A ORDEM
Deveríamos fazer algo que não fosse morrer,
mas muitas vezes nos vem a morte tão calada
que passa um tempo sem sabermos
que estamos habitando nosso próprio cadáver.
Se nos tivessem avisado,
se um gesto pelo menos nos tivesse indicado
a decomposição que nos invadia,
talvez haveríamos lutado contra o lento inimigo.
Mas havia um silêncio como ordem,
um retirar-se para voltar logo,
um fluir de maresia moderada.
Ninguém nos quis dar a má nova,
ninguém nos quis advertir do desastre.
Talvez porque a morte me foi tornando estranha
e as velhas palavras não bastaram
e só foi possível observar, observar como a morte avança.
E agora, do outro lado do silêncio
eu contemplo também essa visão,
esse ver que não pede senão assiste,
esse futuro sem futuro
e me ponho a chorar sobre a vida
dizendo-me: Penélope,
deveríamos fazer algo que não fosse morrer.
EL ORDEN
Deberíamos hacer algo que no fuera morir,
pero a menudo se nos viene la muerte tan callando
que hasta pasado un tiempo no sabemos
que estamos habitando nuestro proprio cadáver.
Si nos hubieran advertido,
si un gesto por lo menos nos hubiera indicado
la descomposición que nos poblaba,
tal vez hubiéramos luchado contra el lento enemigo.
Pero había un silencio como el orden,
un retirarse para volver luego,
un fluir de marea mesurada.
Nadie nos quiso dar la mala nueva,
nadie quiso advertirnos del desastre.
Tal vez porque la muerte me fue tornando extraña
y las viejas palabras no bastaron
y sólo fue posible mirar, mirar cómo la muerte avanza.
Y ahora, del otro lado del silencio
yo contemplo también esa mirada,
ese ver que no pide sino asiste,
ese futuro sin futuro
y me pongo a llorar sobre la vida
diciéndome: Penélope,
deberíamos hacer algo que no fuera morir.
FRANCISCA AGUIRRE (Alicante, 1930 - 2019), poeta e escritora. Seu pai era o pintor Lorenzo Aguirre, encarcerado, condenado e executado pelo regime franquista em 1942. Ela e suas duas irmãs estudaram em diversos colégios de monjas para crianças de presas/os políticas/os. A Guerra Civil e a morte de seu pai marcaram sua vida e a da sua família. Começou a trabalhar aos 15 anos, mas nunca abandonou sua profunda formação autodidata. Nos anos 1940 tornou-se sócia do Ateneo de Madrid e começou a frequentar diferentes encontros literários: por um lado a reunião poética da Aula Pequeña del Ateneo, dirigida pelo poeta José Hierro, e por outro o grupo teatral do Café Gijón, liderado pelo dramaturgo Antonio Buero Vallejo. Foi casada como o poeta e flamencologista Félix Grande (1937-2014) e é mãe da também poeta Guadalupe Grande. Seu primeiro poemário foi Ítaca (Prêmio Leopoldo Panero), publicado quando a autora tinha 42 anos. Por isso, mesmo que a poeta pertença por data de nascimento à geração de 1950 (Jaime Gil de Biedma, José Ángel Valente, Claudio Rodríguez,…), a tardia publicação de seu primeiro poemário supõe que seu nome esteja ausente nas antologias de sua geração.
Publicou uma dezena de poemários e os livros Espejito, espejito (1995, não ficção), e Que planche Rosa Luxemburo (2002, relato). Entre outros, recebeu o Prêmio Nacional de Poesia de 2011 por seu poemário Historia de una anatomía, livro com o qual ganhou o Prêmio Miguel Hernández em 2010. Sua poesia foi traduzida ao inglês, francês, italiano, português e valenciano.
“A Ordem” é uma tradução inédita para o português do livro Ítaca (Cultura Hispânica, Madrid, 1972).
Julia Raiz é escritora, tradutora e pesquisadora dos estudos feministas da tradução. Edita os blogs literários totem & pagu, firrrma de poesia, e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. Em Curitiba faz parte do coletivo de escrita membrana. Seu primeiro livro “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela ContraVento editorial. Lançou o megamini “p/ vc” pela 7Letras em 2019. Mantém o podcast Raiz Lendo Coisas no Spotify e escreve mensalmente pra revista R Nott. Trabalha com oficinas de escrita e tradução.
Comments