural da fotografia enquanto a ferramenta essencial para o registro e circulação de obras materiais. É através da fotografia que a pintura e as artes visuais materializadas encontram os sets de treinamento, e eu penso que a imagem do fantasma gótico possa vir a ser uma metáfora interessante para repensar as possibilidades da artes visuais: como os rastros que insistem em escapar às ciências e tecnologias de captura e vigilância, indispensáveis para as atuais redes neurais.
Por outro lado, voltando às implicações éticas das AI's, hoje temos cada vez mais evidências, e em consequência, discussões sobre o atual estado dos produtos mais relevantes do mercado que fazem uso de inteligência artificial, e como os mesmos reproduzem lógicas e políticas extrativistas herdadas dos últimos séculos de colonização e capitalismo racial. As últimas duas décadas de exploração de recursos tanto naturais (matéria prima) quanto virtuais (dados), foram cruciais para a ascensão de projetos e empresas como a OpenAI, que hoje em dia se anuncia orgulhosamente em um modelo econômico 'inovador' que transita entre uma empresa non-profit e uma empresa for-profit, nomeado pela empresa como Capped Profit. Beneficiando-se da falta de uma estrutura legal para lidar com a complexidade dos sistemas necessários para correr essa empresa, a OpenAI (entre outras) parece emular as antigas empresas pioneiras dos modelos de extração colonial como as East and West India Companies, aventurando-se entre as ditas novas fronteiras do engenho humano e da imaginação às custas tanto da acumulação e exploração assimétrica de recursos quanto das próprias estruturas estatais que permitem que estas operem baseadas em promessas de monopolização.
Ilustrado com uma incrível sinceridade em um tweet, Elon Musk (atual dono do Twitter, e que também esteve envolvido no OpenAI) comenta sobre o golpe de estado na Bolívia em 2020, revelando consigo o tom e as políticas do atual panorama da instrumentalização das plataformas digitais. Em um momento no qual grandes recursos para a produção de chips de alta performance estavam em jogo, o CEO escreveu com o seu usual sarcasmo: "We'll coup who we want! Deal with it!" (“vamos dar um golpe de estado em quem nós quisermos! Lide com isso!”), confluindo um cínico porém genuíno sentimento de direito à exploração de recursos naturais e manipulação política ao mesmo tempo que atiça multidões (tanto em prol quanto contra) a produzir conteúdo, saciando no processo a grande fome das plataformas por fluxos de dados. Ainda que este tweet pareça, à primeira vista, não estar relacionado diretamente à questão das AI’s, acredito que ele exemplifique o processo no qual a imaginação social se consolida nos atuais ecologias privadas de mídias, onde consequentemente, sua informação é canalizada em sets de treinamento ou sujeitas à avaliação por AI’s (empregadas já há anos na supervisão de conteúdos de redes sociais).
Autor do tweet (@elonmusk), "We'll coup who we want! Deal with it!", 24 de julho de 2020, captura de tela.
O desejo implícito deste tweet anuncia a devastação da terra que se transmutará em unidades de processamento gráfico às custas da unidade sociopolítica do estado moderno do sul global, que por sua vez adubará os campos onde novas ordens de flores de aparência inconstante (porém familiar) nascem e morrem nos novos nortes globais como num piscar de olhos (alocados em real estate digitais e anunciadas enquanto multinacionais). Neste sentido, eu entendo as maiores implicações dessas tecnologias como um embate entre ecologias ou ecossistemas, onde a chamada ecologia de meios digitais, ao habitar este corpo conceitual, invariavelmente se constrói às custas das ecologias tidas como 'naturais' ou biológicas. Desde a minha posição enquanto uma pessoa interessada no tema e conversas com amigos atuantes na área, eu especularia que dentre todas as dificuldades adiante, acredito que a disputa entre o que as AI são e o que elas podem vir a ser, a luta pela inclusividade e representatividade no meio (também em contra os ‘biases’ concretizados em seus sistemas), e a reconceitualização dos instrumentos ideológicos desenhados por Wiener e outros teóricos modernos da cibernética que gerem as atuais noções de inteligência – são alguns dos maiores desafios para o campo. Desde a minha posição enquanto artista, eu desejo seguir adiante em discussões sobre o tema e espero ter a oportunidade de trabalhar mais a fundo com cientistas e teóricos mais equipados para responder a essas perguntas do que eu hehe.
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Guilherme Siqueira (GS), mestrando em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV). Possui bacharelado em Museologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2018). Tem experiência na área de memória e patrimônio, com ênfase em gestão de coleções, digitalização e design museográfico.
1- Como a inteligência artificial tem sido implementada e contribuído para aprimorar os processos museológicos. Poderia detalhar as principais mudanças que a IA tem trazido na gestão e preservação do patrimônio cultural nas instituições? Além disso, como ela tem afetado a forma como as coleções dos museus são gerenciadas e catalogadas?
GS: A implementação de inteligências artificiais, bem como a automatização de processos museológicos por meios de sistemas de informação, trazem consigo desafios e problemáticas decorrentes da pluralidade de instituições que se enquadram como museus e centros públicos de memória. Tais espaços se originam muitas vezes em ambientes de conflitos ou em disputas pela tessitura de uma trama histórica, seja numa escala regional ou mesmo nas esferas nacionais. Contudo, a inteligência artificial tem trazido importantes mudanças no modo como se interpreta e preserva o patrimônio público e coletivo, a começar pela (i) catalogação e indexação automatizadas, onde algoritmos analisam características visuais e identificam metadados em obras de arte, documentos históricos e acervos, com parâmetros de análises superiores aos processos manuais, partindo de uma descrição precisa de objetos, associada a digitalização e democratização dos acervos. A (ii) preservação e conservação será também repensada, onde a análise em tempo real de imagens em alta resolução, detecta danos, desgastes e demais deteriorações causadas por agentes externos, e até mesmo realizar simulações que atestem ou apontam danos ao acervo ao longo do tempo, em determinadas condições ambientais. Isso ajudaria os profissionais de museus a identificar itens que requerem cuidados especiais e realizar intervenções programadas, além da realização do monitoramento do ambiente, que pode ser constantemente alterado, se adequando a saúde das coleções. Na (iii) automação de tarefas repetitivas, a IA tem o potencial de automatizar tarefas de baixo valor agregado, liberando tempo dos profissionais para se dedicarem a atividades mais estratégicas, como o uso de chatbots direcionados, por exemplo. Na área de (iv) análise e interpretação de dados, as IAs podem analisar grandes quantidades de dados referentes às coleções, e cruzar os dados bibliográficos e estéticos, fornecendo novas interpretações a partir daquele rearranjo de conexões. É nesse ponto onde pode ser criada a personalização das experiências individuais dos visitantes, tornando a interação com o acervo mais rica, envolvente e significativa, o que nos leva a (v) gerenciamento de demandas e fluxo de visitantes, onde os algoritmos podem analisar dados em tempo real, de movimentação e contagem de visitantes dentro dos espaços, prevendo demandas e garantindo segurança e conforto dos visitantes. Por fim, na (vi) análise de sentimento e feedback, as IAs podem ser empregadas para analisar o os visitantes por meio de pesquisas, mídias sociais e demais fontes de dados, ajudando os museus a compreender as preferências e opiniões do público, permitindo ajustes e melhorias nas exposições e no próprio funcionamento da instituição.
2- Como a inteligência artificial está sendo utilizada para potencializar a criação de experiências interativas e personalizadas para os visitantes dos museus? Além disso, de que maneira você vê a IA impulsionando a acessibilidade e inclusão no ambiente museológico, particularmente na superação de barreiras físicas e geográficas que alguns visitantes possam enfrentar?
GS: A inteligência artificial impulsiona significativamente a inclusão nos ambientes museais, e como a criação de experiências personalizadas e imersivas, resulta da atuação conjunta e alinhada de praticamente todos os setores institucionais, principalmente no que diz respeito a catalogação, preservação e análise de dados. Os algoritmos podem analisar o comportamento dos visitantes, suas preferências, histórico de visitas e interações anteriores, oferecendo recomendações personalizadas com base nesses dados. Assim o sistema pode sugerir exposições, obras e documentos específicos, que tenham relevância junto aquele visitante. Os guias virtuais e assistentes de voz permitem a criação de ambientes interativos, que fornecem informações e orientações aos visitantes. Esses sistemas utilizam técnicas de linguagem natural no fornecimento de respostas, tornando a experiência imersiva. É nesse mesmo núcleo de possibilidades que se insere a realidade aumentada, que combinada com os guias virtuais, cria experiências interativas em exposições virtuais e mesmo exibe informações adicionais ao que está sendo observado no mundo físico. Os algoritmos podem ser utilizados na criação de instalações interativas que respondem aos movimentos e gestões dos visitantes, gerando interações dinâmicas e únicas, permitindo que os visitantes se tornem parte da narrativa e da própria experiência. Essas visitas virtuais, por meio do mapeamento de museus físicos, por exemplo, permitem que as pessoas explorem espaços e interajam com exposições de distintas localidades, o que pode ser positivo para pessoas que enfrentam limitações físicas e geográficas. A audiodescrição automatizada fornece descrições precisas e personalizadas para pessoas com deficiência visual e legendas automáticas para pessoas com deficiência auditiva, além de interfaces de controle por voz para e limitações motoras. Na tradução e interpretação multilingue em tempo real, a IA identifica o idioma falado e fornece informações em sua língua nativa, removendo essa barreira comunicacional, promovendo a inclusão linguística. Por fim, há a possibilidade de acesso a acervos remotos por meio de digitalização e indexação, onde visitantes podem interagir com coleções de diferentes partes do mundo, simultaneamente, aumentando assim a capacidade de personalização e imersão da experiência daquele visitante, ao se integrar museus, bibliotecas, arquivos públicos, cartórios, entre outros sistemas e bases de dados.
3- Quais são os desafios éticos e de privacidade que os museus podem enfrentar ao implementar tecnologias de inteligência artificial, especialmente no que diz respeito à coleta e uso de dados dos visitantes?
GS: Ao implementar tecnologias de inteligência artificial em museus, sem dúvida existem desafios éticos e que envolvem a privacidade dos visitantes que devem ser considerados. Para um correto funcionamento, a IA pode exigir uma coleta, processamento e armazenamento de grandes quantidades de dados e parâmetros do público, como preferências comportamentais e informações pessoais. É essencial garantir a privacidade e a segurança desses dados por meio de políticas regulatórias de proteção. Os museus devem ser sistemas robustos que objetivem essa privacidade, obtendo consentimento adequado dos visitantes e utilizando práticas de anonimização e criptografia das informações pessoais. É importante que seja garantido que os algorítmos sejam treinados com conjuntos de dados diversificados e que sejam implementadas técnicas para identificar e corrigir vieses, evitando a discriminação e garantindo a igualdade de acesso democratizado para todos os visitantes. Contudo, à medida que os sistemas de IA se tornam mais complexos, é essencial garantir a transparência e a explicabilidade em relação aos processos de tomada de decisão e da construção dos ambientes de experiência personalizada. Os visitantes devem ser informados sobre como a IA é utilizada e quais dados estão sendo processados e armazenados. O algoritmo e demais modelos de IA devem ser compreensíveis e auditáveis, permitindo que seja claro a partir de quais parâmetros as recomendações e decisões são feitas.
4- Como a inteligência artificial pode ser aplicada para detectar e prevenir precocemente possíveis danos e deteriorações em obras de arte e artefatos, contribuindo para uma manutenção mais eficaz e otimizada do acervo? Poderia descrever algumas iniciativas ou tecnologias baseadas em IA que estejam sendo utilizadas com esse propósito?
GS: As IAs podem vir a desempenhar papéis cruciais na conservação preventiva e mesmo ativa, não só de objetos artísticos, mas de tudo mais em que se tenha o interesse de preservar as futuras gerações. A partir de algoritmos treinados para analisar imagens e identificar sinais de dados, como rachaduras, desgastes, manchas e alterações de cor, as IAs poderão detectar alterações nas estruturas de objetos com precisão, permitindo que conservadores e restauradores ajam de maneira preventiva na reparação desses danos. Sistemas de monitoramento baseados em IA podem ser instalados em galerias e salas de exposição, e com o processamento em tempo real dessas informações, utilizando sensores inteligentes que coletem dados ambientais, como temperatura, umidade e taxa de luminosidade, podem ser emitidos alertas quando ocorrerem variações que sejam prejudiciais ao objeto. Com uma análise dos dados históricos, que leve em consideração a gênese de cada objeto, a partir de relatórios de conservação e registros de condições, como histórico de exposições e movimentação de acervo, é possível prever futuros danos e especificar as técnicas ideais de conservação para cada caso, dentro de uma rotina inserida no calendário automatizado da rotina dessa instituição. Contudo, a partir de sistemas de monitoramento contínuo, em conjunto do machine learning e da análise dos dados gerados pelo comunicação de sensores inteligentes, chamada a internet das coisas, aprimoram a detecção e prevenção de danos. Porém, existem desafios enfrentados pelos museus brasileiros para acompanhar a evolução tecnológica, especialmente no contexto da falta de incentivo público e de recursos adequados. As restrições orçamentárias são grandes obstáculos para a adoção de tecnologias avançadas. Museus municipais, com orçamentos limitados, acabam por hierarquizar outras prioridades que não a aquisição de equipamentos e softwares sofisticados, bem como a contratação de profissionais especializados. Assim, a falta de conhecimento e capacitação de funcionários necessários na implementação de novas tecnologias pode ser um desafio aos profissionais de museus, que devem buscar manter-se atualizados as novas tendências museológicas.
A manutenção e o suporte técnico contínuos também são essenciais para garantir o bom funcionamento das tecnologias já citadas até aqui, e a falta de recursos que dificultem a manutenção e a regular atualização dos sistemas, pode afetar a eficácia e a longevidade das soluções, bem como uma infraestrutura pública de conectividade que inclua a disponibilidade de uma rede de internet confiável é fundamental para a implementação de tecnologias baseadas em IA. Apesar dos desafios mencionados, é importante ressaltar que existem alternativas e abordagens adaptadas à realidade econômica dos museus brasileiros, aproveitando recursos tecnológicos existentes e a colaboração com outras instituições, como a utilização de aplicativos móveis e QR codes, fornecendo experiências interativas aos visitantes. A utilização das mídias sociais, que por se tratarem de plataformas acessíveis e populares, podem ser utilizadas no engajamento e detalhamento de usuários. E para além da implementação de tour virtuais e modelos fotogrametrizados de obras de arte e objetos, a digitalização e disponibilização de acervos e coleções, a partir de parcerias com instituições de ensino a pesquisa, ainda é uma das ferramentas de maior alcance e ampliação do acesso aos museus, onde os usuários podem navegar e pesquisar por obras e documentos antes disponíveis apenas a pesquisadores com autorização para pesquisa in loco.
5- Como a incorporação crescente da inteligência artificial nas instituições museológicas está moldando a evolução do papel dos profissionais desses setores? Quais competências e habilidades considera imprescindíveis para que esses profissionais se adaptem efetivamente a essa nova realidade?
GS: Primeiramente, acredito que os profissionais de todas as áreas devam adquirir conhecimento em ética da IA, compreendendo as questões referentes ao viés algorítmico, privacidade, transparência e justiça. Para isso é fundamental que os profissionais tenham uma compreensão sólida dos princípios e conceitos da IA, bem como as tecnologias e ferramentas relacionadas. Estando sempre atualizados sobre os princípios éticos e diretrizes emergentes no campo dos sistemas de informação e suas aplicabilidades. Os profissionais deverão tornar-se cada vez mais sensíveis às diferentes culturas, compreendendo os processos de construção e ressignificação das identidades e perspectivas representadas por seu público e acervo, promovendo diversidade e inclusão de modo a garantir que as decisões tomadas pelas IAs levem em conta representatividade e equidade. Profissionais com pensamento crítico para identificar e validar possíveis vieses nos algoritmos e sistemas. A tomada de decisão desses profissionais deve sempre comunicar os objetivos de modo transparente e responsável, abertos a prestação de contas, promovendo a educação e o engajamento do público sobre o papel da IA nos museus. Compartilhando informações e recursos para que o público possa entender e participar ativamente das discussões sobre a aplicação da IA na sua experiência e na vida da sociedade. Contudo, a habilidade de dialogar será essencial para os profissionais que busquem adaptar-se efetivamente à incorporação da IA e aproveitar todo o potencial que essa tecnologia oferece seja aprimorando narrativas, gerindo coleções e sistemas, na experiência do visitante ou na preservação do patrimônio cultural.
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