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Foto do escritora palavra solta

Eu sou o monstro que vos fala

Relatório para uma academia de psicanalistas

Paul B. Preciado

Tradução: Sara Wagner York/Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior

Revisão de tradução: Carolina Torres




Discurso de um homem trans, um corpo não binário, perante a Escola da Causa freudiana na França

À Judith Butler

Em 17 de novembro de 2019, fui convidado a ir ao Palais des congrès em Paris para falar perante 3.500 psicanalistas reunidos para a jornada internacional da Escola da Causa freudiana sobre o tema “Mulheres em psicanálise”. O discurso causou um terremoto. Quando perguntei se havia um psicanalista gay, trans, ou não binário na sala, o silêncio foi quebrado por algumas risadas. Quando pedi às instituições psicanalíticas que assumissem a responsabilidade pela atual transformação da epistemologia sexual e de gênero, parte do público riu, enquanto outros gritaram ou me pediram para sair da sala. Uma mulher falou alto o suficiente par a eu ouvi-la da minha tribuna: “Não o deixe falar, é Hitler. “Outra parte do público aplaudiu. Os organizadores me lembraram que meu tempo tinha acabado, então tentei me apressar, pulei alguns parágrafos, só consegui ler um quarto do discurso que tinha preparado.


Nos dias que se seguem a este discurso, as associações psicanalíticas são cindidas. A Escola da Causa freudiana se divide, as posições pró ou contrárias se afiam. O discurso, filmado por dezenas de celulares, é postado na internet, fragmentos do texto são transcritos sem pedir meu texto original, depois traduzidos para o espanhol, italiano, inglês e publicados na internet sem qualquer preocupação com a exatidão das palavras ou com a qualidade das traduções. Assim, versões aproximadas do discurso circulam na Argentina, Colômbia, Alemanha, Espanha e França. A fim de ampliar o debate, quero publicar hoje o texto na íntegra, pois gostaria de tê-lo compartilhado com a assembleia de psicanalistas.

*.*.*

Queridas senhoras e senhores da Escola de Psicanalistas da França, senhoras e senhores da Escola da Causa freudiana, e não sei se vale a pena saudar também todos aqueles que não são senhoras nem senhores, porque duvido que haja alguém entre vocês que tenha renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como um psicanalista de pleno direito, depois de ter passado com sucesso pelo processo que vocês chamam “o passe”, que permite que vocês se tornem analistas. Estou falando de um psicanalista trans, ou não binário, admitido entre vocês como um especialista. Se ele existe, permita-me estender minhas mais calorosas saudações a este querido mutante agora mesmo.


Tenho a honra de comparecer perante a Academia para lhes dar um relatório sobre minha vida como homem transexual.


Não sei se poderia fornecer-lhes dados que vocês, acadêmicos e psicanalistas, não conheciam em primeira mão, já que vivem, como eu, em um regime de diferença sexual. Portanto, quase tudo que eu posso dizer, vocês podem ver por si mesmos de ambos os lados da linha de gênero. Embora vocês provavelmente se considerem homens ou mulheres naturais e tal suposição os tenha impedido de observar, a uma distância saudável, a máquina política em que estão inseridos. Vocês me perdoarão se, na história que estou prestes a contar, eu não tomar por garantida a existência natural da masculinidade e da feminilidade. Fique tranquilo, vocês não precisam abdicar de suas crenças – porque elas são crenças – para me ouvir. Considere o que estou dizendo e depois volte para a sua vida “naturalizada”, se vocês puderem.


Para me apresentar , permita-me, já que vocês são 3.500 psicanalistas e eu me sinto um pouco solitário deste lado do palco, correr e subir nos ombros do mestre de todas as metamorfoses, o melhor analista dos excessos que se escondem atrás da fachada da razão científica e da loucura que leva o nome comum de saúde mental: Franz Kafka.


Em 1917, Franz Kafka escreveu Ein Bericht für eine Akademie, Um relatório para uma academia. O narrador do texto é um macaco que, após aprender a linguagem dos humanos, se apresenta diante de uma academia das mais altas autoridades científicas para lhes explicar o que a evolução humana significou para ele. O macaco, que diz se chamar Pedro Vermelho, conta como foi capturado numa expedição de caça organizada pelo circo de Hagenbeck, depois transportado para a Europa num barco, levado para um circo de animais, e como depois conseguiu se tornar um homem. Pedro Vermelho explica que para dominar a linguagem dos humanos e entrar na sociedade da Europa de seu tempo, ele teve que esquecer sua vida de macaco. E como, para suportar esse esquecimento e a violência da sociedade humana, ele se tornou alcoólatra. Mas o mais interessante do monólogo de Pedro Vermelho é que Kafka não apresenta seu processo de humanização como uma história de emancipação ou libertação da animalidade, mas sim como uma crítica ao humanismo colonial europeu e suas taxonomias antropológicas. Uma vez capturado, o macaco diz que não teve escolha: se não queria morrer trancado em uma jaula, tinha que se mover para a “jaula” da subjetividade humana.

Enquanto o macaco Pedro Vermelho falava diante dos cientistas, dirijo-me hoje a vocês, acadêmicos da psicanálise, da minha “jaula” de um homem trans. Eu, um corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como “transexual”, caracterizado na maioria de seus diagnósticos psicanalíticos como sujeito de uma “metamorfose impossível”, situando-me, segundo a maioria de suas teorias, além da neurose, à beira ou mesmo na psicose, incapaz, segundo vocês, de resolver corretamente um complexo edipiano ou tendo sucumbido à inveja do pênis. Bem, é a partir dessa posição de doente mental da qual vocês me classificam, embora eu me dirija a vocês como o símio-humano de uma nova era. Eu sou o monstro que vos fala. O monstro que vocês construíram com seus discursos e suas práticas clínicas. Eu sou o monstro que se levanta do divã e fala, não como paciente, mas como cidadão, como seu monstruoso igual.


Eu, como um corpo trans, como um corpo não binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento sobre mim mesmo, aprendi, como Pedro Vermelho, a língua de Freud e Lacan, a língua do patriarcado colonial, a sua língua, e estou aqui para falar com vocês.

Vocês podem se surpreender que eu esteja usando um conto kafkiano para fazer isso, mas esse colóquio me parece mais próximo do época do autor do que da nossa. Vocês estão organizando um encontro para falar sobre “mulheres em psicanálise” em 2019, como se ainda estivéssemos em 1917, como se esse tipo particular de animal que vocês de modo condescendente e naturalizante chamam de “mulher” ainda não tivesse ganho pleno reconhecimento como sujeito político, como se fosse um apêndice ou uma nota de rodapé, uma criatura estranha e exótica, sobre a qual vocês têm que pensar de vez em quando, em um colóquio ou em uma mesa redonda. Ao contrário, teria sido mais apropriado organizar um encontro sobre “os homens brancos heterossexuais e burgueses em psicanálise”, pois a maioria dos textos e práticas psicanalíticas giram em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal. Um animal necropolítico[1] que vocês tendem a confundir com o “humano universal” e que permanece, pelo menos até agora, tema de enunciação central nos discursos e instituições psicanalíticas da modernidade colonial.

Além disso, não tenho muito a dizer sobre “mulheres em psicanálise”, exceto que eu sou, como o Pedro Vermelho, um desertor. Eu já fui “uma mulher em psicanálise”. Eu fui designado para o sexo feminino, e como o macaco mutante, saí daquela “jaula” estreita, certamente para entrar em outra jaula, mas pelo menos desta vez por minha própria iniciativa.


Estou falando com vocês hoje a partir desta jaula escolhida e redesenhada de o “homem trans”, o “corpo de gênero não binário”. Alguns dirão que ainda é uma jaula política: em todo caso é melhor que a jaula “homens e mulheres” porque tem o mérito de reconhecer seu status de gaiola.


Já se passaram mais de seis anos desde que desisti do status legal e político de mulher. Pode ser um período curto de tempo, quando se considera que situado no conforto ensurdecedor da identidade normativa, mas é um tempo infinitamente longo quando tudo o que foi aprendido na infância deve ser desaprendido. Quando novas fronteiras administrativas e políticas, barreiras invisíveis mas efetivas se erguem diante de você e o dia-a-dia se torna uma corrida de obstáculos. Seis anos de vida adulta de uma pessoa trans assumem então a qualidade que têm para o bebê nos primeiros meses de vida, quando as cores aparecem diante dos olhos e as formas assumem um volume que as mãos podem agarrar pela primeira vez, quando a garganta, antes capaz apenas de gritos guturais, e os lábios, antes voltados apenas para a amamentação, articulam uma palavra pela primeira vez. Evoco o prazer de aprender na infância, pois um prazer semelhante surge da apropriação de uma nova voz e de um novo nome, da exploração do mundo além da jaula da masculinidade e da feminilidade que acompanha o processo de transição. Esse tempo cronologicamente curto torna-se muito longo quando se viaja pelo mundo, quando se encontra na vanguarda da mídia como trending topic “trans”; e quando se está realmente sozinho quando se tem que ir ao psiquiatra, à polícia de fronteira, ao consultório médico ou ao juiz.


Em resposta ao pedido de vocês por mais informações sobre a minha “transição”, pedido ao qual cedo com alegria, embora ainda com alguma reserva – explicarei nestes parágrafos a diretriz pela qual um indivíduo que viveu como mulher até os 38 anos de idade, tendo primeiro se definido como uma pessoa de gênero não binário, depois se incorporou ao mundo dos homens sem se assentar completamente nesse gênero – porque para ser reconhecido como um verdadeiro homem, eu teria que ficar calado e me misturar ao magma naturalizado da masculinidade, sem nunca revelar minha história dissidente ou meu passado político. Acrescente-se que eu não seria capaz de lhes dizer as banalidades que se seguirão se eu não estivesse totalmente seguro de mim mesmo, se minha posição trans não tivesse já sido afirmada inquestionavelmente em todos os grandes espetáculos digitais do mundo civilizado. Desde 16 de novembro de 2016, sou portador de passaporte com nome e sexo masculino, portanto não há mais obstáculos administrativos à minha liberdade de movimento ou à minha capacidade de falar.


Recebi o gênero feminino ao nascer, numa cidade católica da Espanha que ainda estava sob o domínio de Franco. A sorte fora lançada. As garotas não tinham permissão para fazer a maioria das coisas que os garotos faziam. Esperava-se que eu fizesse um trabalho de gênero eficaz e silencioso e de reprodução sexual. Era esperado que eu fosse uma boa namorada heterossexual, uma boa esposa, uma boa mãe, uma mulher quieta. Cresci ouvindo as histórias secretas sussurrantes de jovens garotas que foram estupradas, jovens mulheres que viajaram para Londres para fazer abortos, eternas amigas solteiras que viviam juntas sem nunca afirmar sua sexualidade em público – “sapatão”, como meu pai as chamava desdenhosamente. Eu fiquei preso. Se houvessem me pregado ao chão, isso não teria diminuído meu espaço de ação. Por que as coisas eram assim? O que havia no meu corpo infantil que previa a minha vida inteira? Não importa o quanto nos coçamos até o ponto de sangue, não vamos encontrar uma explicação. Não importa quantas vezes batamos a cabeça contra as barras do cárcere do gênero até que elas se rompam, mas não vislumbraremos a razão disso.


Também me era impossível explicar o paradoxo que exigia que as mulheres, subjugadas, estupradas, assassinadas, amassem e dedicassem suas vidas aos seus opressores, homens heterossexuais. Eu não via saída, mas tinha que encontrar uma: sentia que, ao ser esmagado entre as duas paredes da masculinidade e da feminilidade, acabaria inevitavelmente morrendo. Eu era uma criança calma que ficava em seu quarto, não fazia barulho, meus pais concluíram que eu seria um corpo particularmente dócil e receptivo a uma boa educação.

Mas resisti a essa domesticação, sobrevivi ao processo sistemático de aniquilação do minha força vital que se organizou ao meu redor durante toda a minha infância e adolescência.


Não devo essa força de sobrevivência à psicanálise ou à psicologia, mas, ao contrário, aos livros feministas, punks, antirracistas e lésbicos. Eu tinha pouca disposição para a socialização, e os livros eram para mim autênticos guias no deserto do fanatismo da diferença sexual. Livros que – como no século XVI as obras de Giordano Bruno ou Galileu puseram fim ao geocentrismo – haviam sido escritos para pôr fim à convicção psicanalítica de que desafiar o binarismo equivalia a entrar no reino da psicose. Lembro-me da primeira vez que encontrei, numa livraria em Madrid, uma tradução para o espanhol do O corpo lésbico por Monique Wittig, em uma edição de 1977 da Pre-Textos Editorial. Eu me lembro da capa rosa e das páginas amareladas prematuramente. Como se o título em si não fosse suficiente, um parágrafo do livro foi reproduzido na capa: “o corpo lésbico a cipreste a secreção a saliva o muco o suor as lágrimas a cera dos ouvidos a urina as nádegas os excrementos o sangue a linfa a gelatina a água…” Quando o comprei, tentei esconder o máximo possível a capa do vendedor, porque não suportava a vergonha que representava, em 1987, querer comprar um livro com o título O corpo lésbico. E lembro que o livreiro me olhou com desprezo, mas também com alívio, pois finalmente tinha conseguido se livrar de um livro que, como se fosse um recipiente perfurado do qual escorria um líquido sujo, estava sujando suas prateleiras. Custou-me 280 pesetas. O seu verdadeiro valor para mim é incalculável. Para descobrir os outros livros que me levariam até onde estou hoje, tive que viajar, tive que aprender outras línguas: assim encontrei Sappho e Sócrates de Magnus Hirschfeld, Orlando de Virginia Wolf, Voir une femme [Ver uma mulher] de Annemarie Schwarzenbach, Rapport contre la normalité [Relatório contra a normalidade] da Frente Homossexual pela Ação Revolucionária, Homossexual Desire [Desejo homossexual] de Guy Hocquenghem, The Female Man [O homem feminino] de Joanna Russ, Alchemy of the Body [Alquimia do corpo] de Loren Cameron, Dans ma chambre [Em Meu Quarto] de Guillaume Dustan, as revistas de Lou Sullivan, os romances de Kathy Acker, a releitura feminista da história da ciência por Londa Schiebinger, Donna Haraway e Anne Fausto-Sterling, os textos teóricos de Gayle Rubin, Susan Sontag, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Eve K. Sedgwick, Jack Halberstam, Sandy Stone e Karen Barad. Através de toda essa leitura, aprendi a ver a beleza além da lei do gênero. Peguei aqueles livros e, como um fugitivo, corri como se meus calcanhares estivessem em chamas, e continuo correndo, ainda hoje, para escapar da escravidão do regime binário da diferença sexual. Foi graças a esses livros heréticos que sobrevivi e, mais importante, que pude imaginar uma saída.


Pois bem, como no circo do regime binário heteropatriarcal, as mulheres desempenham alternadamente o papel da bela e da vítima, e como eu também não era e não me sentia capaz de ser, decidi deixar de ser mulher. Por que o abandono da feminilidade não poderia se tornar uma estratégia fundamental da feminismo? Foi uma combinação perfeita de ideias, clara e maravilhosa, que deve ter nascido em algum lugar do meu ventre, já que se diz das mulheres que a única parte criativa nelas é o ventre. Do meu útero rebelde e não reprodutivo devem ter surgido todas as outras estratégias: a raiva que me fez desconfiar da norma, o gosto pela desobediência… Assim como as crianças repetem constantemente gestos que lhes dão prazer e lhes permitem aprender, eu repito gestos que violam a norma para encontrar uma saída.


Mas eu não tinha desejo de me tornar um homem como os outros homens. A violência e a arrogância política deles não me seduziram. Eu não tinha o menor desejo de me tornar o que as crianças da burguesia branca chamavam de normal ou saudável. Eu só queria uma saída: qualquer saída. Para avançar, para escapar dessa paródia de diferença sexual, para não ser parado, mãos para cima, empurrado até os limites dessa taxonomia. Então comecei a me injetar de testosterona, rodeado por um grupo de amigos que também estavam à procura de uma saída. É assim que essa coisa que vocês chamam de “a condição feminina” escapou de mim em um ritmo louco, desfiladeiro abaixo, me levando mais longe do que eu jamais poderia imaginar. Novamente, eu estava procurando por uma saída.

Temo que haja um mal-entendido do que eu quero dizer com o termo “saída”. Eu uso a palavra no seu sentido mais concreto e comum. Evito cuidadosamente a palavra liberdade, prefiro falar em encontrar uma saída para o regime da diferença sexual, o que não significa tornar-se livre imediatamente. No que me diz respeito, não experimentei a liberdade quando era criança na Espanha de Franco, nem mais tarde quando era lésbica em Nova York, e nem agora que sou, como dizem, um homem trans.


Nem então, nem agora, eu pedi para que me “dessem” a liberdade. Os poderosos continuam prometendo liberdade, mas como eles poderiam dar aos subordinados algo que eles mesmos não conhecem? Paradoxo: aquele que amarra é tão preso quanto aquele cujos movimentos são dificultados pelas cordas atadas. Isso também vale para vocês, honrados psicanalistas, grandes especialistas na desvinculação e, sobretudo, na reestilização do inconsciente, grandes promotores das promessas de saúde e liberdade. Ninguém pode te dar o que não tem e nunca conheceu. Além disso, nós nos enganamos entusiasticamente entre “homens “ e “mulheres” no contexto do ritual de “libertação” sexual, a liberdade é um dos valores mais prontamente promovidos – e a correspondente pretensão é o mais comum no campo do gênero e da sexualidade. Atualmente, o feminismo reformista está na moda, por isso cada vez mais homens e principalmente mulheres não hesitam em se afirmar como feministas, não sem insistir no fato, essencial para eles, de que as mulheres devem permanecer mulheres e os homens devem permanecer homens. Mas de que natureza eles estão falando? Da mesma forma, quando um “homem” assume uma pequena parte do trabalho doméstico, fala-se e saúda-se um passo em direção à igualdade de gênero e à libertação da mulher. Esses atos de libertação me fazem rir tanto que meu peito vibra como um tambor sobre o qual uma centopeia dançaria. O gênero e a liberdade sexual não podem de forma alguma ser uma distribuição mais justa da violência, nem uma aceitação mais pop da opressão. A liberdade é um túnel que se cavou com as mãos. A liberdade é uma saída. A liberdade – como aquele novo nome que vocês me chamam agora, ou aquela cara vagamente peluda que vocês veem diante de vocês – é feita.


E minha rota de fuga era, entre outras coisas, a testosterona. Neste processo, o hormônio não é de forma alguma um fim em si mesmo: ele é um aliado na tarefa de inventar um outro lugar. Assim, abandonei gradualmente o quadro da diferença sexual. O artista Del LaGrace Volcano diz que ser trans é ser intersexual por design. E foi exatamente isso que aconteceu. Como a testosterona trabalhava no meu rosto e corpo, minha voz e músculos, tornou-se difícil manter minha identidade administrativa como mulher. Aqui começaram os problemas de atravessar fronteiras. Vivemos imersos na rede política da diferença sexual, e não me refiro exclusivamente a questões administrativas, mas a toda uma série de poderes microscópicos que operam em nosso corpo e moldam nosso comportamento. Quando entendi que sair do regime da diferença sexual significava deixar a esfera do humano e entrar num espaço subordinado de violência e controle, fiz – como Galileu fez no seu tempo, quando abjurou suas hipóteses heliocêntricas – tudo o que era necessário para poder continuar vivendo o melhor possível e exigi um lugar dentro do regime do tipo binário.


Atribuído ao gênero feminino no meu nascimento, e vivendo como uma mulher supostamente livre, comecei a cavar um túnel, aceitei o jugo de me identificar como transexual e, portanto, aceitei que minha condição, meu corpo, minha psique fossem considerados, de acordo com o conhecimento que vocês professam e defendem, como patológicos. Deixe-me dizer a vocês, entretanto, que encontrei nesta condição de aparente subjugação mais liberdade do que tinha como mulher supostamente livre na sociedade tecnopatriarcal do início do século XXI, se por liberdade queremos dizer sair, ver um horizonte, construir um projeto, ter a possibilidade de experimentar, nem que seja por breves momentos, a comunidade radical de toda vida, toda energia, toda matéria, além das taxonomias hierárquicas que a história humana inventou. Se o regime da diferença sexual pode ser representado como uma rede semiotécnica e cognitiva que limita nossa percepção, nossa forma de sentir e amar, o caminho da transexualidade, por mais tortuoso e desigual que possa parecer, tem me permitido experimentar a vida além desses limites.


E por mais paradoxal que possa parecer, o túnel para a saída estava, no meu caso, passando por um rigoroso e acadêmico aprendizado das próprias linguagens com as quais meu corpo e minha subjetividade haviam sido acorrentados. Da mesma forma que o professor da La Casa de papel estudou a arquitetura invisível de um banco para elaborar uma estratégia de entrada, o que era fácil, mas sair com o saque que era complexo – estudei a arquitetura cognitiva da diferença sexual, sabendo muito bem que seria ainda mais difícil para mim do que no caso da La Casa de papel encontrar o saque e fugir com ele. No labirinto infinito das instituições da nossa sociedade encarregadas do gênero e da verdade sexual, eu tinha muitos instrutores: andei por muitas universidades, aprendi a linguagem de filósofos, psicanalistas e sociólogos, médicos e historiadores, arquitetos e biólogos. Ah, quando você tem que aprender, você aprende; quando você tem que encontrar uma saída, você aprende impiedosamente! Nós nos controlamos com chicote, açoitando a nós mesmos na mais leve fraqueza. Que progresso! Tanto progresso em todos os campos do conhecimento, no cérebro estúpido de um simples transexual que se põe em movimento! E como o conhecimento que permite a desconstrução do pensamento dominante entrou nos centros de produção do conhecimento a partir dos anos 70, após a crítica pós-colonial e a emancipação progressiva dos movimentos feministas, homossexuais e operários, pude acessar não só o conhecimento normativo, mas também muitas formas subordinadas de conhecimento que reuniam as experiências de resistência, luta e transformação daqueles que historicamente foram objetos de extermínio, violência e controle. Estudei as tradições do feminismo negro e lésbico, a crítica anticolonial e os movimentos pós-marxistas. Todo esse aprendizado me fez feliz. Com um esforço que parecia excessivo, dado o meu estado supostamente de transtorno mental e disfórico, alcancei a cultura acadêmica de um burguês ocidental. Quando recebi o doutorado na Universidade de Princeton e vi um grupo de instrutores me aplaudindo, percebi que tinha que ter cuidado. Aqui está novamente, a jaula: dourada desta vez, mas tão sólida quanto todas as anteriores. Meu predecessor Pedro Vermelho disse que ficava “de tocaia entre os arbustos” e foi exatamente o que eu fiz, entrei de tocaia nos arbustos da faculdade…


E é, sem dúvida, graças à minha condição de “doutor” que devo ter visto o caminho ficar mais simples, enquanto que este caminho representa, para a maioria dos transexuais, um teste assustador: o de conseguir obter novos documentos de identidade em uma sociedade binária. Após várias visitas com vários psicólogos, que me concederam um certificado de “bom transexual”, permitindo-me obter meus novos documentos de identidade, rapidamente compreendi que à minha frente se abriam duas possibilidades: de um lado, o ritual farmacológico e psiquiátrico da transexualidade domesticada, e com ele o anonimato da masculinidade normal ou, por outro lado, diametralmente oposto, o show da escrita política. Eu não hesitei. A masculinidade normal e naturalizada nada mais era do que uma nova jaula. Quem quer que entre nela nunca mais sairá. E eu escolhi. Eu disse a mim mesmo: fale publicamente. Não fique calado. E assim, eu fiz meu corpo e minha mente, minha monstruosidade, meu desejo e minha transição, um espetáculo público: eu ainda tinha encontrado uma saída. Foi assim que escapei dos meus adestradores médicos que eram muito parecidos com vocês, queridos acadêmicos e psicanalistas. Digamos que eu não tive outra alternativa, sempre assumindo que não se tratava de escolher a liberdade, mas de fazê-la.


Embora eu administrasse testosterona regularmente em mim mesmo, só muito mais tarde fui reconhecido como um homem socialmente. A princípio, embora eu já tivesse um pouco de barba e bigode, os seres binários da sociedade heteropatriarcal insistiam em me chamar de “senhora”, o faziam olhando para mim com desprezo, às vezes a palavra “sapatão” lhes escapava quando eu lhes dava as costas. Até que um dia, depois de me injetar por três meses com 250 miligramas de testosterona por 21 dias ininterruptos, abri a boca e uma voz rouca e áspera saiu da minha garganta. Fui o primeiro a ficar assustado, como se meus órgãos fonadores tivessem sido possuídos por uma entidade estrangeira. Não foi a masculinidade da voz que me aterrorizou, mas a sua diferença em relação à voz pela qual todos me reconheciam até então. Logo eu saí para a rua e comecei a falar com essa voz que era tanto minha quanto de outra pessoa. Minhas primeiras palavras me fizeram entrar na comunidade daqueles que acreditam ser homens e que me acolheram como nunca antes: “Escute-o falar, ele é um homem!” Senti estas palavras como um ferro que, com o fogo, me marcou como um homem finalmente aceito na comunidade masculina. No primeiro dia, o triunfo foi de curta duração, pois logo em seguida minha voz quebrou e me falhou novamente. Pouco a pouco, essa voz estrangeira se instalou em mim. É com esta voz, fabricada, mas orgânica, estranha, mas inteiramente minha, que hoje me dirijo a vocês, queridos membros da Escola.


Quando comecei esse processo de transição, levei algum tempo para entender os códigos da masculinidade dominante. E, acredite ou não, nada foi tão difícil quanto me acostumar ao fedor e à sujeira do banheiro masculino. Fui atormentado pelo cheiro, pelos jatos de urina espalhados sobre e ao redor do vaso sanitário e, apesar das minhas boas intenções, levei semanas para superar essa repulsa. Até que percebi que essa sujeira e fedor era uma forma de relacionamento estritamente homossocial: os homens tinham criado um círculo vicioso para expulsar as mulheres. Dentro deste círculo, em segredo, estavam livres para se olharem, livres para se tocarem, livres para chafurdarem em seus próprios fluidos, fora de qualquer representação heterossexual. Enquanto as mulheres vão ao banheiro para refazer sua máscara de feminilidade, os homens vão lá para esquecer sua heterossexualidade por um momento e afirmar um prazer oculto de estarem sozinhos, sem aqueles estranhos alter egos, que são as mulheres com as quais eles devem estar socialmente acompanhados para exercer uma função reprodutiva e heteroconsensual. Através dessa experiência e de outras, ainda mais fantásticas, que não tenho tempo para listar aqui, as coisas começaram a parecer mais ridículas, mas também mais complexas e multifacetadas do que eu havia imaginado quando ainda estava na posição política de uma mulher. Por trás das máscaras de feminilidade e masculinidade dominantes, por trás das máscaras de heterossexualidade normativa, existem, de fato, múltiplas formas de resistência e desvio.


A primeira coisa que aprendi como transgênero foi andar pela rua sendo olhado por outros como se eu fosse um homem. Aprendi a olhar em frente e para cima em vez de mover os olhos para os lados e para baixo. Aprendi a cruzar os olhos dos outros homens sem olhar para baixo e sem sorrir. Mas o mais importante que entendi foi que, como um dito “homem” e um dito “homem branco” num mundo patriarco-colonial, eu poderia ter o privilégio da universalidade pela primeira vez. Um lugar anônimo e tranquilo em que você pode não ligar para nada. Eu nunca havia me sentido universal. Já fui mulher, já fui lésbica, já fui migrante. Eu tinha conhecido a alteridade, não a universalidade. Se eu desistisse de me afirmar publicamente como “trans” e concordasse em ser reconhecido como homem, poderia abrir mão do peso da identidade de uma vez por todas.


Mas por que vocês estão convencidos, queridos amigos binários, que só os subordinados têm uma identidade? Por que vocês estão convencidos de que somente muçulmanos, judeus, bichas, lésbicas, transexuais, suburbanos, migrantes e negros têm uma identidade?

E vocês, vocês são os psicanalistas normais, hegemônicos, brancos da burguesia, os binários, os patriarcas coloniais, sem identidade? Não há identidade mais esclerótica e rígida do que a sua própria identidade invisível. Que a sua universalidade republicana. Sua identidade leve e anônima é o privilégio da norma sexual, racial e de gênero. Ou todos nós temos uma identidade, ou não há identidade. Todos nós ocupamos um lugar diversificado em uma complexa teia de relações de poder. Ser marcado com uma identidade significa simplesmente não ter o poder de nomear a própria posição de identidade como universal.

Não há universalidade nas narrativas psicanalíticas de que vocês falam. As narrativas mítico-psicológicas retomadas por Freud e elevadas à categoria de ciência por Lacan são apenas histórias locais, histórias do espírito patriarco-colonial europeu, histórias que legitimam a posição ainda soberana do pai branco sobre qualquer outro corpo. A psicanálise é um etnocentrismo que não reconhece sua posição politicamente situada. E não digo isto para me curvar à etnopsiquiatria: suas hipóteses também são patriarcais-coloniais e não diferem das da psicanálise em termos de naturalização da diferença sexual.

Como a psicanálise e a psicologia normativa dão sentido aos processos de subjetivação de acordo com o regime da diferença sexual, gênero binário e heterossexual, qualquer sexualidade não heterossexual, processo de transição de gênero ou identificação de gênero não binário desencadeia uma proliferação de diagnósticos. Uma das estratégias fundamentais desse discurso psicanalítico é detectar no desenvolvimento pré-natal ou infantil do homossexual e do “transexual” ou da pessoa do sexo não binário os sinais da doença, para investigar o trauma que desencadeia a reversão. Alguns de vocês vão dizer que ao me tornar “trans” eu neguei minha verdadeira natureza feminina. Outros dirão que eu já tinha em mim uma natureza masculina (seja descrita em termos genéticos, endocrinológicos ou psicológicos) que procurava expressar. Ainda outros dirão que foram os desejos ocultos de meus pais (sempre imaginados como um casal binário e heterossexual, se possível branco) que eventualmente se materializaram para fazer de mim o que sou agora. Mentira. É uma simplificação grotesca. Eu não sou de todo o que vocês imaginam. Eu nem sei o que eu sou. Não é mais fácil saber o que cada um de nós é do que determinar a posição exata de um elétron em um acelerador de partículas.


Ao contrário das afirmações da psiquiatria e da psicanálise heteropatriarcal e colonial, não houve na minha infância o desejo de ser um “homem” que pudesse legitimar ou justificar a minha transição. Se eu tivesse teimosamente me agarrado ao que vocês chamam de “minhas origens”, se eu tivesse seguido apenas as evocações da minha infância, limitadas pela educação, castigo e medo, teria sido impossível para mim perceber o que eu tenho realizado. Para poder me modificar, instaurei para mim mesmo duas leis mais fortes que todas as regras que a sociedade patriarcal e colonial quis inculcar em mim. A primeira lei que tomei como certa ao longo do meu processo de transição foi abolir o terror de ser anormal que havia sido semeado no meu coração de infância. É esse terror que precisa ser detectado, isolado e extraído da memória. A segunda lei, quase mais difícil de ser seguida, foi para me impedir de qualquer simplificação. Parar de assumir, como vocês, que eu sei o que são um homem e uma mulher, ou um homossexual e um heterossexual. Extraia seus pensamentos dessas prisões e experimente, tente perceber, sentir, nomear, fora da diferença sexual.


Hoje vejo isso claramente: se não tivesse sido indiferente ao mundo ordenado e supostamente feliz da norma, se não tivesse sido expulso da minha própria família, se não tivesse preferido a minha monstruosidade à sua heterossexualidade normal, se não tivesse optado pelo meu desvio sexual em face da sua saúde sexual, eu nunca teria podido escapar… Ou, para ser mais preciso, descolonizar-me, desidentificar-me, desbinarizar-me.

Ao sair da jaula da diferença sexual, experimentei exclusão e rejeição social, mas nada disso teria sido tão desastroso e doloroso quanto a destruição da minha força vital que a aceitação à norma teria me exigido. Na verdade, tudo em que me tornei talvez se deva a essa indiferença à saúde mental que se desenvolveu em mim durante a minha adolescência, apoiada por livros, naquela cidade espanhola onde o meu futuro parecia ter sido escrito pelo próprio Deus e posteriormente traduzido em várias línguas por médicos e psicanalistas.


Minha vida fora do regime da diferença sexual é mais bela do que qualquer coisa que vocês poderiam ter me prometido como recompensa por consentimento à norma. Se eu aceitei o novo jugo do nome masculino no meio deste túnel para a saída, é para mostrar melhor a falácia que subjaz a todas as identificações de gênero. Este jugo também me trouxe certas vantagens que aceito de vez em quando como um copo de água em um deserto político.

Aqueles que ignoram meu status trans me tratam com as prerrogativas e deferências com que os homens brancos são tratados na sociedade patriarcal e colonial. Eu provavelmente poderia aproveitar esses estúpidos favores, mas para fazer isso eu teria que ter (tarefa impossível!) perdido minha memória.


Não só as memórias da minha vida passada como mulher não foram apagadas, como permanecem vivas na minha mente para que, ao contrário do que a medicina ou a psiquiatria acreditam e defendem, eu não tenha deixado completamente de ser Beatriz e me tornado apenas Paulo. Meu corpo vivo, eu não diria meu inconsciente ou minha consciência, mas meu corpo vivo, que abrange tudo em sua constante mutação e múltiplas evoluções, é como uma cidade grega, onde, com diferenças nos níveis de energia, convivem edifícios trans contemporâneos, uma arquitetura pós-moderna lésbica e belas casas Art déco, mas também velhos edifícios de campo, sob cujos fundamentos estão clássicas ruínas animais ou vegetais, fundações minerais e químicas que são voluntariamente invisíveis. Os traços que a vida passada deixou em minha memória tornaram-se cada vez mais complexos e conectados, formando uma massa de forças vivas, de modo que é impossível dizer que há apenas seis anos atrás eu era simplesmente uma mulher e agora me tornei simplesmente um homem. Prefiro minha nova condição de monstro à de homem ou mulher, porque essa condição é como um pé que avança no vazio, apontando o caminho para outro mundo. Não estou falando aqui do corpo vivo como um objeto anatômico, mas como o que eu chamo de “somatheque”, um arquivo político vivo. Da mesma forma que Freud evocou um aparelho psíquico mais amplo que a consciência, é necessário hoje articular uma nova noção do aparelho somático para levar em conta as modalidades históricas e externalizadas do corpo, aquelas que existem mediadas por tecnologias digitais ou farmacológicas, bioquímicas ou protéticas. O somatheque está mudando.

O monstro é aquele que vive em transição. Aquele cuja face, corpo e práticas ainda não podem ser considerados verdadeiros em um regime de conhecimento e poder determinados.

Fazer uma transição de gênero é inventar um arranjo mecânico com o hormônio ou com outro código vivo – o código pode ser uma linguagem, música, uma forma, uma planta, um animal ou outro ser vivo. Fazer uma transição de gênero é estabelecer uma comunicação cruzada com o hormônio, que apaga, ou melhor ainda, eclipsa o que vocês chamam de fenótipo feminino e permite o despertar de outra genealogia. Este despertar é uma revolução. É uma elevação molecular. Um assalto ao poder do ego heteropatriarcal, de identidade e do nome. É um processo de descolonização do corpo.

É essa possível revolução inerente a qualquer processo de transição que aterroriza a psicologia normativa e a psicanálise, que estão ocupadas em neutralizar seu poder. No discurso médico e psicológico dominante, o corpo trans é uma colônia.

O corpo trans é para a heterossexualidade normativa o que Lesbos é para a Europa: uma fronteira cuja extensão e forma só é perpetuada pela violência. Cortar aqui, colar ali, remover esses órgãos, substituí-los por outros.

O corpo trans é a colônia. Todos os dias, em qualquer rua de Tijuana ou Los Angeles, em São Petersburgo ou Goa, em Atenas ou Sevilha, um corpo trans é morto com a mesma impunidade com que se levanta uma nova ocupação em ambos os lados do rio Jordão. A psicologia clínica e a medicina estão empenhadas em uma guerra pela imposição e normatização dos órgãos do corpo trans.

O migrante perdeu o Estado-nação. O refugiado perdeu sua casa. A pessoa trans perde o seu corpo. Todos eles cruzam a fronteira. A fronteira os constitui e os atravessa. Ela os destrói e os derruba.

O corpo trans é para a epistemologia da diferença sexual o que o continente americano foi para o Império Espanhol: um lugar de imensa riqueza e cultura que superou a imaginação do Império. Um lugar de extração e aniquilação da vida. Nossos órgãos trans são, para o sistema heteropatriarcal, as minas de Potosí que alimentam o inconsciente patriarcal-colonial. O dinheiro é separado da terra e o mineiro é enterrado em um poço. Nossos órgãos são a borracha da Amazônia e o ouro das montanhas. Nossos órgãos são o óleo que a máquina sexual normativa precisa para funcionar. Em todos os lugares, o corpo trans é odiado, assim como fantasiado, desejado e consumido.

O corpo trans é um poder da vida, é a inesgotável Amazônia que se espalha através das selvas, resistindo a represas e extrações.

O corpo trans é para a anatomia normativa o que a África foi para a Europa: um território a ser cortado e distribuído para o maior lance. Os seios e a pele para cirurgia estética, a vagina para cirurgia estatal, o pênis para psiquiatria ou para a anamorfose de Lacan. O que o discurso científico e técnico ocidental considera como os órgãos sexuais emblemáticos da masculinidade e da feminilidade, o pênis e a vagina, não é mais real do que Ruanda ou Nigéria, do que Espanha ou Itália. Há uma diferença entre um morro verde que cresce do outro lado do rio e um deserto que se estende do lado do vento. Aí está a paisagem erótica de um corpo. Não há órgãos sexuais, mas sim enclaves coloniais de poder.

O corpo trans é uma colônia de instituições disciplinares, a psicanálise, a mídia, a indústria farmacêutica, o mercado.

O corpo trans é a África, e os seus órgãos, para os seres vivos, expressam-se em línguas que o colonizador desconhece, e têm sonhos que vocês psicanalistas ignoram.

Quando vocês cortarem todas as árvore e perfurarem todas as montanhas, quando vocês analisarem todos os nossos sonhos, vocês não serão capazes de destruir mais nada. A Terra será então um terreno baldio, um enorme corpo transgênero desmembrado e devorado. Os corpos dos colonizadores e os seus corpos, queridos psicanalistas, serão enterrados com os órgãos trans que vocês nos tiraram. Mas os órgãos que não tínhamos nunca poderão ser enterrados. Nossos órgãos utópicos vão viver para sempre. Eles serão os guerreiros das fronteiras.

Em meio a essa guerra patriarco-colonial, a transição de gênero é uma antigenealogia. Trata-se de ativar genes cuja expressão tinha sido cancelada pela presença do estrogênio, agora ligando-os à testosterona, iniciando uma evolução paralela em minha própria vida, liberando a expressão de um fenótipo que de outra forma teria permanecido em silêncio. Para ser trans, você tem que aceitar a irrupção triunfal de outro futuro em si mesmo, em todas as células do seu corpo. Fazer uma transição é entender que os códigos culturais de masculinidade e feminilidade são anedóticos em comparação com a infinita variação das modalidades de existência.

Mimetismo é um mau conceito para se pensar na transição do gênero, pois ainda depende da lógica binária. Ser isto ou aquilo, ser isto e imitar aquilo. Ou você é um homem ou uma mulher. A pessoa trans não imita nada, assim como o crocodilo não imita o tronco, nem o camaleão imita as cores do mundo. Ser trans é deixar de ser um crocodilo e se conectar com o futuro de sua planta, para entender que o arco-íris pode se tornar uma pele.

Quando aceita como um processo de tecno-xamanismo ativado pela presença de linguagem e hormônios, a experiência trans é um turbilhão de energia transformadora que recodifica todos os significantes políticos e culturais sem a possibilidade de uma ruptura limpa (cardeal segundo a caracterização médica) entre ontem e hoje, entre o feminino e o masculino. Eu sou a menina que atravessa uma vila na Cantábria e sobe as cerejeiras coçando as pernas. Eu sou o menino que dorme no estábulo com as vacas. Eu sou a vaca que sobe a montanha e se esconde dos olhos humanos. Eu sou Frankenstein tentando encontrar alguém que o ame andando com uma flor na mão, enquanto todos que passam fogem dele. Eu sou o leitor cujo corpo se torna um livro. Eu sou o adolescente que beija uma garota atrás da porta da igreja. Eu sou a jovem que se disfarça de jesuíta e aprende de cor alguns parágrafos da Ética de Spinoza. Eu sou a lésbica com a cabeça raspada que assiste aos seminários BDSM no Centro Comunitário Lésbico, Gay, Bissexual & Transgênero na 13ª Street em Manhattan. Eu sou a pessoa que se recusa a se identificar como mulher e toma pequenas doses de testosterona todos os dias. Eu sou um Orlando cuja escrita se tornou química. Mas eu gostaria de evitar o conto heroico da minha transição. Não havia nada de heroico nisso. Eu não sou o lobisomem e não tenho a imortalidade de um vampiro. A única coisa que foi heroica foi o desejo de viver, a força com que o desejo de mudança se manifestou e se manifesta ainda hoje através de mim. Longe de serem individuais, as observações sobre meu corpo e minhas vicissitudes pessoais descrevem formas políticas de normatização ou desconstrução de gênero, sexo e sexualidade, e podem, portanto, ser interessantes para a constituição de um conhecimento dissidente diante das linguagens hegemônicas da psicologia, psicanálise e neurociência.

Falo a vocês publicamente de tudo isto porque é crucial que a palavra de subordinados sexuais e de gênero não seja confiscada pelo discurso da diferença sexual. Sei que transformei meu corpo num showroom: mas prefiro fazer da minha vida uma lenda literária, um show biopolítico, do que deixar a psiquiatria, a farmacologia, a psicanálise, a medicina ou a mídia construir uma representação de mim como um homossexual integracionista, binário e educado, como um monstro culto capaz de se expressar na linguagem da norma, senhoras e senhores acadêmicos e psicanalistas.

A medicina e a lei do binarismo de gênero representam o processo da transexualidade como um caminho estreito e perigoso, uma mutação definitiva e irreversível que só pode ser realizada em condições extremas, para que apenas alguns, o menor número possível, possam seguir esse caminho. Eu diria, porém, que esse caminho é mais fácil e mais agradável do que a maioria das experiências propostas pelo discurso dominante como obrigatórias e desejáveis e que têm sido legitimadas por instituições médicas e jurídicas. A transição de gênero é em si um processo mais fácil de executar que ir à escola todos os dias no mesmo horário, durante os longos anos da infância e da adolescência; é mais fácil que um casamento monógamo e fiel; mais fácil que a gravidez e o parto; mais fácil que constituir família; mais fácil que encontrar um emprego satisfatório por tempo indeterminado; mais fácil que ser feliz na sociedade de consumo; mais fácil que envelhecer e ficar trancado em uma casa de repouso. Eu diria até mesmo que, ao contrário do que muitas vezes se diz, o processo de mudança que vem com a transexualidade é uma das coisas mais belas e alegres que eu já fiz na minha vida. Tudo o que é terrível e assustador sobre a transexualidade não está no processo de transição em si, mas na forma como os limites entre os sexos punem e ameaçam matar qualquer um que tente cruzá-los. Não é a transexualidade que é assustadora e perigosa, mas o regime da diferença sexual.

Finalmente, o processo de transição de que estou falando aqui não é de forma alguma irreversível. Pelo contrário, levaria apenas alguns meses sem a administração de testosterona e a decisão consciente de me “reidentificar” como mulher, para poder passar novamente para um corpo feminino habitando o espaço social. A suposta unidirecionalidade dessa jornada é uma das mentiras normativas da história psiquiátrica e psicanalítica, uma das consequências errôneas do pensamento binário. Em um processo “trans”, não só não é necessário se tornar um homem, como ainda é bem possível “ser” uma mulher novamente, ou qualquer outra coisa, se for necessário ou desejado.

Dito da maneira mais simples possível: todos vocês aqui, eminentes sábios da Escola da Causa freudiana, podem ser homossexuais ou se tornar “trans”. Qualquer um de vocês, qualquer um que se dignasse mergulhar no caleidoscópio de seu próprio desejo e de seu próprio corpo, em seu reservatório de tensão nervosa, em sua própria memória, poderia encontrar nele uma excitação tônica, uma energia livre que o leva a viver de maneira diferente, a mudar, a ser diferente, a estar, por assim dizer, radicalmente vivo. Sua feminilidade ou sua masculinidade, assumida e defendida, não é menos fabricada do que a minha. Tudo o que vocês teriam que fazer seria rever seu histórico de padronização e submissão aos códigos sociais e políticos de gênero e sexualidade dominante, para que vocês sintam a roda giratória da fabricação ainda girando dentro de vocês e o desejo de sair da repetição, de se desidentificar. Viver além da lei patriarco-colonial, viver fora da lei da diferença sexual, viver fora da violência sexual e de gênero, é um direito que todo corpo vivo, mesmo um de um psicanalista, deve ter.

Mas situar-se e viver fora de um regime epistêmico e político, quando um novo quadro cognitivo, um novo mapa dos vivos, ainda não foi reconhecido coletivamente, é hoje terrivelmente difícil: neste processo de transição, ainda não cheguei onde me propus a ir. Não é fácil inventar uma nova linguagem, inventar todos os termos de uma nova gramática. É uma tarefa enorme e coletiva. Mas mesmo que uma única vida possa parecer insignificante, ninguém ousará dizer que o esforço não valeu a pena.

No entanto, mesmo que eu, o monstro, me dirija a vocês hoje, praticantes e acadêmicos da Escola Francesa de Psicanálise, não é por estar interessado na sua opinião sobre a minha chamada “transexualidade”. A partir da minha própria experiência, vou lhes dizer que a vida é tão bela, talvez até mais bela, e o amor tão intenso, talvez até mais intenso, quando a diferença sexual e as formas de amor heterossexual e homossexual que vocês consideram mais ou menos normal ou patológico são reconhecidas pelo que são: grandes artefatos de ficção que construímos coletivamente e que, se antes eram , quem sabe, necessários para a sobrevivência de um determinado grupo de animais humanos, hoje nada mais são do que pesadas armaduras produzindo nada mais do que morte e opressão. Artefatos inventados e politicamente legitimados, convenções históricas, instituições culturais que tomaram a forma de nossos próprios corpos, a ponto de nos identificarmos com eles. A masculinidade e a feminilidade normativa, a heterossexualidade e a homossexualidade, como imaginado no século XIX, entraram num processo que, se não for um colapso, deve pelo menos ser descrito como desconstrução, seja eufemisticamente ou filosoficamente.

Permita-me simplesmente pedir-lhes que me acompanhem atrás do andaime dessa grande arquitetura política que chamamos de diferença sexual, esse conjunto de normas e relações de poder, que vocês podem pensar como condições indispensáveis para a vida em sociedade, mas cuja manutenção social se tornou insuportável.

Só quero que vocês saibam, quero que todos saibam, através da minha experiência, através do conhecimento que os subordinados sexuais e de gênero produzem, mas também através dos debates que sacodem as práticas médicas e científicas contemporâneas, do que se trata a diferença sexual. Assim esclarecidos, vocês decidirão por si mesmos.

E para que vocês possam conhecer e decidir, se me permitem, com a liberdade incomum que vem do fato de me dirigir a vocês de uma posição discursiva tão inesperada quanto impossível, a do monstro disfórico de gênero que se dirige à Academia de Psicanalistas, gostaria de lhes transmitir hoje pelo menos três ideias, pois dediquei toda minha vida ao estudo dos diferentes tipos de jaulas sexuais e de gênero em que os humanos se trancam.

Gostaria de começar por dizer que o regime de diferença sexual com o qual a psicanálise trabalha não é uma natureza nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo, e como tal é histórico e mutável.

Em segundo lugar, gostaria de informá-los, caso não tenham compreendido, que esta epistemologia binária e hierárquica está em crise desde os anos 40, não só pela contestação exercida pelos movimentos políticos das minorias dissidentes, mas também pelo surgimento de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos que tornam a atribuição binária do sexo, no mínimo, conflituosa, se não impossível.

Em terceiro lugar, gostaria de dizer que, abalada por profundas mudanças, a epistemologia da diferença sexual está mudando e dará lugar, provavelmente nos próximos dez ou vinte anos, a uma nova epistemologia. Movimentos transfeministas, queer e antirracistas, mas também as novas práticas de parentesco, relações amorosas, identificações de gênero, desejo, sexualidade, nomeação são apenas indicações dessa mutação e experimentos na fabricação coletiva de outra epistemologia do corpo humano vivo.

Diante desta contínua transformação epistemológica, vocês terão que decidir, senhoras e senhores psicanalistas da França, o que vão fazer, onde vão se colocar, em que “jaula” querem ser trancados, como vão jogar suas cartas discursivas e clínicas em um processo tão importante quanto este.

Peço mais alguns minutos de sua atenção, se vocês puderem ouvir um corpo não binário e dar-lhes um potencial de razão e de verdade.

Nota

[1] Inventado pelo teórico do pós-colonialismo e historiador camaronês Achille Mbembe, baseado na noção de “tanatopolítica” de Foucault, este termo designa uma forma de soberania que reside no poder de decidir o que pode viver e o que deve morrer. A necropolítica é o governo das populações através das técnicas da violência e da morte.


1.

Em primeiro lugar, o regime de diferença sexual que vocês consideram universal e quase-metafísico, no qual toda teoria psicanalítica é baseada e articulada, não é uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. É apenas uma epistemologia dos vivos, uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva das energias reprodutivas. Uma epistemologia histórica que se constrói em relação a uma taxonomia racial na época do desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na segunda metade do século XIX. Esta epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o patriarcado heterocolonial.

Quando falo do regime da diferença sexual como epistemologia, refiro-me a um sistema histórico de representações, a um conjunto de discursos culturais, instituições, convenções, práticas e acordos (simbólicos, religiosos, científicos, técnicos, comerciais ou comunicativos) que permitem a uma sociedade decidir o que é verdadeiro e distingui-lo do que é falso. Para explicar o funcionamento dos regimes epistemológicos, vou me referir aqui aos estudos sobre mudanças de paradigmas científicos realizados pelo historiador da ciência Thomas Kuhn e desde então ampliados por Ian Hacking, Bruno Latour e Donna Haraway.

Um paradigma determina uma ordem do visível e do invisível e, portanto, traz consigo uma ontologia e uma ordem do político, ou seja, estabelece a diferença entre o que existe ou não existe, social e politicamente, e estabelece uma hierarquia entre os diversos seres. Ele determina uma forma específica de vivenciar a realidade através da linguagem, um conjunto de instituições que regulam os rituais de produção e reprodução social. Bruno Latour nos lembra que um paradigma, apesar dos exemplos emprestados da psicologia da Forma, a Gestalt, não é uma metáfora óptica. Um paradigma não é apenas uma visão de mundo. Não se trata de uma interpretação, muito menos de uma simples representação subjetiva. “É, explica Latour, a prática, o modus operandi que permite o surgimento de novos fatos. É mais como uma estrada que permite acesso a um local experimental, do que um filtro que coloriria os dados para sempre. Um paradigma age mais como a pista de pouso de um aeroporto. Isso torna possível, por assim dizer, ‘a aterrisagem’ de certos fatos. A importância para Kuhn de todos os aspectos sociais, coletivos e institucionais desses paradigmas é melhor compreendida. Nada disso iria enfraquecer, aos seus olhos, a verdade da ciência, sua comensurabilidade, seu acesso à realidade. Pelo contrário, ao insistirmos nos aspectos materiais que permite que aos fatos ‘aterrissarem’, entenderíamos também, segundo ele, por que a ciência avança de forma tão conservadora, lenta e viscosa. Assim como um hidroavião não pode aterrissar em Orly, um quantum[2] não pode ‘pousar’ em Newton.”[3]

Uma epistemologia é um fechamento do nosso sistema cognitivo que não só dá respostas às nossas perguntas, mas também define as próprias perguntas que podemos fazer a nós mesmos com base em uma interpretação prévia dos dados sensoriais. Os paradigmas científicos são compromissos compartilhados por uma comunidade social que, sem ter o caráter de axiomas infalíveis ou plenamente demonstrados, são amplamente aceitos a ponto de se tornarem quase inquestionáveis na medida em que são utilizados para resolver todo tipo de problemas. Paradigmas são “universos do discurso” nos quais existe uma certa coerência, uma certa paz semiótica-técnica, um certo acordo. Mas eles não são mundos de significação imutável. O que é peculiar à epistemologia é precisamente ter flexibilidade suficiente para permitir a resolução de um certo número de problemas. Até que os problemas criados pela epistemologia são, por assim dizer, mais numerosos do que aqueles que ela resolve. De modo que a epistemologia, por definição, conservadora, lenta e viscosa, se torne então recalcitrante, nociva, até mesmo deletéria, até que seja substituída por uma nova epistemologia, um novo dispositivo, capaz de responder às novas perguntas.

Pode-se dizer, portanto, que o regime da diferença sexual é uma epistemologia histórica, um paradigma cultural e científico-técnico, que nem sempre existiu e está sujeita, como qualquer epistemologia, a críticas e mudanças. Historiadores da ciência e da sociedade renascentista de hoje concordam que na Idade Média, e provavelmente até o século XVII, uma epistemologia “monossexual” dominava no Ocidente, onde apenas o corpo masculino e a subjetividade masculina eram reconhecidos como anatomicamente perfeitos. Nos textos hipocráticos e nos de Galeno, nos tratados anatômicos de Vesalius, os corpos das mulheres compartilhavam a mesma anatomia dos homens: apenas a falta de calor interno significava que os órgãos genitais das mulheres permaneciam dentro de seus corpos, enquanto nos homens, o sexo mais quente e perfeito, os órgãos genitais eram externalizados. Falamos de homens e mulheres, mas também de anjos e demônios, monstros e quimeras. Mas nessa epistemologia, homens e anjos tinham mais realidade ontológica e política do que mulheres e quimeras. Antes do século XIX, a “mulher” não existia nem anatomicamente nem politicamente como uma subjetividade soberana. O paradigma do monossexo operava em um “sistema de semelhança” no qual o corpo feminino era representado como uma variação hierarquicamente menor do masculino. O corpo feminino não era reconhecido como uma entidade anatômica, como um sujeito político, tendo uma existência ontológica, autônoma e plena. Antes do século XVIII, a vagina era um pênis invertido, o clitóris e as trompas não existiam e os ovários eram testículos internalizados. Ginecologia era apenas obstetrícia. Não havia mulheres. Havia mães em potencial. Foi a menstruação e a capacidade de gestar que definiram a feminilidade , não a forma dos genitais. A genitalidade como índice anatômico-político da diferença sexual é uma invenção muito mais recente. No regime patriarcal, apenas o corpo masculino e sua sexualidade eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram subordinados, dependentes, uma minoria – não em número, claro, mas no sentido que Deleuze e Guattari dão ao termo, como uma variável de sujeição a uma relação de poder.

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, novas técnicas médicas e visuais deram origem gradualmente a uma “estética da diferença sexual”,[4] que contrasta a anatomia do pênis com a da vagina, os ovários com os testículos, a produção de espermatozoides e a reprodução uterina, os cromossomos X e Y, mas também o trabalho produtivo masculino e domesticidade reprodutiva feminina. Uma nova epistemologia binária baseada num “sistema de oposições” entre os sexos foi estabelecida com os tratados biológicos de Carl von Linné, Georges Cuvier e Georges du Buffon, com as teorias genéticas de Hermann Henking – que “descobriu” e nomeou o “cromossoma X” em 1891 –, com os tratados obstétricos de Alfred Louis Velpeau, Charles Clay, e com a ginecologia colonial de J. Marion Sims.[5]

Diferentes historiadores da ciência têm feito leituras diferentes dos processos de mudança e transição que levaram de um paradigma monossexual a um paradigma de diferença sexual. Para Thomas Laqueur, essa mudança foi brutal, ocorreu no século XVIII e coincidiu com uma série de processos de emancipação política do corpo feminino. Entretanto, segundo a historiadora Helen King, não houve uma mudança drástica de uma epistemologia para outra, mas sim, ao longo da Antiguidade e do Renascimento, o modelo monossexual não conseguiu dominar completamente a epistemologia anatômico-política e coexistiu com momentos de semi-emergência de um modelo de diferença sexual, até esse se tornar predominante no final do século XVIII.[6] Apesar de suas diferenças de metodologia e análise, a maioria dos historiadores concorda que, no final do século XVIII, a invenção da estética anatômica da diferença sexual serviu para sustentar a ontologia política do patriarcado ao estabelecer diferenças “naturais” entre homens e mulheres, numa época em que a universalização de um único corpo humano vivo poderia ter legitimado o acesso das mulheres ao aparelho de governo e à vida política.[7]

É interessante pensar que a psicanálise freudiana, como teoria do aparelho psíquico e como prática clínica, foi inventada justamente no momento em que as noções centrais da epistemologia das diferenças raciais e sexuais se cristalizaram: raças evoluídas e raças primitivas, homem e mulher definidos como anatomicamente diferentes e complementares pelo seu poder reprodutivo, como figuras potencialmente paternais e maternais, respectivamente, na instituição familiar burguesa colonial; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade, respectivamente, entendidas como normal e patológico. A psicanálise, vista do ângulo da história dos corpos abjetos, da história dos monstros e sua relação com a sexualidade normativa, é a ciência do inconsciente patriarco-colonial, a teoria do inconsciente da diferença sexual.

A psicanálise não só funciona nessa epistemologia da diferença sexual, como, ouso dizer, tem sido fundamental na conquista e fabricação da “psique” feminina e masculina, bem como das tipologias heterossexuais e homossexuais que formam um dos grandes eixos do regime patriarco-colonial. A epistemologia da diferença sexual não é externa à psicanálise: ela é a condição interna e imanente de toda a teoria psicanalítica da sexualidade. As noções psicanalíticas de organização da libido, atividade-passividade, inveja peniana, complexo de castração, mulher fálica, amor genital, histeria, masoquismo, bissexualidade, androginia, fase fálica, complexo edipiano, posição edipiana, os estados pré-genitais e genitais, perversão, coito, prazer preliminar, cena original, homossexualidade, heterossexualidade – a lista é quase infinita – não têm significado fora de uma epistemologia da diferença sexual. Com a invenção de novas técnicas secularizadas e higienizadas de acesso ao corpo vivo (isto é, liberado dos rituais do tato e do sangue) àquela parte “invisível” e “intocável” do corpo vivo que a psicanálise chama de “inconsciente”, a “cura pela fala” atinge o que nenhuma outra instituição do regime da diferença sexual pode fazer: elaborar uma linguagem sobre sexualidade, inocular um senso de identidade sexual e gênero normal ou patológico, dar uma explicação patriarcal e colonial aos sonhos, formar pouco a pouco um núcleo de identificação binária baseado na autoficção.

Peço-lhes, por favor, que não tentem negar a cumplicidade da psicanálise com a epistemologia da diferença sexual heteronormativa. Eu lhes ofereço a possibilidade de uma crítica epistemológica de suas teorias psicanalíticas, a oportunidade de uma terapia política de suas próprias práticas institucionais. Mas estes processos não podem ocorrer sem uma análise exaustiva de seus pressupostos. Não os reprimam, neguem, suprimam ou os desloquem.

Não me digam que a diferença sexual não é crucial para explicar a estrutura do aparato psíquico na psicanálise. Todo o edifício freudiano é pensado a partir da posição de masculinidade patriarcal, o corpo masculino heterossexual entendido como um corpo com pênis erétil, penetrante e ejaculador; por isso as “mulheres” da psicanálise, aqueles estranhos animais com (às vezes) útero reprodutivo e clitóris, são sempre e sempre um problema. É por isso que vocês ainda precisam de um dia especial em 2019 para falar sobre “mulheres em psicanálise”.

Não me digam que a instituição psicanalítica não considerou a homossexualidade como um desvio da norma: como explicar que até muito recentemente não havia psicanalistas que se identificassem publicamente como homossexuais? Eu lhes pergunto: quantos de vocês hoje, aqui nesta Escola da Causa freudiana, se definem publicamente como psicanalistas e homossexuais?[8]

Vocês ficam calados? Ninguém diz nada?

O pânico na sala. Terror epistêmico no divã.

Não estou forçando a revelação de posições subjetivas privadas, mas o reconhecimento de uma posição de enunciação política em um regime de poder colonial heteropatriarcal. Ao contrário do que pensa a psicanálise, eu não acredito que a heterossexualidade seja uma prática sexual ou uma identidade sexual, mas, como Monique Wittig, um regime político que reduz todo o corpo humano vivo e sua energia psíquica ao seu potencial reprodutivo, uma posição de poder discursivo e institucional. O psicanalista é epistemologicamente e politicamente um corpo binário e heterossexual… Até que prove o contrário.

Não estou pedindo aos psicanalistas gays que saiam do armário. São os psicanalistas heterossexuais normativos que precisam urgentemente sair do armário da norma.

A psicanálise freudiana começou a funcionar no final da século XIX como tecnologia para a gestão do aparelho psíquico “preso” à epistemologia patriarcal e colonial da diferença sexual. Freud é reconhecido hoje como um dos mais importantes pensadores da modernidade, no mesmo nível de Nietzsche ou Marx. Mas, como as de Nietzsche ou Marx, suas elaborações discursivas devem ser questionadas e criticadas à luz dos novos processos de emancipação política e transformação científico-técnica. Não creio estar revelando um segredo se afirmo que a psicanálise freudiana colocou no centro da narrativa clínica a normatização da feminilidade e da masculinidade heterossexual, assim como o desejo e a autoridade do pai. Há uma necessidade urgente de uma releitura feminista e queer do Complexo de Édipo de Freud. Não posso aqui fazer uma hermenêutica de seus textos,[9] mas posso dizer, muito rapidamente, que ao colocar a culpa em Édipo e ao colocar todo o peso da análise em seu suposto “desejo incestuoso”, Freud e a psicanálise contribuíram para a estabilidade da dominação masculina, tornando a vítima responsável pelo estupro e transformando em lei psíquica os rituais sociais de normatização de gênero, violência sexual e abuso de crianças e mulheres que encontramos na cultura patriarco-colonial.

Na psicanálise freudiana não se tenta superar a epistemologia heteronormativa da diferença sexual, do gênero binário, mas sim inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas para “normalizar” as posições de “homem” e “mulher” e suas identificações sexuais e coloniais dominantes e desviantes. Poder-se-ia dizer que o sujeito patriarco-colonial moderno utiliza grande parte de sua energia psíquica para produzir sua identidade binária normativa: angústia, alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade, repetição… São apenas os custos psicológicos e sociais gerados pelo duplo dispositivo de extração da força de produção e da força de reprodução. A psicanálise não é uma crítica a essa epistemologia, mas a terapia necessária para que o sujeito patriarco-colonial continue funcionando apesar dos enormes custos psicológicos e da violência indescritível desse regime. Diante de uma psicanálise despolitizada vamos precisar de uma clínica radicalmente política que comece com um processo de despatriarcalização e descolonização do corpo e do aparelho psíquico.

Não estou aqui para falar com vocês com animosidade. Eu mesmo fui psicanalisado durante 17 anos por diferentes analistas, freudianos, kleinianos, lacanianos, guattarianos… Tudo o que estou dizendo aqui, não o digo como um “estrangeiro”, mas como um corpo da psicanálise, como um monstro do divã.

Em primeiro lugar, não seria possível para mim qualificar essas múltiplas experiências analíticas com um único adjetivo, seja ele bom ou ruim. O sucesso ou fracasso de minhas análises dependia em grande parte, não da lealdade dos analistas a Freud, Klein ou Lacan, mas, ao contrário, de sua infidelidade ou, dito de outra forma, de sua criatividade, de sua capacidade de sair da “jaula”. Em diferentes sessões, observei como todos os meus analistas tiveram que lutar com e contra o quadro teórico no qual foram treinados para ouvir uma pessoa “trans” não binária sem enfatizar o diagnóstico, a crítica, a reforma ou a cura. Em alguns casos, minha recuperação dependia justamente da minha capacidade de escapar e fugir da norma da psicanálise, como quando saí de uma análise em que o analista tentava por todos os meios me livrar do que ele pensava serem “as múltiplas formas de fetichismo que ameaçavam a minha sexualidade feminina”. O que o analista viu como desvios fetichistas constituiu para mim experiências fundamentais para uma nova epistemologia da vida sexual, além da dicotomia homem-mulher, pênis-vagina, penetrador-penetrado. Em outros casos, pude fazer parte do caminho acompanhado por psicanalistas que eu qualificaria como dissidentes na prática, mas discretos e silenciosos na teoria. Quero pensar que a maioria dos psicanalistas que estão aqui hoje e que estão me ouvindo pertencem a este grupo. Eu estou falando com vocês em primeiro lugar.

Ninguém precisa ser fiel aos erros do passado. Nem vocês, nem ninguém. Eu não denuncio aqui a misoginia de Freud, nem o racismo ou a transfobia de Lacan. O que denuncio é a fidelidade da psicanálise, desenvolvida durante o século XX, à epistemologia da diferença sexual e ao raciocínio colonial dominante no Ocidente. Este não é um problema que possa ser resolvido com boa intenção individual, assim como a boa intenção de Bartolomeu de las Casas não serviu para superar a epistemologia racial e as práticas políticas coloniais de extermínio das populações indígenas do continente americano. Mas vocês têm uma responsabilidade coletiva.

Finalmente, queria dizer que o mal-estar que vocês sentem quando falo, o desejo irreprimível de negar minhas palavras, a urgência de explicar o que digo em relação à minha aparente condição de “disfórico de gênero” já faz parte da crise que a controversa epistemológica, que perpassa a psicanálise contemporânea, está lhes causando. Esta crise é vital, é produtiva.

Notas:

[1] Na física quântica, um “quantum” representa a menor unidade de medida indivisível de um átomo, seja em termos de energia, de massa ou de movimento. Para a física newtoniana os “quanta” não existem.

[2] Bruno Latour, Chroniques d’un amateur de sciences, “Avons-nous besoin des paradigmes ?”, Presses des Mines, Paris, 2006, p. 29-30.

[3] Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud, Harvard University Press, 1992, p. 163.

[4] Em 2013, o coletivo antirracista Black Youth Project 100 protestou contra a estátua de J. Marion Sims na faculdade de medicina da Universidade de Nova York. J. Marion Sims comprava escravizados negros com o intuito de praticar experimentos ginecológicos, notadamente a vivissecção e a esterilização.

[5] Helen King, The One-Sex Body on Trial : The Classical and Early Modern Evidence. The History of Medicine in Context, Farnham Burlington, Ashgate, 2012.

[6] Michelle M. Sauer, Gender in Medieval Culture, Bloomsbury, London, 2015.

[7] O silêncio da sala é interrompido apenas por algumas risadas e vaias.

[8] Você poderá encontrar um análise mais bem detalhada no meu próximo livro Le Parlement des métèques, no prelo.


2.

A epistemologia da diferença sexual, com a qual a psicanálise freudiana trabalhou sem crítica, entrou em crise após a Segunda Guerra Mundial. A politização de subjetividades e de corpos considerados abjetos ou monstruosos nesta epistemologia, a organização de movimentos que lutam pela soberania reprodutiva e política dos corpos das mulheres e pela despatologização da homossexualidade, bem como a invenção de novas técnicas de representação e manipulação das estruturas bioquímicas dos vivos (leitura cromossômica, diagnóstico pré-natal, administração hormonal etc.) levarão a uma situação sem precedentes nos anos de 1940.

O discurso médico e psiquiátrico parece ter dificuldade crescente em lidar com o aparecimento de corpos que não podem ser imediatamente atribuídos a um sexo feminino ou masculino ao nascimento. Desde a década de 1940, com novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas e com a medicalização do parto, cada vez mais bebês, antes chamados de “hermafroditas”, estão sendo diagnosticados. Diante desses recém-nascidos, a comunidade científica médica disse que estava inventando uma nova taxonomia. O psiquiatra infantil John Money, trabalhando na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, sob a supervisão de Lawson Wilkins, fundador da endocrinologia pediátrica, deixa de lado a moderna noção de “sexo” como uma realidade anatômica e inventa a noção de “gênero” para se referir à possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. A noção moderna de transexualidade também aparece entre 1947 e 1960.

Em 1966, o pediatra suíço Andrea Prader inventou e introduziu o “Orchid Scheme” na prática do diagnóstico do gênero, também conhecido como “orquidômetro” ou “rosário endócrino”: uma paleta de 25 bolas de diferentes tamanhos que, segundo Prader, são utilizadas para medir o grau de virilização dos testículos de crianças pré-púberes. Paradoxalmente, a sua crença na “normalidade” do binarismo e sua obsessão com a taxonomia levaram Prader a dar visibilidade a 25 tipos diferentes de morfologia testicular. Seu “orquidômetro” poderia ser a prova da multiplicidade de variações morfológicas nos seres vivos... Mas Prader, incapaz de superar a epistemologia da diferença sexual, considera a maioria dessas diferenças como “patologias” e recomenda toda uma bateria de terapias que permitem a reatribuição sexual. Pela primeira vez, a medicina e a psiquiatria percebem com pavor a existência de uma multiplicidade de corpos e morfologias genitais além do binário. As controvérsias científicas, sociais e políticas multiplicam-se. Mas ao invés de mudar a epistemologia, eles decidem modificar corpos, normalizar sexualidades, retificar identificações.

Gostaria de compartilhar com vocês a hipótese segundo a qual toda psicanálise lacaniana, que nasceu justamente após os anos 40, sua releitura de Freud, seu desvio pela linguística, já é uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Acho que é possível dizer que Lacan tenta, como John Money, desnaturalizar a diferença sexual, mas, como Money, acaba produzindo um metassistema quase mais rígido que as noções modernas de sexo e diferença anatômica. No caso de John Money, este metassistema introduz a gramática do pensamento de gênero como uma construção social e endocrinológica. No caso de Lacan, esse metassistema também não é anatômico, toma a forma do inconsciente estruturado como linguagem, da ordem simbólica e do “real”… Mas, como no caso de John Money e mesmo que não seja reduzido à anatomia, é um sistema de diferenças que não escapa ao binarismo sexual e à genealogia patriarcal da linguagem. Minha hipótese é que Lacan não consegue se livrar do binarismo sexual por causa de sua própria posição dentro do patriarcado heterossexual como um regime político. Sua desnaturalização estava conceitualmente em andamento, mas o próprio Lacan não estava politicamente preparado. E assim, a psicanálise, tanto a freudiana quanto a lacaniana, contribuirá amplamente para a normatização das crianças intersexuais e para a patologização da transexualidade.

Também não acreditem, depois desse desvio de Freud e Lacan, que é fácil para mim me apresentar como “transexual” diante de uma assembleia de psicanalistas. Não mais fácil do que teria sido para Pedro Vermelho, o macaco salvo de um circo e que se torna homem, por mais livre, por mais distante que estejam as correntes, para falar diante de uma assembleia de cientistas, veterinários e treinadores, por mais simpáticos e reformistas que sejam, ainda que houvesse pianos e flores no palco. As práticas de observação, objetivação, punição, exclusão e morte que a psicanálise e a psiquiatria colocam quando trabalham com pessoas que são dissidentes do regime de diferença sexual heteropatriarcal e colonial, com indivíduos assim considerados como “homossexuais”, com homens ou mulheres que foram estuprados, com profissionais do sexo, com transexuais, com pessoas racializadas… São talvez menos espetaculares que os do circo e do zoológico, mas não menos efetivos. Não acho que a comparação seja excessiva, não só porque como homossexuais, transexuais, profissionais do sexo, corpos racializados ou travestis, nós também fomos alterados e animalizados, mas também porque o que a medicina, psiquiatria e psicanálise fizeram com as minorias sexuais nos últimos dois séculos é um processo comparável de extermínio institucional e político.

A maioria daqueles que se recusaram a viver de acordo com as normas da diferença sexual patriarcal foram, por um lado, perseguidos pela polícia e pelo sistema judicial como potenciais criminosos e, por outro, patologizados pelo aparato psicanalítico, presos em prisões psiquiátricas, violados para provar sua verdadeira “feminilidade” ou “masculinidade”, submetidos a tratamentos como lobotomia, terapia hormonal, eletrochoque ou uma suposta “cura analítica”. Comparadas a nós, que somos os monstros da modernidade patriarco-colonial, a cura pela fala e as terapias comportamentais ou farmacológicas não estavam em luta, mas trabalhavam de forma complementar. Um processo de extermínio político das minorias dissidentes do regime da diferença sexual estava em andamento. Muitos dos meus antecessores morreram e ainda hoje estão morrendo assassinados, estuprados, espancados, presos, medicalizados, ou vivem ou estão vivendo sua diferença em segredo. Este é o meu legado e é com a força que retiro de todas as suas vozes silenciadas, embora apenas em meu nome, que eu falo com vocês hoje.

O abuso de terminologia a que a palavra “transexual” dará origem, com o qual alguns de vocês me caracterizam hoje, começou no início dos anos 50 com David Oliver Cauldwell, Harry Benjamin e Robert Stoller, justamente na época em que Lacan estava desenvolvendo suas teorias psicanalíticas, mas o genocídio epistêmico e a perseguição epistêmica e psiquiátrica tinham começado muito antes, no final do século XIX, com a caracterização feita por Carl F. O. Westphal de certos sujeitos “sofrendo” do que ele chamou de “o instinto sexual oposto”. Para Westphal, ainda não havia diferença entre o que hoje chamamos de “homossexualidade” e “transexualidade”, o que importava era a diferença entre o desejo natural e o desejo antinatural. O problema foi a “inversão”, a obstinação em “imitar” as práticas do “outro sexo”. No século XIX, pensava-se que a homossexualidade era o efeito de uma “migração” de uma alma feminina para um corpo masculino, ou vice versa. E a migração é sempre problemática, seja entre corpos e almas, seja entre Estados-nação. Consequentemente, e tomando como modelo a sexualidade reprodutiva heterossexual com penetração e bio-penetração/inseminação bio-vaginal, a psicologia representava os homens homossexuais como homens efeminados da sexualidade anal, passiva ou receptiva, enquanto as lésbicas eram imaginadas como mulheres masculinas de sexualidade fálica ou ativa.

O psicopatologista alemão Richard von Krafft-Ebing categoriza uma esfera de “inversão sexual” na qual aqueles que desejavam viver como eu hoje eram considerados anormais: “hermafroditas psicossexuais” ou “pessoas paranoicas que sofrem de metamorfose sexual”, mesmo antes do termo “transexual” ter sido cunhado. A teoria da homossexualidade como inversão sexual foi substituída no final da década de 40 por Alfred Kinsey, que pela primeira vez definiu a homossexualidade como a relação sexual entre duas pessoas do mesmo sexo.

É quando a representação da homossexualidade e heterossexualidade está mudando que Cauldwell usa o termo “psicopata transexual” para caracterizar “um indivíduo doente que decide viver e se apresentar como um membro do sexo ao qual não pertence”. Embora as primeiras operações de “mudança de sexo” já haviam sido realizadas nos anos 30, Cauldwell, que defendia a “mudança da mente, não do corpo”, se opõe a qualquer transformação corporal. Ao mesmo tempo, o psiquiatra infantil John Money considera os transexuais como “enfermos de identidade de gênero”, pois “manifestam um desejo obstinado e irracional de viver como membros do sexo oposto”.

O abuso terminológico continua: em 1973, Norman Fisk introduziu o termo “disforia de gênero”, que eventualmente será estabelecida como uma caracterização patológica da transexualidade no Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM). A mudança da psiquiatria tradicional para o DSM também marca uma mudança da linguagem da doença mental e da insanidade para a linguagem dos “distúrbios comportamentais”, bem como uma transformação gradual das técnicas externas de sequestro e monitoramento para novas técnicas bioquímicas e farmacológicas para a produção e controle da subjetividade. Ainda obcecados pela gradação entre o normal e o patológico e pela diferença entre a realidade anatômica e a prática do gênero, Harry Benjamin, Robert Stoller e Norman Fisk lançaram as bases das taxonomias absurdas que ainda nos caracterizam: a diferença entre o travestismo, considerado apenas como um desejo de passar para o outro sexo através do vestuário, e a transexualidade “real” como metamorfose do corpo que, para Stoller, envolve uma série de operações hormonais e cirúrgicas. Ainda em 1987, o sexólogo americano Ray Blanchard realiza uma campanha “científica” para registrar no DSM uma tipologia que permite distinguir vários graus de patologia nos “travestis” e nas “mulheres transexuais”. Sua controversa teoria estabeleceu relações entre desempenho de gênero, desejos homossexuais e heterossexuais, e transexualidade. Ainda é usado por muitos terapeutas e é conhecido como o “A taxonomia de Blanchard”.

A ideia de que uma pessoa transexual deve ser heterossexual e a pergunta grotesca e insistente, trans operada? ou trans não operada?, que alguns de vocês devem se perguntar enquanto me escutam, resultado desse quadro psicopatológico.

Deixe-me sanar-lhes a dúvida: fui operado, removi com muito cuidado e durante longas sessões políticas, práticas e teóricas, o aparelho epistêmico que diagnostica meu corpo e minhas práticas como patológicas.

E vocês, queridos psicanalistas, já foram operados?

A crescente politização dos movimentos trans e intersexo desde os anos 90, e ainda mais intensamente na última década, resultou em uma mudança da noção de “disforia de gênero” para “desordem de identidade de gênero”. As lutas pela despatologização continuam, mas o problema aqui não é apenas a despatologização da chamada “identidade trans”, é toda uma epistemologia que precisa ser mudada.

A psicanálise não é, em relação a esta epistemologia, melhor que a pediatria ou a psiquiatria farmacológica. Vocês se opõem à medicalização da neurose e à transformação do paciente em consumidor de drogas psicotrópicas nas novas terapias cognitivo-comportamentais (TCC), mas nunca negaram a si mesmos o direito de participar da normatização da homossexualidade e transexualidade, nem da gerência psicanalítica do gênero e do desvio sexual.

Para Lacan, os transexuais são as vítimas psicóticas de um erro: “eles confundem o órgão com o significante”. É possível se livrar do órgão, mas não é possível se livrar do “significante” da sexuação, da ordem simbólica que divide todos os seres em masculino e feminino, mantém Lacan. Nós transgêneros estamos semiologicamente doentes: não vemos a diferença entre uma castração simbólica e uma castração real, entre uma vagina e um simples buraco, entre um “falo” e qualquer resto, não, de jeito nenhum. Mas será que a medicina faz a diferença entre uma vagina e um simples buraco, entre um “falo” e qualquer resto quando eles atribuem um sexo a um bebê, olhando para uma ultrassonografia ou no nascimento? E se a epistemologia da diferença sexual em si fosse uma patologia do significante?

Em 1989, sua colega psicanalista Catherine Millot publicou, com os parabéns do jornal Le Monde, Horsexe, un essai sur la transsexualité no qual ela considerava que qualquer processo de transição de gênero era uma tentativa desesperada e psicótica de ir além dos limites da realidade e da diferença sexual. Ela descreve o corpo trans como um corpo hediondo e grotesco, uma encarnação ridícula e monstruosa que só uma pessoa mentalmente doente pode preferir ao seu corpo “saudável” e “original”. “O homem que sonha em ser uma mulher transexual deve ser confrontado, diz Millot, com o drama da verdadeira castração.” E a castração de nossas liberdades não cessa. Mais recentemente, a psicanalista Colette Chiland afirmou a impossibilidade das pessoas transexuais superarem a verdade do binarismo sexual, o que as leva, segundo ela, a viver em “condição de fronteira”, a cair em uma patologia próxima ao “delírio narcisista”. Apesar de sua oposição a Lacan, argumentos semelhantes podem ser encontrados no trabalho de Janine Chasseguet-Smirgel, segundo o qual a obsessão das pessoas transexuais em mudar sua aparência corporal decorre da incapacidade de resolver o Complexo de Édipo e da propensão perversa à regressão sexual para um estado pré-genital. Ah… Édipo, sempre Édipo, Édipo tem costas largas…

Para Lacan e seus seguidores, o binarismo sexual é um fato simbólico e uma estética do corpo tão intransitável quanto o Sol girando ao redor da Terra foi para Ptolomeu. É possível se livrar do órgão, mas não é possível, para a psicanálise, se livrar da epistemologia patriarco-colonial da diferença sexual. Para estender o argumento de Bruno Latour sobre a força de um paradigma, pode-se dizer que seria mais difícil para um corpo do tipo não binário existir no divã psicanalítico do que para um hidroavião pousar em Orly ou para um quantum “pousar” em Newton.


3.

Mas, a partir de 1950, com a crescente emancipação das mulheres heterossexuais, a despatologização da homossexualidade, a comercialização da pílula contraceptiva, a politização de posições não binárias de gênero, a epistemologia da diferença sexual entra num processo inescapável de questionamento político. A contestação política é redobrada por uma controvérsia científica gerada por novos “dados” cromossômicos ou bioquímicos resultantes de novas técnicas de leitura dos cromossomos e do genoma ou do diagnóstico endócrino.

Em 1993, um grupo de pacientes criou a Sociedade Intersexo da América do Norte (INSA) para tornar visível sua luta contra a medicalização e modificação cirúrgica de seu corpo sem seu consentimento. No mesmo ano, a bióloga e historiadora da ciência Anne Fausto-Sterling publicou um artigo muito debatido no qual defendeu a transição de um binário para uma epistemologia de pelo menos cinco sexos a fim de respeitar a integridade dos corpos com variações morfológicas e genéticas. Nos anos seguintes, o movimento trans exigiu a despatologização da transexualidade e a liberdade de escolher se um processo de transição de gênero envolveria modificação hormonal e cirúrgica ou apenas uma mudança de nomeação.

Desde de 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS), que não se pode suspeitar decentemente de cumplicidade com hipóteses do feminismo radical ou com a teoria queer, matiza suas posições sobre a existência de uma variação na realidade morfológica, anatômica e cromossômica dos corpos humanos que vai além do binarismo sexual e de gênero.

A OMS, e não uma associação TransGayzistaSapatãoAnarcoFeminista, afirma agora que “o gênero tipicamente descrito como masculino e feminino é uma construção social que varia de acordo com as culturas e épocas”. E ela reconhece que já houve e ainda há culturas (Samoa no Pacífico, o Primeiro Povo da América, o Tailandês tradicional) que utilizam taxonomias sexuais não binárias e de gênero, que são mais fluidas e complexas do que a taxonomia ocidental moderna que vem sendo globalizada desde os anos 70. Ao aceitar a viabilidade não patológica das encarnações corporais e expressões sociais de gênero e sexualidade, a OMS reconhece a dimensão arbitrária e antinatural da taxonomia binária com a qual as instituições sociais e políticas trabalham no Ocidente e abre a porta não só para uma reformulação local de seus termos, mas também para uma revisão mais profunda do paradigma da diferença sexual.

Hoje, sabemos que um bebê, em cada 1.000-1.500 recém-nascidos (ou seis bebês por dia nos Estados Unidos), é identificado como “intersexo”, o que não pode ser reconhecido no gênero binário. Nos últimos vinte anos, crianças que foram operadas ou medicamente tratadas como “intersexo” se organizaram para exigir o fim dos processos de mutilação genital e de realocação forçada. Ao mesmo tempo, cada vez mais pessoas estão começando a se identificar como “não binárias”. Há alguns meses, a eminente filósofa Judith Butler registrou-se no Cartório Civil do estado da Califórnia como pessoa do gênero não binário. Diferentes estados nos Estados Unidos, mas também a Argentina e a Austrália, reconhecem o gênero não binário como uma possibilidade política. A Alemanha acaba de reconhecer um terceiro sexo (O) como uma possível atribuição de gênero.

Ao mesmo tempo, uma nova diferenciação é estabelecida entre as pessoas “cis” (aquelas que se identificam com o sexo que lhes foi designado ao nascer) quanto as pessoas “trans” (aquelas que não se identificam com esta designação e que adotam práticas transitórias, identificando-se como trans ou não binárias).

A transição de gênero e a afirmação de um gênero não binário não só coloca em crise as noções normativas de masculinidade e feminilidade, mas também as categorias de heterossexualidade e homossexualidade com as quais a psicanálise e a psicologia normativas trabalham. Quando o diagnóstico de disforia de gênero é rejeitado, quando se afirma a possibilidade de uma vida social e sexual fora do binário, da diferença sexual, as identificações de homossexualidade e heterossexualidade, de ativos e passivos sexuais, do penetrante e do penetrado, também se tornam obsoletas.

Por outro lado, a definição da heterossexualidade como a única sexualidade reprodutiva normal e as caracterizações patriarcais da paternidade e as caracterizações biopolíticas da maternidade parecem anacrônicas diante de uma multiplicidade de técnicas de manejo reprodutivo e reprodução assistida: pílula contraceptiva, pílula do dia seguinte, paternidade trans, reprodução assistida, maternidade de substituição, externalização do útero etc.

Não sei com que entusiasmo, com que urgência comunicar-lhes que estamos vivendo um momento de importância histórica sem precedentes: a epistemologia da diferença sexual está mudando.

Nos próximos anos, teremos que desenvolver coletivamente uma epistemologia capaz de responder pela multiplicidade radical dos vivos e que não reduza o corpo à sua força reprodutiva heterossexual, que não legitime a violência heteropatriarcal e colonial.

Vocês são livre para acreditar em mim ou não acreditar, mas acredite pelo menos nisto: a vida é mutação e multiplicidade. Vocês devem entender que os futuros monstros também são seus filhos e netos.

Estamos assistindo a um processo de transformação na ordem da anatomia política e sexual comparável ao que levou da epistemologia ptolemaica à heliocêntrica de Copérnico. Ou desde o regime monossexual até a anatomia da diferença sexual entre 1650 e 1870. Ou ao introduzido pela física quântica e a relatividade a respeito da física newtoniana no início do século 20.

Os processos que levam à mudança epistemológica envolvem profundas mudanças tecnológicas, sociais, visuais e sensoriais. Por exemplo, as mudanças que levaram de um regime geocêntrico e da física aristotélica para um regime heliocêntrico e da física newtoniana também envolveram a invenção da prensa de tipos móveis de Gutenberg e da máquina a vapor. A prensa móvel precipitou a transição de uma cultura oral para uma cultura de escrita e leitura, bem como a progressiva secularização dos textos bíblicos, e acelerou os processos de expansão e expropriação colonial da Europa para a América. A difusão da ciência moderna, a institucionalização normatizada da família heterossexual e a extensão de uma economia de mercado global têm sido acompanhadas por uma biopolítica das populações nacionais, com práticas de segmentação de classes, hierarquização sexual, segregação racial e limpeza étnica.

É este regime de capitalismo global integrado, para dizê-lo com Felix Guattari, que estamos abandonando hoje. Se as mudanças econômicas, políticas e tecnológicas que levaram ao regime da diferença sexual e do capitalismo colonial levaram três séculos para acontecer, a velocidade das mudanças técnicas e a urgência das decisões políticas em relação à destruição do ecossistema e a sexta extinção em marcha nos colocam diante de uma modalidade de mudança muito mais rápida, talvez iminente. A internet, a física quântica, a biotecnologia, a robotização do trabalho, a inteligência artificial, a engenharia genética, as novas tecnologias de reprodução assistida e as viagens extraterrestres também estão precipitando mudanças sem precedentes em direção à invenção de modalidades alternativas de existência entre organismo e máquina, vivo e não vivo, humana e não humana, enquanto novas hierarquias no âmbito político estão surgindo e desaparecendo. Uma convulsão comparável àquela que a mecânica quântica e as teorias da relatividade em física produziram no início do século passado está ocorrendo hoje no campo das técnicas de reprodução da vida, bem como da produção coletiva da subjetividade sexual e do gênero.

Diante desta crise epistêmica, os processos de renaturalização política, de regressão discursiva e de retenção cognitiva estão proliferando. Como nos ensinou Kuhn, enquanto um paradigma científico não for substituído por outro, os problemas acumulados não resolvidos não darão, paradoxalmente, origem a um questionamento ou a um processo de crítica lúcida, mas sim a uma “rigidez” e “afirmação hiperbólica” temporárias das suposições teóricas do paradigma em crise. Pode até ser possível explicar o atual processo encenação hiperbólica das ideologias patriarco-coloniais e seus aparatos de poder populista e neonacionalista como um processo de reafirmação do velho paradigma, de negação da crise epistemológica e de resistência à mudança.

Os novos totalitarismos da diferença sexual podem atrasar mas não serão capazes de evitar o colapso epistêmico. Esta mudança de paradigma pode marcar a transição da “diferença sexual” (uma oposição binária, seja ela pensada como dialética ou complementar, como dualidade ou duelo) para um número infinito de diferenças, corpos e desejos não identificados e não identificáveis. Não há aqui nenhuma chamada para neutralizar diferenças, para retornar a um monismo pré-moderno, seja ele feminino, masculino ou neutro, nem a uma sexualidade homogênea e unitária, nem a uma simples inversão de hierarquias. Ao contrário, estamos falando de uma proliferação de práticas e formas de vida, de uma multiplicação de desejos capazes de se desdobrar além do prazer genital.

Quando falo de uma nova epistemologia, não estou me referindo apenas à transformação das práticas técnico-científicas, mas a um processo de ampliação radical do horizonte democrático para reconhecer como sujeito político qualquer corpo vivo sem que a atribuição sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade para este reconhecimento social e político. É a violência epistêmica do paradigma da diferença sexual e do regime patriarco-colonial que está sendo desafiada pelos movimentos feministas, antirracistas, intersexuais, trans e handi-queer exigindo o reconhecimento como corpos vivos de pleno direito, aquelas e aqueles e aquelxs que têm sido rotulados como politicamente subordinados.

Neste contexto de transição epistêmica, honrados membros da Academia Francesa de Psicanálise e da Escola da Causa freudiana, vocês têm uma enorme responsabilidade. Cabe a vocês decidir se querem permanecer do lado dos discursos patriarcais e coloniais e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução heterossexual ou entrar conosco, os mutantes e monstros deste mundo, em um processo de crítica e invenção de uma nova epistemologia que permita a redistribuição da soberania e o reconhecimento de outras formas de subjetividade política.

Vocês não podem mais recorrer sistematicamente aos textos de Freud ou Lacan como se eles tivessem um valor universal não situado historicamente, como se não tivessem sido escritos dentro desta epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e Lacan uma lei é tão absurdo quanto pedir a Galileu que volte aos textos de Ptolomeu, exigir que Einstein renuncie à relatividade e continue a pensar com a física de Newton e Aristóteles.

Hoje, os corpos outrora monstruosos produzidos pelo regime patriarco-colonial da diferença sexual falam e produzem conhecimento sobre si mesmos. Os movimentos queer, transfeministas, #MeToo, Ni una menos, Handi, Black Lives Matter, movimentos indígenas… produzem ações decisivas. Não se pode mais continuar a falar do Complexo de Édipo ou do nome do pai em uma sociedade que pela primeira vez na história reconhece suas funções feminicidas, em que vítimas da violência patriarcal falam para denunciar seus pais, maridos, chefes, namorados; em que as mulheres denunciam a política institucionalizada do estupro, em que milhares de corpos saem às ruas para denunciar os ataques homofóbicos e os assassinatos quase diários de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo. Vocês não podem mais continuar afirmando a universalidade da diferença sexual e a estabilidade das identificações heterossexuais e homossexuais em uma sociedade em que é legal mudar de gênero ou identificar-se como pessoa de gênero não binário, em uma sociedade em que já existem milhares de crianças nascidas em famílias não heterossexuais e não binárias. Continuar a praticar a psicanálise usando a noção de diferença sexual e com instrumentos clínicos como o Complexo de Édipo é hoje tão aberrante como afirmar continuar a navegar pelo universo com um mapa geocêntrico ptolemaico, negando a mudança climática ou afirmando que a Terra é plana.

Não rejeitamos apenas as práticas sexuais e patriarcais de parentesco e socialização heterocêntrica e binária. Rejeitamos sua epistemologia e temos que fazer isso de forma violenta. Nossa posição é de insubordinação epistemológica.

Hoje, para vocês psicanalistas, é mais importante ouvir as vozes dos corpos excluídos pelo regime patriarco-colonial do que reler Freud e Lacan. Não buscar mais refúgio com os pais da psicanálise. Sua obrigação política é cuidar das crianças, não legitimar a violência do regime patriarco-colonial. Chegou a hora de levar os divãs para as praças e coletivizar a fala, politizar os corpos, desbinarizar a sexualidade e descolonizar o inconsciente.

Édipo livre, junte-se aos monstros, não esconda a violência patriarcal por trás dos chamados desejos incestuosos das crianças, e coloque no centro de sua prática clínica os corpos e as palavras daqueles, daquelas, daquelxs que sobreviveram ao estupro e à violência patriarcal, daqueles, daquelas, daquelxs que já vivem além da família nuclear patriarcal, além da heterossexualidade e da diferença sexual, daqueles, daquelas, daquelxs que procuram e fabricam uma saída.

Em breve poderemos enfrentar uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e novas tecnologias farmacopornográficas. Já estamos, sem dúvida, diante de uma farmacologização crescente das chamadas “patologias psiquiátricas”, uma comercialização das indústrias de cuidados, uma informatização eletrônica do cérebro, bem como uma robotização semiótica das técnicas de produção da subjetividade via Facebook, Instagram, Tinder etc. Mas os perigos e excessos desta proliferação de novas técnicas de controle e produção de segmentação humana não podem ser uma desculpa para evitar que a psicanálise questione suas próprias categorias.

Meu objetivo não é a derrota da psicanálise e a vitória da neurociência, ainda menos da farmacologia. Minha missão é a vingança do “objeto” psicanalítico e psiquiátrico (em partes iguais) sobre os dispositivos institucionais, clínicos e micropolíticos que mantêm a violência das normas de gênero, sexuais e raciais. Precisamos de uma transição da clínica. Isso só pode ser feito por uma mutação revolucionária da psicanálise e uma superação crítica de seus pressupostos patriarco-coloniais. Uma transição na clínica implica uma mudança de posição: o objeto de estudo torna-se o sujeito e aquele que foi até agora o sujeito concorda em submeter-se a um processo de estudo, questionamento e experimentação. Ele concorda em mudar. A dualidade sujeito/objeto (tanto clínica quanto epistemologicamente) desaparece e em seu lugar surge uma nova relação que, em conjunto, leva à mutação e se torna outra. Será sobre poder e mutação ao invés de poder e conhecimento. Trata-se de aprender juntos para curar nossas feridas, abandonar as técnicas de violência e inventar uma nova política de reprodução da vida em escala planetária.

A psicanálise se depara com uma escolha histórica sem precedentes: ou continua a trabalhar com a velha epistemologia da diferença sexual e legitima de fato o regime patriarco-colonial que a sustenta, tornando-se assim responsável pela violência que produz, ou se abre a um processo de crítica política de seus discursos e práticas.

Esta segunda opção implica iniciar um processo de despatriarquização, desheterossexualização e descolonização da psicanálise, como discurso, como narrativa, como instituição e como prática clínica. A psicanálise deve entrar em retroalimentação crítica com as tradições de resistência política transfeministas se quiser deixar de ser uma tecnologia de normatização heteropatriarcal e de legitimação da violência necropolítica, e tornar-se uma tecnologia de invenção de subjetividades dissidentes diante da norma.

Estou diante de vocês hoje não como um acusador, mas como um alarme para a violência epistemológica da diferença sexual e como um pesquisador de um novo paradigma.

Psicanalistas para a transição epistêmica, juntem-se a nós! Vamos criar uma saída juntos!

Ao contrário do que os mais conservadores de vocês podem imaginar, aqueles que temem que uma psicanálise desprovida da epistemologia da diferença sexual seja desfigurada, eu lhes digo que somente esta transformação profunda pode fazer com que a psicanálise sobreviva.

E lhes digo isto a partir de minha posição de trans, um corpo não binário que teve que se transformar para poder sair de sua velha “jaula” e sobreviver inventando, dia após dia e de forma precária, outras práticas de liberdade. Se eu considerar minha evolução e seu ponto atual, não posso reclamar nem me contentar com ela. Ainda há muito o que fazer.

Desejo de todo o coração uma mutação da psicanálise, a emergência de uma psicanálise mutante, igual à mudança de paradigma que estamos experimentando.

Talvez apenas este processo de transformação, por mais terrível e desmantelamento que lhes pareça, mereça ser chamado de psicanálise novamente hoje.

Gostaria de agradecer à Virgine Despentes pela leitura deste texto e por seu amor incondicional.

*Documento traduzido por uma travesti que tinha muito o que fazer, muita fome de saber e pouco dinheiro pra viver.

Sou Sara Wagner York/Sara Wagner Pimenta Gonçalves Junior, uma travesti que insiste diariamente em acreditar em novos modos de vida para tantas pessoas, cujo o destino é certo e nenhum pouco fácil.

Paul B. Preciado é escritor, filósofo e pensador contemporâneo. Nasceu como Beatriz Preciado em 1970, na Espanha de Franco, e em 2010 iniciou seu processo de transição de gênero. É mestre em filosofia e teoria de gênero pela New School de Nova York e doutor em filosofia e teoria da arquitetura pela Universidade de Princeton. Possui extensa obra que abordam a filosofia de gênero, teoria queer, arquitetura, identidade e pornografia.

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