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Foto do escritora palavra solta

Fome: é possível metaforizá-la?

por Thiago Oliveira Vieira





Um dos desafios em escrever sobre psicanálise é entender quais são as limitações e delimitações desse discurso. Do que se diz quando se diz sobre psicanálise? Nosso espaço de articulação passa por inconsciente, sexualidade, transferência, infantil... Mas ele se finca apenas no que concerne a estes pilares e ao divã? Ou vamos mais, vamos além? Faço essas perguntas porque a clínica as fez na transferência em mim. Ou melhor, esse texto se desdobra de um único atendimento e da relação dele com a cidade.


Eu já me perguntava sobre o lugar da psicanálise no nosso espaço urbano, pois, em sua extensa maioria, este saber ocupa, em distintas cidades, os mesmos lugares geográficos: o centro de grandes cidades. E também falta nos mesmos lugares: periferias e zonas não urbanas. Por isso mesmo, questões que já estão presentes desde que a análise é análise: O que é psicanálise? e Pra quem serve a psicanálise? são questões que me atravessam desde o início deste percurso.


Mas não só no ponto de vista do funcionamento dos sujeitos: quais são os sofrimentos e desejos que esse dispositivo consegue escutar? E sim, do corte social ao qual ele está inserido e/ou reforça. Pois vi diversos estudantes de Universidades Federais e do Prouni que tinham interesses sinceros pela psicanálise, mas que não o levaram adiante baseados em um ponto concêntrico: este saber é acessível a mim e aos meus?


Por ver e lidar com essas indagações e por ter um pé na saúde mental, me pus a escutar em outros lugares, assim como alguns outros. Penso que a importância dessa desterritorialização é a importância dos questionamentos que se abrem. Era terça feira, nove e cinquenta da manhã e chegou um rapaz para ser atendido pela primeira vez.


Ele estava inquieto. Aquilo podia ter diversos motivos. Inclusive o tempo que ele esperou aliado a idade que tinha, por volta de dezoito ou dezenove anos. A princípio, eu não sabia de nada do que se passava. Assim que o chamei, ele veio e disse, de bate pronto, “tô com sede”.


Pouco entendi o que ele falava, mas lhe dei um pouco da água que tinha. Ele sentou, não se acalmou, mas seguiu dizendo: “não sei como vou pagar, não tenho grana”. Assim que ele disse isso, parece que ele conseguiu posicionar algo que o possibilitou falar sobre o real motivo dele estar ali: eu tô com fome.


Dito isso, seguiu um discurso em que situava como estavam os seus dias, a família de onde vinha, onde morava... E voltou ao mesmo ponto: tô com fome. Esta é uma oração possível de ser ouvida cotidianamente nos CAPS, nossas instituições de Saúde Mental. É também muito do que se reverbera nas escolas e nas ruas. Mas a sua aparição durante um atendimento me desconsertou completamente.


Em Geografia da Fome, Josué de Castro retrata as vísceras da construção da fome no Brasil: o dilema brasileiro: pão ou aço. Mas antes mesmo de destrinchar as questões econômicas e sociais da fome, que são apresentadas como um projeto político, ele escreve que dizer sobre a fome é um tabu tal qual é o sexo.


Nele o geográfo diz da importância social de Freud ao operar um desnudamento no tabu sexual ao dize-lo. Mas e a fome? E a análise e a fome? Já sabemos por outras citações que quando falamos de sexo, falamos de Freud, sabemos ouvir isso. Mas e o rapaz que dizia na minha frente, eu soube escutar?


Enquanto eu me punha a ouvi-lo, ele ia e voltava no mesmo ponto: tô com fome – frase que ele repetiu três vezes em um atendimento que durou vinte minutos. Enquanto ele falava, eu me perguntava se aquela fome era fisiológica, igual a sede que estava, ou se essa era uma fala passível de ser aberta: fome do quê?


Há muito tempo estamos orientados sobre o significado de pulsão, de Freud à Lacan não faltam referências que situe o bicho gente para além do instinto “não transamos apenas para reproduzir, nem comemos apenas para nos saciar”. Como seres pulsátils, desejosos e de cultura temos fome de algo, não é só e simplesmente matar a fome.


Mas foi daí que veio o furo, foi daí que veio a falta de furo na minha escuta. Enquanto eu me interrogava e me perguntava sobre a concretude e a metaforização do que ele dizia, não o escutei. Ele falava e eu, com o olhar, procurava alguma comida que eu tivesse por perto para lhe oferecer. Mas mesmo se encontrasse, não sei se o daria, ainda estava tentando entender o que dizia.


Por isso, optei por não interrogá-lo sobre a conotação do seu dizer. Pensei que seria agressivo qualquer pergunta dessa ordem, pelo simples fato de ser e por deixar claro que eu não estava entendendo o que ele demandava. E assim, entre um tropeço e outro. Entre uma titubeada e outra, não o escutei.


Esqueci do básico, esqueci da fome. Intelectualizei o corpo e a intervenção. Mesmo já estando sobre avisado por Jung: “conheça todas as técnicas, domine as teorias, mas esteja em frente de um humano como outro humano, apenas”.


Isto é óbvio, até porque não tem como ser diferente. Mas mesmo assim, quando a fome entrou no setting analítico, entrou a alteridade outra. Esqueci o mais basal.

Seria simples, não precisa nem pensar além, é dividir o pão que está na mochila. É compartilhar o biscoito da lancheira. Essa é a nossa sociabilidade tupiniquin. Mas foi ao me demorar em questões pertinentes, porém inflacionadas que não o ouvi. O gesto e o ato não podem estar excluídos da clínica, ainda mais quando qualquer um sabe que para falar é preciso estar de barriga cheia.


Foram dias e dias pensando sobre as reverberações desse atendimento, quando eu via, algo me voltava. Em supervisão, pensei sobre as questões pessoais em que isso me tocava, mas mesmo assim algo não se encerrava. Era Dilma falando com Mano Brown sobre metade do país estar em insegurança alimentar. Era o número crescente de pessoas em situação de rua. Era a naturalização do dizer na cidade: Fome.


Em a Produção do Espaço Urbano, Marcelo Souza escreve sobre a cidade, o poder e a palavra. Ele se reveste de Foucault e pensa sobre os discursos e práticas imaginárias que estão em jogo quando analisamos os espaços urbanos e rurais. Nesta área da geografia, encontramos uma interface rica ao encontro da psicanálise. É fundamental os analistas serem questionados em suas questões pessoais-geográficas.


A clínica viva é aquela que interroga e é interrogada pela cidade, eis a definição de Christian Dunker para uma boa escuta clínica. Teoria boa é aquela que se faz e se refaz a cada sujeito que se escuta, e não o encaixotamento de quem aparece dentro de um saber já prévio. Por isso, ficou a pergunta: é possível escutar metade da população brasileira se não souber escutar a fome?


Se lavarmos as mãos para esta questão, não estamos compactuando com um corte de classe ao acesso à escuta? Penso que sim. E penso que cada analista pode se interrogar sobre a sua relação com a cidade que ocupa. Pois somos sim indivíduos singulares, mas sempre indivíduos sociais.


E isso ficou mais evidente aos meus ouvidos quando escutei os adolescentes da FNL, Frente Nacional de Luta no campo e na cidade, um trabalho que só tinha sentido e possibilidades quando acontecia em grupos. Nestes encontros, foi possível ver as distâncias e proximidades do dilema de jovens não só do centro e da periferia, mas também em espaços urbanos e rurais.

É possível dizer que sim. É possível dizer que a psicanálise é um dispositivo clínico que pode se adentrar pelas capilaridades das cidades. Mas não se a teoria e o analista forem calvos ou amantes de cabelos grandes só para si, que me desculpem os chistes. Pois sabemos que a psicanálise é debitaria da ciência tanto quanto da arte. E sabemos da real importância da ciência, mas também da relação do saber científico com o capitalismo.


Se demanda ao Outro porque ali se presume um saber, uma possibilidade de satisfação. Toda relação é uma relação de poder, ou mantemos a norma ou a subvertemos. Inclusive no lugar de analista e de quem escuta. Quem escuta não está fora do jogo social, está dentro (claro que de uma outra forma, no que diz respeito ao ofício). Pois no fundo, a fome do analista é que era metafórica: desejo que estudantes de várias classes possam saber que escutar pode ser sim para si, pois é isso o que está em jogo nas formações. E que nunca esqueçamos Freud, Jung, Lacan e as tramas edípicas, pois esse entendimento ainda é atual, em relações monogâmicas ou não. Mas também que nossos olhos se abram para a cidade e para a fome do Outro, sem antes ter que deixa-las de escutar.


Que esse assunto não nos venha só na hora do almoço.

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