por Fernando Porto Brasileiro (autor convidado)
Eis que surge algumas figuras de fora da capital, personagens, em sua maioria, pobres e de "peles azeitonadas", pessoas esforçadas que tentam o sonho, o salário e a sorte na cidade grande. Novas personagens que assim como o enredo deste ensaio, parece estar constantemente em dúvida, em trânsito numa construção e desconstrução permanente.
Muitos chegam de ônibus, ou bem que poderia ser o trem em direção ao centro da metrópole, à Central do Brasil, verdadeiro ritual de entrada da vida estrangeira no Rio. Como Isaías Caminha, lendário personagem do escritor Lima Barreto, essas personagens seguem cartografando diferentes bairros, contextos, sempre em movimento, observando e criticando de maneira bem-humorada a construção e desconstrução desse grande centro urbano e refletindo de maneira espinhosa sobre a vida daqueles órfãos da assistência do governo.
Transitando entre a metrópole e a chamada periferia, acabam por resgatar imagens e narrativas de tempos passados, relacionando suas memórias com as memórias históricas, culturais e sociais da cidade.
Vagando por palcos, galerias e salões iluminados, entre lugares e posições sociais, essas personagens percebem a impenetrabilidade recorrente das instituições e da burocracia, por vezes absurda, direcionada às pessoas com realidades congruentes as suas. Entretanto, vão se esquivando, negociando e decidindo caminhos, fugas e subterfúgios para se livrar, se inserir, falar e ocupar os espaços. Para isso, decidem procurar interlocutores no teatro, na música, nas artes visuais e na literatura para interrogar as realidades que compõem a história brasileira, apontando diagnósticos e utopias possíveis para uma sociedade que ainda omite e vive com as marcas do racismo à flor da pele.
A partir dessas experiências epidérmicas num contexto urbano, essas personagens compõem trabalhos no qual deixam-se afetar por passagens históricas, traçando uma ponte de parentesco entre o país de ontem e o país de hoje. Essas acreditam que relembrar nossa história e de nossos ancestrais, é também imaginá-las e reescrevê-las.
Esta ação de escavar e trazer para o hoje essas imagens e narrativas invisibilidades pelos aterros da memória, expostas enquanto corpos artísticos, performáticos, nos ajudam a entender de maneira crítica o contexto que estamos inseridos. Contexto esse oriundo de uma narrativa pressuposta em ganância e massacre e que continua transformando corpos em mercadoria, moeda e máquina de labuta.
Essas novas personagens produzem instrumentos teóricos e críticos socialmente implicados, reforçando, mais uma vez, um contra-argumento ao mito da miscigenação apaziguadora e apresentando inúmeras formas e situações para a emancipação e libertação intelectual e psicológica do/a cidadão/ã de cor, e do/a trabalhador/a brasileiro\a.
Sabemos que a tal modernidade brasileira não soube lidar com as características de uma nação pautada na escravidão que acabara por ser abolida, mas que ainda vivemos com suas cicatrizes à flor de sua pele. Essas novas personagens estão reescrevendo essa história, logo tratando com cautela e rigorosidade metódica dessas feridas, assim como Lima Barreto, autor citado no começo desse texto, que soube utilizar sua técnica e o seu olhar crítico literário, expondo e comentando pormenores e acontecimentos da sociedade do Rio de Janeiro de sua época, em crônicas, contos e romances que se fazem totalmente atuais. Além de relatar suas experiências enquanto intelectual negro, jornalista de ofício, pessoa crítica dos salões culturais e políticos do final da Monarquia ao começo da República, criticando sobriamente aquela nova ficção que começara a ser criada com tons de modernidade brasileira.
Através dessas experiências e referências, essas novas personagens, reais ou ficcionais, buscam traçar uma relação crítica com a historiografia colonial que violentamente torna os espaços seletivos e inacessíveis. Elas chegam com o desejo e a pretensão de tensionar as ideias de ficção e realidade, arte e vida, personagem e sujeito, deixando-se penetrar pelas narrativas da cidade e assimilando as impressões e vivências em seu corpo. Manifestando em seus trabalhos a intersecção de procedimentos e materialidades gráficas e corporais para falar sobre as possíveis relações entre memória, afeto, corpo, território, etc.
Acreditando que a história está sendo construída e desconstruída o tempo todo por indivíduos e grupos que se adaptam, ou não, a um método imposto. Por isso, essas novas personagens também representam o cidadão e suas experiências, apresentando-lhes novas possibilidades de vida, de sonho e resistência ao enfrentar todas as adversidades de uma estrutura urbana e social pautada no colonialismo.
O escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto
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