por Gustavo Gomes
Algo estava diferente na praça da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Em volta da placa escrita “rua Marielle Franco” uma multidão chorava, gritava e se abraçada comemorando a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, novo presidente do Brasil. Das centenas de emoções estampadas nos rostos dos milhares, um sentimento era predominante: o alívio! Estava presente no abraço que troquei entre conhecidos e desconhecidos. Após olharmos, um nos olhos dos outros, deixávamos sair um “aaaah”... Um suspiro de quem escalou uma montanha, correu uma maratona e acabou de sair de um mergulho profundo. A mesma energia que deu para sentir com Isabela Reis no Podcast Angú de Grilo, num grito de felicidade no início do episódio 159, intitulado, “Lula, Presidente do Brasil”, antes de iniciar a conversa com Flávia Oliveira. Isabela gritou como gritei na Cinelândia. Ao fundo o áudio do Galvão Bueno na famosa narração da vitória da Copa de 2002, “acaboooouuu!!!”
Sim, acabou. Estamos na porta de outro ciclo e ainda é difícil precisar quando entramos neste inferno. Alguns colocam a marca em 2013, nos protestos de junho que fizeram emergir uma extrema direita raivosa e inconsequente. Outros, vão trazer o impeachment, com exaltações à família, à uma suposta ideia de Deus e o elogio a torturadores como marco inicial. Para mim, é ainda mais recente. Mesmo que pareça ontem, já se passaram mais de quatro anos desde o dia 14 de março de 2018, quando Marielle foi brutalmente assassinada, após sair de uma reunião na Lapa.
Diante da euforia da vitória de Lula, minha mente se teletransportou, mesmo que por alguns segundos, para 20 metros da onde eu estava há 1690 dias atrás. Me vi abraçado com uma amiga querida, que havia trabalhado com a Marielle. Meus braços envolvidos nos seus enquanto ouvia seus soluços em um pranto que até hoje meus ouvidos conseguem lembrar. As lágrimas de indignação e medo embaçaram meus olhos, que tentavam acompanhar o caixão sendo carregado pelos amigos da vereadora, enquanto uma multidão gritava: Marielle, presente!
Daquele dia para cá, Lula foi preso e impedido de disputar a eleição presidencial de 2018. Naquela mesma praça, um movimento organizado por mulheres gritava “Ele não”, nas vésperas da derrota de Fernando Haddad e o início da maior calamidade da nossa recém recuperada democracia. Além dos nefastos ataques às instituições e destruição com fogo da Amazônia, nos deparamos com um governo assassino, capaz de negar a vacina, o uso de máscaras e estimular pessoas a saírem de casa em plena pandemia. Um governo responsável por olharmos a televisão e vermos em um só dia, 4.249 pessoas mortas em todo o Brasil por um único vírus, cujo presidente se tornou cúmplice. Paulo Gustavo, Aldir Blanc e tantos outros sorrisos nos deixaram. Dentre esses, muitos outros morreram ao acreditarem na ideologia genocida ostentada pelo ocupante do planalto. Famílias inteiras em luto e, mesmo assim, cumprimos o dever de estar de pé diante da eleição mais importante e difícil das nossas vidas.
Algo havia de diferente na praça da Cinelândia. Voltei para o tempo presente. No lugar das lágrimas de tristeza, estavam sorrisos e lágrimas de felicidade. No lugar daquele abraço que segurava um corpo em dor e tristeza, meus braços estavam envolvidos em outro corpo feliz, agarrados como quem não acreditava que aquele dia havia chegado. No lugar do caixão, havia uma placa que marcava a resistência e o símbolo de uma mulher negra que lutou até o fim. No lugar de uma passeata em protesto à morte de uma parlamentar, andamos em marcha no bloco do boi tolo, entre vermelho, branco e cores da bandeira até a praça Tiradentes. Curiosamente, percorremos o mesmo trajeto de 4 anos e 7 meses atrás.
Sem tristeza, presenciamos a história, desta vez, com alegria.
É certo que os próximos dias serão complicados. Os atos antidemocráticos e a máquina de mentiras bolsonarista continuará operando. Não se sabe o que será do bolsonarismo sem o presidente derrotado, muito menos o tamanho do problema fiscal, político e administrativo que foi e está sendo causado no Brasil. Mas, vamos nos permitir viver esses momentos de felicidade, já que teremos, certamente, muito trabalho pela frente.
Somos nós, responsáveis por fortalecer a democracia deste país. Democracia não é uma palavra imóvel, seu significado precisa ser relembrado e aprofundado. Desenvolver os mecanismos de participação social, conversar com as pessoas e reformular a cultura política do nosso país são tarefas mais que importantes, são imprescindíveis. Não podemos viver em um país onde se tornou possível a morte de uma parlamentar. Marielle pode não estar conosco, mas assim como a figura do homem que morreu torturado e morto pela ditadura do império romano, será lembrada todas as vezes que o sorriso da esperança superar o ódio e a maldade.
Já nas últimas linhas deste texto/desabafo, lembrei-me de um momento, durante as eleições, que ouvi um jovem trabalhador e vendedor de bala, no centro do Rio, falando sobre o fato do vizinho do presidente ter matado Marielle. Via nos olhos dele a indignação e a importância de ter um outro projeto de país à frente da presidência. No fim, os trabalhadores do Rio e do Sudeste, principalmente a população negra, foram responsáveis por manter os votos necessários para uma vitória apertada neste segundo turno. Ao mesmo tempo, foram as mulheres que mantiveram a distância entre o símbolo da violência e o convite ao respeito. E o nordeste… como muitos dizem, carregou o Brasil nas costas. Nas eleições da mentira, a memória fez do nordeste o guardião da verdade.
Enfim, democracia é um instrumento para a felicidade. E o povo deste país decidiu que é com diálogo e paz que podemos ser felizes.
Lula é presidente. Sim, vou repetir até parecer ser verdade. Vencemos, e foi mais que uma eleição. Ganhamos uma oportunidade de reconstruir um país. E na luta que a gente se encontra, em nome de Paulo Gustavo, Marielle e tantos outros por quem temos o dever de reconstruir esta nação.
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