Conversa com Cayo Honorato e Diogo de Moraes, por Pollyana Quintella
Marcel Broodthaers, Casquette 'museum', 1970
São anos agitados para os interessados em politização da arte, estetização da política e o espaço de negociação entre esses termos. Por um lado, a "nova política" tem investido na construção de auto imagens que flertam com alguns procedimentos considerados "artísticos". Por outro, certa ascensão conservadora vem questionando a hegemonia cultural da esquerda através de detrações, censuras e desacatos diversos a museus, exposições e demais expressões. Os parâmetros de leitura do real estão confusos e embaralhados. Há dedos apontados para todos os lados e muita nebulosidade.
Em fevereiro deste ano, depois de uma conversa com um amigo[1], topei com o artigo 'Mudança estrutural dos contrapúblicos em face a controvérsias artístico-culturais'[2], publicado por Cayo Honorato e Diogo de Moraes na Revista Poesis, da Universidade Federal Fluminense. Eles analisavam ali o conceito de contrapúblico, bem como seus usos no campo da arte à luz do caso do Queermuseu, interessados em notar a existência de um contrapúblico 'ultraliberal'. Julguei o artigo tão interessante que resolvi convidá-los a trocar umas mensagens por e-mail em torno destes temas, a partir de um escopo mais amplo. A conversa que segue abaixo – certamente inconclusa, como costumam ser as boas conversas – é fruto disso. Obrigada, Cayo e Diogo.
Primeira pergunta (12/02/2022)
Pollyana Quintella: Passados quase cinco anos dos eventos que serviram para caricaturizar as reações de contrapúblicos conservadores diante de parcelas da arte contemporânea (a saber, as reações diante da mostra Queermuseu e o 35º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP), reanimando um campo de disputa simbólica que a esquerda cultural estava desacostumada a experimentar, parece não ser possível identificar ações institucionais consistentes que tenham se comprometido a lidar com tais contradições de maneira propositiva (refiro-me aqui a gestos para além dos recursos de denúncia, negação e autocensura). Os problemas de mediação cultural não estão necessariamente sendo levados mais a sério na esfera pública, ao contrário, seguem muitas vezes marginalizados pela perspectiva autocentrada de certa elite cultural, ou mesmo rechaçados pela postura de algumas lutas identitárias. A que se deve essa falta de “respostas”? Indo adiante, como o aumento da visibilidade dos contrapúblicos conservadores pode ser oportuno para discutir a crise democrática das instituições?
Primeira resposta (03/03/2022)
Cayo Honorato[3] e Diogo de Moraes[4]: Sua pergunta nos parece levantar várias questões, que gostaríamos de responder em partes, buscando considerá-las de modo multifacetado.
(1)
De saída, consideramos que a caricaturação dos gestos de repúdio à arte contemporânea deve ser substituída por sua caracterização, para que os limites da mera ridicularização e refutação dos contrapúblicos conservadores sejam transpostos, em favor de um projeto compreensivo desse fenômeno.
Com isso, pensamos que as controvérsias em torno da arte precisam ser desdobradas, mais do que simplesmente denunciadas. Esse pode ser um trabalho da mediação cultural, interessado em decifrar os enigmas e traduzir os dilemas de uma esfera pública fraturada, onde frequentemente nos deparamos com posicionamentos hostis e aberrantes.
Desdobrar, nesse caso, não significa chegar a um terreno comum, como no caso da solução de conflitos, mas buscar compreender como o outro compreende suas próprias razões e assim, quem sabe, ampliar uma compreensão recíproca. Em termos metodológicos, isso implica seguir os atores e suas ações; considerar suas agendas, linguagens e dinâmicas; abrir mão de explicações pré-determinadas; assumir uma intenção mais descritiva do que crítica, ao menos inicialmente.
De fato, não é isso o que as instituições e seus agentes fizeram nos últimos cinco anos, desde quando os eventos que você mencionou tomaram o debate político nacional.
(2)
Que a esquerda cultural estivesse desacostumada com essas disputas, em parte, se explica por um certo hegemonismo, do qual desfrutam artistas, curadores e críticos, que apoiados no pressuposto da autonomia da arte desconsideram o campo mais amplo da recepção, cuja possibilidade de agência foi inegavelmente ampliada pela internet, entre outros fatores.
Mais precisamente, essa posição, avalizada por uma tradição moderna, leva esses agentes a presumir que, em última instância, haverá receptividade a suas proposições, sobretudo por parte do público especializado e das instituições culturais, mesmo quando essas proposições desejam provocar o status quo ou representar um "valor de enfrentamento".
Ironicamente, esse hegemonismo foi, ele próprio, confrontado e abalado pelos ataques a exposições e obras que se avolumaram no segundo semestre de 2017 – um fenômeno que extrapola, para antes e depois, os casos da Queermuseu e do 35º Panorama da Arte Brasileira, tendo se manifestado em diversas cidades e instituições brasileiras.
Que essa disputa entre valores artísticos e morais configure, há algum tempo, uma disputa entre setores de esquerda e de direita, como sugere o ensaio "Cultura e política, 1964-1969" do Roberto Schwarz, constitui um elemento das guerras culturais que estamos testemunhando, em que as motivações extra-artísticas, de parte a parte, não podem ser escamoteadas.
A propósito, o fato de que as "novas direitas" recorram a expedientes de protesto, irreverência, transgressão e choque, e de que, por sua vez, a "esquerda cultural" busque se refugiar dessas disputas em suas prerrogativas, embaralha a avaliação de quem está sendo antissistêmico e quem está sendo moralista nessa história.
O ponto é que as proposições da arte circulam hoje por uma multiplicidade de esferas públicas, queiram aqueles agentes ou não. Alguns trabalhos, como Diva (2020) de Juliana Notari, por exemplo, não existem fora da discussão em que foram envolvidos. Não há como depurá-los desse processo – o que demonstra o papel constitutivo das esferas de circulação do trabalho.
Por sorte, a mediação não está sozinha. Outros autores e disciplinas estão mais acostumados a considerar essa condição "pós-autônoma" da arte. O antropólogo Néstor García Canclini e a socióloga da arte Nathalie Heinich, por exemplo, defendem uma mudança de ponto de vista, por meio de "um giro ao receptor" – o que aqueles ataques parecem alavancar, apesar de seu timbre autoritário e estridente.
(3)
De fato, antes de 2017, houve outras situações envolvendo atos de repúdio à arte contemporânea. Em 2011, por exemplo, a exposição "Heartbeat", da artista norte-americana Nan Goldin, foi cancelada pelo Oi Futuro. Em 2014, obras da 31ª Bienal de São Paulo sofreram certas restrições, após terem sido alvo de campanhas orquestradas por grupos ultrarreligiosos.
Isso poderia ter gerado discussões públicas abrangentes, assim como produzido instrumentos e precedentes, para que já pudéssemos lidar de modo mais aberto e propositivo com os episódios recentes, em vez de resistir a eles de forma defensiva, ou mesmo negar sua existência, afirmando se tratar de "ataques produzidos por robôs de internet".
Como se sabe, a exposição da Nan Goldin terminou sendo acolhida pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Precisamos ressalvar que o curador da instituição à época, Luiz Camillo Osorio, diferentemente da maior parte dos agentes da arte, mostrou-se disposto a lidar com o problema em chave mediativa.
Osorio, que também foi o curador do acossado 35º Panorama da Arte Brasileira (2017), sugeriu que as instituições pudessem encarar essas situações como desafios educacionais, promovendo debates francos e abertos a partir delas, dispostos a lidar com as diferentes perspectivas em litígio.
Em sua disponibilidade para o dissenso, chama a atenção sua percepção de que as exposições implicam um colocar-se em exposição – o que significa abrir-se tanto para o debate quanto para o conflito, tanto à pluralidade quanto às diferenças, incluindo as sensibilidades conservadoras.
Embora esse entendimento esteja longe de representar a tônica das respostas das instituições e do circuito da arte aos atos de repúdio à produção artística, ele pode servir de parâmetro para um tipo de debate a ser constituído.
Haveria nisso oportunidades políticas, pedagógicas e, por que não dizer, estéticas, que não podem continuar sendo evitadas, sob o risco de nos mantermos vulneráveis a novos ataques.
(4)
Quanto à visibilidade dos contrapúblicos conservadores ser uma oportunidade para se pensar a crise democrática das instituições, é inevitável reconhecer o papel exercido pelos antagonismos na dinâmica do que chamamos de democracia.
Negar ou escamotear tais antagonismos contribui, em realidade, para a erosão daquela dinâmica, que, de acordo com a filósofa política Chantal Mouffe, depende da criação e manutenção permanente de canais políticos para a manifestação do que ela chama de agonismo.
Contudo, negligenciar esses canais não previne o surgimento dos antagonismos, além de impedir a construção de instrumentos e precedentes, como já dissemos. Ao contrário, faz com que os antagonismos irrompam de modo apolítico – o que favorece animosidades em vez de debates, inimigos em vez de adversários, guerras em vez de disputas por hegemonia, anulação das diferenças em vez de autotransformação por meio das diferenças.
A propósito, analistas como Idelber Avelar dizem que o bolsonarismo é, justamente, sintoma de um sistema político que, por três décadas, operou represando antagonismos, ou contornando-os a portas fechadas sob a lógica do presidencialismo de coalizão (Sérgio Abranches) e do pemedebismo (Marcos Nobre).
Certamente, o compromisso com a construção daqueles canais requer tanto condições de trabalho, para se dedicar tempo e atenção aos diversos atores e suas agências, quanto condições emocionais, para lidar sem adoecimento com o desagradável – o que, de volta à mediação cultural, exige conceber esse trabalho para além das funções afirmativas e reprodutivas que lhe costumam reservar, como uma atividade complexa e especializada.
De modo complementar, em vez de se pensarem como um "exercício experimental da liberdade", de maneira eventualmente autocentrada, as práticas institucionais e artísticas poderiam se propor um exercício experimental do debate público.
(5)
A falta de respostas consistentes para essa problemática também nos pede considerar o lado das instituições.
O escamoteamento do debate denota uma fragilidade dessas organizações, em um momento no qual as artes e a cultura têm sido alvo de um projeto de asfixia e destruição por parte do governo federal, que por último resolveu arquivar os planos anuais de 2022 de algumas das principais instituições culturais do país, em mais um capítulo de sua cruzada contra a Lei Rouanet – o que tem sido chamado por alguns analistas de "pós-censura", quando o manejo de dispositivos legais inviabiliza materialmente expressões contrárias ao governo e às suas agendas.
Não podemos negar que, nos últimos anos, as instituições se empenharam em recuperar sua credibilidade pública, por exemplo adotando políticas de representação voltadas para a produção de grupos historicamente silenciados – o que eventualmente reforça a posição das instituições de alvo dos neoconservadores, mas também lhes permite gerenciar riscos e, finalmente, acomodar manobras de autocensura.
Certamente, isso não ocorre sem contradições, já que a transformação das instituições por aquelas políticas lhes serve de ingresso para um debate (sobre o decolonial) que se generalizou no circuito internacional (ironicamente impulsionado pelo norte global), além de acompanhar o surgimento de práticas como a do "colecionismo ativista" em um mercado de arte para o qual a pandemia não trouxe crise.
Mas se trata de uma recuperação ou resposta suplementar, que completa a fragilidade das instituições, uma vez que seu significado depende em alguma medida das pressões exercidas pelos detratores da arte. Essa situação faz com que o setor cultural, por exemplo, suspenda as críticas acumuladas ao longo das últimas décadas à Lei Rouanet, quando não passe a defendê-la como uma política progressista. Sem muito nos darmos conta, abdicamos da crítica institucional para apoiar as hashtags "somos todos" esta ou aquela instituição.
O ponto é que as instituições artísticas sempre mantiveram uma relação muito ambivalente com os seus públicos, que historicamente foram vistos como pessoas barulhentas, desordeiras, incivilizadas etc. Se por um lado os públicos compõem a legitimação de seu papel social e do financiamento público que recebem, por outro, são um incômodo a ser tolerado. E se é assim com os públicos, que dirá com os contrapúblicos e, mais ainda, com os contrapúblicos conservadores?
Os papéis que as instituições geralmente atribuem à mediação cultural também refletem essa ambivalência. Esperam que a mediação amplie o uso social do museu, que ela democratize o acesso às ofertas institucionais, ao mesmo tempo em que contenha os "excessos de democracia" que poderiam advir desse processo, separando muito bem o que é participação do que é deliberação.
Tampouco as políticas de representação escapam a essa ambivalência. As mudanças que elas trouxeram ainda não alcançaram as diretorias e conselhos das grandes instituições. Também a maneira como tais mudanças, em parte, são assimiladas por valores e práticas neoliberais, reiterando critérios baseados na singularidade, raridade e autenticidade, merece ponderação. Do mesmo modo, permanece inalterado o organograma que subalterniza os setores educativos (que justamente mantêm uma relação mais próxima com os públicos) em face do curatorial e do expositivo – reiterando o hegemonismo comentado acima.
Por exemplo, folheando o catálogo de uma exposição de arte indígena recente, de uma das principais instituições brasileiras, temos a demonstração de que há mudanças em curso, que se refletem nas exposições, no acervo e na história da arte. Por outro lado, temos textos do diretor, da curadora e de alguns artistas, além de imagens de obras separadas umas das outras, quase nenhum registro da exposição, isto é, de como os trabalhos foram dispostos no espaço, uns em relação aos outros.
Não há praticamente nada sobre o que aconteceu durante a exposição, sobre como ela eventualmente teria sido interpelada pelos públicos – como se nada disso tivesse qualquer relevância para a história das exposições, como se o tempo da exposição servisse apenas para confirmar transformações que foram postuladas no dia de sua abertura, como se já não tivéssemos aprendido que os contrapúblicos podem mudar o curso das exposições.
A propósito, diante da multiplicidade de esferas públicas em que a arte pode circular hoje em dia, a ausência de contrapúblicos em uma exposição, que em todo caso não podem ser produzidos pelas instituições, pode indicar um déficit de sua inserção social ou sua hibernação diante das dinâmicas culturais em curso.
Em todo caso, a falta de respostas se deve às opções que as instituições adotam para construir sua relevância social. Quais têm sido essas opções é também um debate a ser feito.
Segunda pergunta (02/04/2022)
Pollyana Quintella: Parece-me que o desafio de envolver mais ativamente os públicos dissidentes passa também pelo fato de que tais reações conservadoras (subprodutos ou não de guerras culturais mais amplas) tem na retórica do ódio sua força de expressão, o que se manifesta em resistência a considerar os dados objetivos de um debate. Há certamente muitas coisas contidas nesse "ódio" mas, como reflexo de certa gameficação do exercício político, o outro tende a ser visto como um adversário a ser eliminado, silenciado ou rechaçado (e, que fique claro, não só por "eles", mas também, muitas vezes, por "nós"). Ou seja, resta a tarefa de compreender como é possível remanejar uma força/resposta destrutiva em força/resposta propositiva, a tal "autotransformação a partir da diferença" como vocês colocaram. Julgo especialmente produtivo quando dizem que é preciso "assumir uma intenção mais descritiva do que crítica, ao menos inicialmente." Talvez nos caiba decupar o ódio em seus respectivos contextos, entender de onde ele vem e para onde aponta e só daí ser capaz de forjar ações institucionais consistentes que se comprometam a lidar com tais contradições – ou seja, levando as reações dos outros, antes de tudo, a sério.
Lembro-me de Bruno Latour, que costuma dizer que estamos vivendo uma "guerra dos mundos". Ele diz isso para pensar os problemas da ecologia, mas não deixa de funcionar aqui, quando menciona que essa é "uma guerra dos mundos para a própria definição do que são os mundos comuns para os quais não há nenhum árbitro aceito e nenhum valor universal", o que perpassa tanto uma crise democrática dos valores simbólicos, quanto um momento interessante de possíveis novos acordos, afinal, também tem sido bastante fértil pôr os tais valores universais em cheque, não é? E a própria ideia de "guerra dos mundos" (guerras, no plural, talvez nos sirva melhor) não é exatamente uma novidade do presente, assim como os próprios contrapúblicos conservadores. O que parece novo, no Brasil, é seu modo de produzir visibilidade e intervir enquanto grupo (ainda que temporário, ocasional), o que leva nossas instituições a reconsiderar o debate a partir de novas perspectivas.
No caso do campo artístico, também podemos tomar outras direções. Tem sido frequente ouvir pessoas relatando a sensação de incapacidade frequente de distinguir realidade e ficção. Se a produção simbólica (artística, cultural) é uma importante ferramenta para a construção de nossos imaginário sociais, também nos vemos diante da necessidade de afirmar que a vida não se limita à disputa de narrativas, ou seja, a necessidade de se aproximar um pouco mais da concretude das coisas. Por um lado, é na esfera cultural que somos convidados a investigar o que há de ficcional e discursivo naquilo que é supostamente "real". A compreensão da artificialidade das “imagens da realidade”, seus enunciados e discursos, é um passo importante para poder criticá-las. Por outro, podemos interpretar as novas formas de fazer política segundo algumas metodologias artísticas. Por exemplo, apesar dos contrapúblicos desempenharem atitudes distintas dos códigos partilhados pelos agentes do meio artístico/cultural dominante, muitas vezes eles parecem dialogar com alguns desses termos, operando deslocamentos. Os trolls, por exemplo, se afirmam vítimas dos protocolos enfadonhos da esquerda, e apresentam-se não enquanto sujeitos hegemônicos, mas “minorias”, isto é, buscam inverter o jogo de reivindicação protagonizado pelos movimentos identitários. Sua atividade é perpassada por um sentimento de transgressão em relação aos valores politicamente corretos, espécie de contracultura às avessas (em alguma medida, não seria absurdo relacionar o próprio self-design de Bolsonaro ao imaginário do artista subversivo, alguém dotado de comportamentos disruptivos e cheios de personalidade; aquele que imprime seu gesto ousado de forma radical). Para além das instituições e suas gestões, não seria preciso considerar os dilemas da própria prática artística neste debate?
Segunda resposta (20/04/2022)
Diogo de Moraes: Sim, entendo que as práticas artísticas contemporâneas têm sido de alguma forma enquadradas por atos de recepção que frustram e rasuram seus programas, exigindo que indaguemos a própria produção dos artistas, e dos curadores, no sentido de seguir e desdobrar as controvérsias instauradas por públicos controversos, com a licença do pleonasmo, ou contrapúblicos. É isso, aliás, o que sugere o mesmo sociólogo citado por você, Bruno Latour.
Esse acompanhamento das contestações instauradas pela audiência – independentemente do que possamos pensar a respeito da pertinência de seus pleitos – passa por reconhecer que parte importante da criação artística, hoje, opera na jurisdição da realidade, lidando com problemáticas com incidência direta na vida, no cotidiano e no âmbito dos direitos civis, assim como nas versões sobre o passado histórico. Basta pensarmos, de forma genérica, em trabalhos de arte presentes em bienais que lidam com questões relacionadas ao direito ao aborto, ao não binarismo de gênero, à volatilidade da sexualidade, às implicações sociais das religiões, à reparação histórica em termos étnico-raciais etc.
Ao mesmo tempo que esses são temas cruciais das chamadas “guerras culturais” – despertando batalhas morais impermeáveis ao reconhecimento da posição alheia, ao debate de ideias e às soluções de compromisso –, eles demonstram o corpo a corpo que a atividade artística tem buscado com dimensões francamente vinculadas às experiências pessoais, coletivas e cidadãs. Essa famigerada disposição para operar no campo expandido, amiúde extraestético, situa a arte num regime “pós-autônomo”, como já mencionado.
Nesse caso, entendo que deveria ser parte constitutiva dessas operações artísticas e curatoriais a disposição (e a correlata invenção de dispositivos) para lidar com respostas refratárias a elas, a fim de delinear canais políticos para o prosseguimento das controvérsias – transpondo o limite das denúncias e das resistências ao caráter eventualmente delirante das acusações advindas de subjetividades conservadoras, ou mesmo reacionárias.
Além disso, para complicar ainda mais a questão, essa condição da arte, deslocada da autonomia estética da forma, também funciona recursivamente, com atividades não artísticas se valendo de expedientes poéticos e expressivos para se manifestarem – basta pensar, por exemplo, na primeira entrevista coletiva de Jair Bolsonaro como presidente eleito, improvisada sobre uma prancha de bodyboard. Personagens da “direita alternativa” são responsáveis por suas manobras mais estridentes, e eficazes, na captura da atenção e na geração de mobilização.
A transgressão virou à direita, à extrema-direita, como propõe o historiador argentino Pablo Stefanoni, para quem, aliás, é imprescindível que as esquerdas busquem compreender essa forma de reacionarismo. Sobre essa verve disruptiva, aliás, a jornalista norte-americana Angela Nagle dirá que estão enganados os que pensam que a sensibilidade da alt-right, patente uso "trollador" que seus adeptos fazem das redes digitais, não merece atenção e diferenciação, como se fosse simples variação da velha direita.
No atual quadro político-cultural, os libertários seriam aqueles que, infensos ao politicamente correto, procuram reverter sua posição de marginalidade na esfera pública, tomando a cena e constrangendo os representantes e defensores das minorias historicamente oprimidas e subalternizadas. O lema do épater la bourgeoisie [assombrar a burguesia], tão caro ao artista de vanguarda, mudou de lado e foi parar nas mãos daqueles que justamente abominam a arte, ou a arte comprometida com agendas progressistas.
Os trolls aludidos por você são aqueles que justamente colocam a arte e os artistas “de bienal” na berlinda, como no caso anedótico de um tal Jacinto Flecha, num ofensivo libelo publicado em 2014 no site do ultrarreligioso Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, no qual brada pela instalação de um pelourinho diante da Bienal de São Paulo, onde os artistas deveriam receber castigos físicos e públicos por sua “tranqueira disforme, ilógica, malcheirosa, criminosa e deturpadora”. O enrubescimento e a indignação provocados por trollagens dessa natureza convertem os agentes da arte em públicos de enunciados e formas expressivas propositalmente chocantes, invertendo as vias de endereçamento e provocação. Aprender a lidar com interpelações como essa, eis um desafio incontornável para a arte.
Cayo Honorato: Estou de acordo com o Diogo. Certamente as práticas artísticas têm sido afetadas por esse debate. Mencionamos a multiplicidade de esferas públicas em que os trabalhos circulam hoje em dia, queiram os artistas ou não; um espaço em que as mídias sociais deslocam os saberes especializados, transformando-se de certo modo em uma instância da crítica de arte.
Você também, Pollyana, se refere a uma apropriação pelos contrapúblicos conservadores de técnicas e estratégias até então associadas às vanguardas artísticas e à esquerda: um sentimento de marginalização, estilos transgressores, a estética da contracultura, atitudes inconformistas e antissistêmicas – o que também é observado por autoras como a Angela Nagle, em relação à alt-right norteamericana. Nesse contexto, o dilema talvez resida em como se manter comprometido com os valores e práticas democráticos, quando os meios empregados para tanto parecem ter adquirido outros sinais.
Mas há talvez um problema mais fundamental, que ultrapassa um debate sobre as apropriações da esquerda pela direita, ou mesmo sobre uma “estetização da política”. O filósofo Jacques Rancière, em seu renomado A partilha do sensível, aponta que há uma “estética” na base da política, que diz respeito a um “sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir”, definindo “ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência”. Em resumo, é no campo da estética que se determina, na forma do que pode ser visto e ouvido, aquilo de que a política poderá se ocupar. É nesse sentido que as práticas artísticas são, segundo a formulação memorável do Rancière, “‘maneiras de fazer’ que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade”.
O problema é saber hoje quem opera essa partilha do sensível, uma vez que ela não parece mais exclusividade das práticas artísticas, ou pelos menos dos artistas como tais. Há alguns sinais dessa desapropriação. Podemos lembrar aqui da aquisição pelo MAM-SP em 2013-14 de uma série de fotografias intitulada Ruas de junho, feitas pela Mídia Ninja. O coletivo (ou rede) havia se destacado por fazer uma cobertura das manifestações a partir das ruas, por meio de transmissões ao vivo e sem cortes, antes da popularização do streaming, promovendo uma redistribuição incontestável do que podia ser visto e de quem podia dizer sobre o que é visto. A aquisição de suas fotografias demonstra tanto uma ampliação de quem pode ser reconhecido como artista – o que talvez não fosse uma pretensão da Mídia Ninja – quanto uma persistência das categorias da arte – já que o trabalho do coletivo não era exatamente produzir fotografias, muito menos artísticas.
Até aqui, esse deslocamento não parece muito controverso. Anos mais tarde, porém, em 2017, a catalisação e capitalização das manifestações contra a exposição Queermuseu pelo MBL são outro exemplo desse "mesmo" processo. Nenhum museu se propôs a adquirir seus vídeos confrontativos, mas o modo como o grupo soube mobilizar sentimentos distribuídos de medo e ódio, recorrendo a desinformação, sensacionalismo e mensagens extremistas, foi bastante eficaz – estejamos ou não de acordo com as suas posições – em editar o que, naquele momento, estava sendo discutido sobre aquela e outras exposições, desbancando as práticas artísticas no seu próprio campo de atuação. Um debate na TV Band em 15 de setembro de 2017, trazendo o âncora no centro do tríptico televisivo, um jovem e confiante youtuber (que recentemente pareceu provar do próprio veneno) do lado esquerdo e, finalmente, um insone e descabelado curador do lado direito – em formato que, sabemos, favorece a polarização – merecia ao menos se tornar um NFT.
Em resumo, talvez esses fenômenos pressionem as práticas artísticas por mudanças ontológicas, mais do que aparecerem como manobras simplesmente concorrentes. Mas essa é ainda uma hipótese muito provisória.
[1]Obrigada, Jandir Jr., por ser esse amigo e apostar sempre nas boas trocas. [2]Você pode acessar o artigo aqui: https://periodicos.uff.br/poiesis/article/view/47572/29532 [3]Cayo Honorato é doutor em educação pela Universidade de São Paulo e professor no Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. [4]Diogo de Moraes é doutorando em estética e história da arte na Universidade de São Paulo e assistente técnico no Sesc São Paulo, na Gerência de Estudos e Desenvolvimento.
Komentarze