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Foto do escritora palavra solta

Lourival Cuquinha e a disputa do simbólico

por Pollyana Quintella



Lourival Cuquinha é amplamente reconhecido no cenário brasileiro por estressar as relações entre arte e política. Do furto do parangolé de Hélio Oiticica, no início dos anos 2000, às icônicas bandeiras compostas por notas de dinheiro, o artista se dedica há mais de vinte anos a perscrutar as fantasias e ficções sociais que rondam a prática artística, seus limites, validações e atribuições de valor, bem como as relações íntimas entre exercício político e dimensão simbólica. Recentemente, o artista montou “Crapulocracia”, sua primeira mostra individual na Central Galeria, em São Paulo, e a terceira de uma trilogia de exposições que vêm acompanhando os últimos capítulos políticos do país e a consequente derrocada do pacto democrático. A primeira delas, “OrdeMha”, realizada em 2016, aconteceu em paralelo ao golpe exercido sobre o mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff, enquanto a segunda, “Dos meus comunistas cuido eu (Roberto Marinho)” presenciou a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018. Todas elas, a partir de diferentes estratégias, buscam situar a produção de Cuquinha à luz desses acontecimentos.


No centro da exposição de 2016, uma grande lâmina rotativa, tal qual as placas de Petri recipientes cilíndricos utilizados por cientistas para analisar microorganismos expunha o equivalente a um metro quadrado de lama tóxica da Vale despejada no Rio Doce, como se fosse possível encapsular a catástrofe. Se a lama cumpria o papel de presentificar o desastre e aproximar o evento de nós (tantas vezes reduzido a uma abstração narrativa em razão do bombardeio de notícias e informações), também instigava certo fascínio meditativo pela substância em movimento, pondo em tensão as relações entre estética e política, ou entre frágeis dicotomias como ação e inação; atividade e passividade.




Desta vez, outros dois Torniquetes atualizaram o repertório das recentes tragédias brasileiras. Um exibia o petróleo que atingiu as praias do litoral nordestino em 2019, enquanto o outro expôs as cinzas das queimadas que se multiplicaram em território nacional neste ano, formando uma espécie de inventário das destruições que não cessam de nos atravessar. No Brasil do presente, não é exagero dizer que a realidade supera a fantasia; sobra delírio, mas falta imaginação. Lama, fogo, bolsa de colostomia, tudo soa como pura literalidade. Para que metáforas? Resta saber se vê-los assim de perto será o suficiente para perturbar nossa anestesia.





O petróleo, material de interesse de Cuquinha há alguns anos, também estava presente no neon que dá título à mostra Crapulocracia. A palavra luminosa contaminada pelo combustível fóssil funcionava como um marcador temporal do presente, momento no qual as promessas históricas foram suplantadas pela realidade pós-utópica, e a imaginação coletiva fracassa continuamente em encontrar soluções para as crises em que estamos metidos, enquanto o país é governado por uma besta.


Cuquinha, porém, não se restringe à visão curta e nublada de um presentismo encerrado no aqui-e-agora. Trânsitos entre diferentes tempos históricos situam as complexidades políticas em perspectivas mais amplas, como é o caso de Apólice do Apocalipse (2018-2021), iniciada em 2018. Naquela altura, o artista apresentou uma cômoda antiga de vidro contendo uma transcrição da carta de Pero Vaz de Caminha, considerada o primeiro documento escrito no Brasil. Pouco a pouco, a carta ia sendo carcomida por um conjunto de grilos vivos, o que fazia menção direta ao fenômeno da grilagem, cujo nome tem origem no fato de que esses insetos eram utilizados para forjar o envelhecimento de falsos documentos. À luz da ação do artista, a história do país figurava como um gesto inautêntico. Agora, a mesma carta foi exposta após os efeitos da grilagem, simulando seu próprio anacronismo. Afinal, não há nada assim de tão novo no nosso fim do mundo, talvez estejamos mais próximos de um disco arranhado que repete um evento farsesco à exaustão.








A relação direta com o dinheiro também está presente em “Brasil Sumidouro” (2013). Recibos de compras das mais variadas realizadas com o cartão de crédito do artista dão forma aos mapas das cinco regiões do país. Trata-se de uma espécie de loteamento simbólico do Brasil a partir de gastos pessoais, nublando as fronteiras entre o público e o privado. “Sumidouro” lugar por onde algo desaparece refere-se ao fato de que os dados impressos em tais notinhas fotossensíveis estão fadados a se apagar com o tempo. Restará apenas a cor do papel, nos fazendo questionar os critérios arbitrários de atribuição de valor no meio da arte.








Mas é a obra Vendo Direitos à Venda (2021) que situa as operações financeiras com mais radicalidade. O artista comprou, em setembro deste ano, cem ações da Petrobras pelo valor total de R$ 2.493,00. A partir disso, os interessados em adquirir a obra deverão responder a um breve questionário cuja finalidade é designar se são ou não cidadãos golpistas. Os “brasileiros não golpistas” poderão comprar o trabalho por R$ 5.099,00, valor referente ao preço que as ações alcançaram em maio de 2008, momento de alta da empresa, enquanto “estrangeiros ou brasileiros golpistas”, só poderão adquirir o trabalho pelo dobro do preço R$ 10.198,00. Ao instituir tais condições, Cuquinha retira a comercialização de um suposto espaço de neutralidade garantido pelo capital, além de implicar as consequências políticas e econômicas dos últimos anos no seio das ações culturais.


Transitando por esse conjunto de trabalhos, somos reiteradamente provocados por algumas perguntas: que papel resta à prática artística na construção de um imaginário político? Como fazer do campo simbólico um espaço de disputa? Quais as negociações entre sujeito, instituições de poder e os limites da legalidade? Não será possível respondê-las, mas assim como Cuquinha, nos caberá sustentar o problema: cutucar, desmontar e revirar as fantasias.

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