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Imaginar e disputar o museu

por Pollyana Quintella


Acervo da Laje, museu comunitário no subúrbio de Salvador


O museu é um dispositivo de construção e desconstrução de sentidos culturais. É o espaço onde diferentes disciplinas negociam entre si, o que nos leva a compreendê-lo como uma arquitetura social em constante mudança. Desde o seu nascimento, o museu já foi depósito e fábrica de fetiches; linha do tempo e cubo branco; igreja e shopping; aparato gentrificador e verniz neoliberal; arquitetura espetacular e história violenta. Nesse entremeio, colaborou para instituir o projeto moderno como origem e meta da história, e foi cúmplice de operações duvidosas, catástrofes ecológicas, clichês e projetos autoritários de nação.

Cientes disso, miramos os museus com uma dose de desconfiança, buscando endereçar perguntas que questionem suas fábulas e ficções. Que ideia de arte consagram? Que narrativas instituem? Que espectadores produzem? Quais são seus espaços de escuta e interlocução? Que porosidade apresentam?


O exercício de suspeita e desnaturalização, porém, também nos permite disputar os usos desse dispositivo, tomando-o como campo de batalha. Daí, surgem perguntas mais propositivas: Pode o museu ser contra-hegemônico? Pode o museu nos ajudar a tornar o planeta mais habitável? Ou ainda, nas palavras da curadora espanhola Chus Martinez, “É possível imaginar um cubo branco incorporando uma floresta tropical?” Num mundo cada vez mais dividido e insustentável, nos cabe reivindicar um museu dedicado a costurar uma outra coletividade, de preferência entre humanos e não humanos.


Não foram poucos os artistas, curadores, historiadores e sonhadores de toda ordem que buscaram imaginar museus possíveis e impossíveis. Em 1978, depois do trágico incêndio que acometeu o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o crítico Mário Pedrosa propôs um novo complexo. Intitulado Museu das Origens, ele abrigaria cinco iniciativas: Museu do Índio, Museu do Inconsciente, Museu de Arte Moderna, Museu do Negro e Museu de Artes Populares. Cada um deles teria autonomia para compor seu acervo e narrativa própria, e um centro de atividades seria responsável por mediar encontros e estabelecer conexões entre as discussões promovidas.


O projeto não foi adiante. Naquela altura, foi pouco compreendido pelos artistas e pelo meio cultural. Além disso, o crítico, já em idade avançada, concentrava seus esforços na política, sobretudo na criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas, apesar do problema das origens referir-se a uma obsessão moderna, a ousadia de Pedrosa seguiu ressoando em nosso imaginário. A partir dele, ficam algumas provocações que podem nos ajudar a seguir projetando um outro espaço possível.


Antes de tudo, creio que o museu pode ser compreendido como um espaço de negociação das diferenças, lugar democrático por excelência. Isso não significa reconhecê-lo como “caldeirão cultural” que disfarça desigualdades sob a ótica da “miscigenação” ou de uma subjetividade global homogênea. Ao contrário, cada parte envolvida deve poder afirmar a sua própria singularidade, levando em conta que sua existência depende de agenciamentos públicos e coletivos, nos quais a relação eu-outro não é estável, mas intercambiável. Se não há consenso que reste, o museu pode ser o lugar de coexistência dos dissensos, afinal.


Indo além, já com os dois pés no século XXI, constatamos cada vez mais que a relação com a diferença não se resolverá enquanto representação (lição fracassada da modernidade), mas enquanto produção de presença. Engajar-se epistemologicamente com outros repertórios culturais demanda assumi-los mais enquanto forma e sistema e menos enquanto tema e assunto. Para tal, o museu pode questionar seu lugar de cânone institucionalizado para afirmar-se como laboratório de experimentação. O que vemos por aí ainda é, em geral, uma instrumentalização da diferença: as pautas minoritárias são incorporadas enquanto discussão, mas a estrutura de funcionamento dos espaços permanece intacta, com cargos de poder inabaláveis, sobretudo brancos e masculinos.


Ir ao museu para lidar com a diferença, eis um bom motivo. Acontece que o museu tende a ser um amaciador das diferenças, porque, em geral, é um museu-empresa; um museu-grife; um museu-espetáculo; um museu-marketeiro; um museu-vitrine; um museu-números; um museu-produto; em suma, museu-neoliberal. O distinto acaba conformado em dispositivos reguladores e, por fim, consumido como mera informação. Ao contrário, o museu poderia performar a elasticidade de um organismo em constante mudança. Não reduzir a diferença, mas fazer do conflito a sua matéria-prima. Uma ágora possível, uma oca, uma praça. Vou ao museu e não sei bem o que encontrarei, talvez sequer saiba o que fazer com aquilo, mas haverá lá a oportunidade de ensaiar. Parênteses da vida; laboratório de relações sociais; educação radical; dança das cadeiras.


No encontro com o distinto, a noção de arte também entra em crise. A aproximação com a produção popular e a cultura visual em espectro mais amplo nos convida a desfetichizar o modo como consagramos obras e pessoas. Nessa direção, a produção de sentidos culturais depende menos da afirmação transcendental da experiência artística e mais da relação do museu com seu entorno, sua comunidade e seus contemporâneos. Alguns anos de experiência institucional me levam a afirmar que um museu de arte faz bem em se interessar menos por arte e mais por gente. É a construção de sentido cultural pautada nos processos de escuta, noção em crise. O que pensa o meu vizinho? Como pensa um objeto? No Acervo da Laje, museu comunitário do subúrbio de Salvador, pinturas, esculturas e máscaras contam a história local ao lado de objetos mais banais, como brinquedos, CD’s, conchas e muitas peças encontradas no lixo.


Mas ser contemporâneo não implica limitar-se ao presentismo encerrado no aqui e agora. Walter Benjamin nos ensina que a contemporaneidade é uma co-temporalidade, uma concordância de tempos múltiplos. Para colocar as coisas em perspectiva, fazemos bem em contrastar tempos históricos e chacoalhar clichês longínquos, de modo a melhor vislumbrar o presente, e vice-versa. Coleções com diversidade histórica nos ajudam a constatar, por exemplo, que arte significa coisas muito diferentes em lugares e tempos muito distintos. E apesar disso, a prática artística sempre foi uma importante ferramenta para a construção de nossos imaginários sociais.


Na perspectiva do sonho, o museu contemporâneo seria um organismo de formas múltiplas e transitórias, assim como a matéria da vida. Mas do ponto de vista pragmático, a armadilha que nos assombra é a de estabelecer um novo cânone, uma alternativa que simplesmente substitua uma verdade por outra. De todo modo, nos resta estar dispostos a experimentar e errar, “errar melhor”, como queria Beckett.

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