por Flávio Morgado
Reprodução: Instagram/@newmemeseum
Cena 1 – Vila Madalena, São Paulo
A última vez que visitei São Paulo, como de praxe, tirei um dia para bater perna nas galerias de arte da cidade. Não conseguiria comprar um cinzeiro balizado pelos valores dos galeristas, mas não só a formação e a predileção pessoal pelo passeio, como, sobretudo a Revista, hoje me dá uma nova abordagem nessas visitas. Em geral, pego indicações com a Pollyana (Quintella) ou com a Marcela (Cantuária) e vou atrás das exposições que o métier joga seus holofotes, só que desta vez, peguei um atalho diferente: um novo amigo havia me dito para conhecer as galerias da Vila Madalena, que apesar de não gozarem do prestígio da crítica, não deixam de movimentar suas vendas em um bairro cercado de uma classe média hipster.
No auge da arte moderna, o abstracionismo significou as múltiplas possibilidades da subjetividade, da construção da tela, da emancipação do espectador, é impossível falar de expressionismo abstrato, por exemplo, e não tangenciar a implicação de um corpo como o de Pollock em suas action paintings. Havia um propósito, muito bem delineado pela fortuna crítica e a História da Arte, que se para esses artistas ou trabalhos se voltaram, sem dúvida, é porque havia algo de uma mobilização estética, ética ou social em suas narrativas. A arte é a sua implicação, por excelência. Ou como dizia o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar:
A arte moderna, a partir do impressionismo, é crítica, autocrítica e autofágica. Crítica porque se opõe essencialmente aos valores da burguesia; autocrítica porque critica esses valores na medida mesmo em que se tornaram linguagem da arte; e autofágica porque, ao longo desses anos, a pintura e a escultura não geraram, de si, uma nova visão capaz de superar o processo de desintegração em que imergiram.[1]
CONVERGENCE, Jackson Pollock, pintura a óleo, 237 cm × 390 cm, 1952
Portanto, se Pollock lança ao acaso e ao peso do corpo a revelação da arte, é porque a razão já nos sufocava. Se Kandinsky desdobrou a geometria tentando nela uma realidade possível, exatamente porque outra e porque nova, é porque para ele não havia saída nessa.
Mas estava em São Paulo, e me lembro que apesar de ter em minhas expectativas que a arte contemporânea se sustenta exatamente em trair essas expectativas, o que treinou meu olhar a evitar a má vontade e acomodar o indigesto, ainda assim o que encontrei naquele circuito me pareceu mais sintomático do que intrigante.
São galerias assépticas, brancas (em toda extensão do termo), jardins de inverno, recepção bilíngue e as telas. Desdobramentos geométricos estéreis, um abstracionismo decorativo em chassi caro e com legenda ao lado. Fiquei me censurando a má impressão e resolvi correr atrás do catálogo das galerias. Havia uma semelhança na construção das narrativas: a famigerada e pouco eficaz “pluralidade estética”, com aspectos “geométricos e surreais” que dialogam com a nossa cidade “templo e babilônia”, São Paulo. Algumas breves sacadas como graffiti em tela e a justificativa de que era o espaço da rua ocupando o circuito da arte. Com raras exceções, esse grafiteiro não é um indivíduo periférico, mas alguém de belo sobrenome, estampa, roupas e padrões, com um feed organizadíssimo no Instagram. Tudo isso compõe o capital simbólico do objeto, ou como preferem, seu hype.
Reprodução: Instagram/@freeze_magazine
Os valores variam pouco, estão longe das cifras estratosféricas dos artistas consagrados e do mundo abastado e de lavagem de dinheiro das grandes galerias, mas também estão longe dos artistas que lutam por anos de maneira independente pelo sustento. Com todo aquele esquema de articulação, que passa pela gentrificação do bairro e o entendimento burguês do circuito da arte, é possível ser representado por essas galerias e sustentar todo esse hype.
Se parto diretamente aos artistas na intenção de furar essa expectativa e jogar toda essa apropriação na culpa do mercado, volto a me frustrar. Em alguns portfólios, e não são poucos, xamanismo e geometria dialogam como se pudessem simplesmente ser jogados num mesmo campo semântico e só o gesto em si já traduzisse a espiritualidade e a excentricidade intelectual do sujeito. Carece de substância.
A função desse circuito, que poderia ser lido na acepção de um circuito alternativo, caso efetivasse mudanças estruturais em relação ao mercado de arte, acaba sendo a de um simulacro desse mesmo circuito, em que a diferença em relação às cifras movimentadas também se traduz na conceituação em torno do que é arte naqueles espaços, que atravessa a galeria, os artistas e o bairro.
Vila Madalena é um bairro agradável, jovem, agitado na medida certa, casas de muro baixo, a típica beleza condescendente, ou nos termos do filósofo Byung Chul-Han, uma beleza inserida nessa estética lisa, sem ranhuras, sem contradições. E elas foram prontamente eliminadas, como boa parte dos bairros de classe média de São Paulo, no processo de gentrificação, capaz de selecionar a população que ali viveria: herdeiros, artistas-rentistas, malabaristas-engenheiros, pajés-CEOs. Gente que não quer só comida, quer comida, diversão e arte. Quer comida gourmet, diversão apartada e arte sem implicação. Por que não o melhor dos dois mundos? Tenho um objeto de arte, legitimado pela galeria e pelo valor, e esse objeto não depõe contra mim, pelo contrário, compõe perfeitamente a minha selfie.
A demanda de uma estética lisa, ou seja, uma estética estritamente burguesa é a força motriz desse circuito, porque não quer se implicar, porque a apropriação é favorável ao discurso, e o discurso, no mundo das imagens, das selfies e das redes, assume a integridade desse Eu. Um Eu que não admite margens, uma empatia mercantilizada, um mercado inflacionado de conceitos neutralizados, um Eu apaziguado entre a tarja-preta e o fim da fruição, uma sociedade desses Eus é uma sociedade que se repete; que incansavelmente reproduz o mesmo cinismo mais evidente do capitalismo: a neutralidade, a isenção. Um esvaziamento covarde do objeto de arte.
Por outro lado, ainda que em suas bases livres, em seu anything does, o mercado de arte constrói os seus funis, eventualmente teóricos ou não. Sabemos que há uma série de articulações em todo lugar de poder. O que assusta nessas galerias hipsters é que uma vez atestada a exclusão desse mercado restrito, a solução mais revolucionária parece ter sido criar uma espécie de pastiche do mesmo mercado. Com menos grana, com menos talento. Afinal, como diz a Polly: “a crise é sobretudo estética”.
O governador de São Paulo, João Dória, sua esposa, Bia Dória com Romero Britto em 2018. Fonte: Buzzfeed
Cena 2 – Miami, Estados Unidos da América
Em agosto de 2020, recebemos mais uma daquelas cenas-meme que alegram o grupo do Whatsapp no meio desse caos: Madeleine, dona de um restaurante em Miami, interpela o artista Romero Britto e depois de uma lavada daquelas, alegando arrogância do artista, espatifa uma de suas obras mais caras na sua frente e de uma série de pessoas que assistiam (e filmavam, claro) ao evento. Eu mesmo me espantei com o êxtase conquistado nesses quatro segundos de Big Apple no chão, na cara do Romero Britto.
Perversos? Violentos? Adoramos a destruição da reputação alheia? Talvez. Mas há nessa cena um senso de justiça único. E é exatamente sobre ele que venho pensando nos últimos dias.
ROMERO BRITTO, animação feita no Blender, Oiemare, 2020
Britto é talvez o artista que mais amamos odiar. Sei os meus motivos: essa estética forçosamente alegre, de uma alegria mercantil e desesperada, retrato de uma estética new rich, pacote botox-Miami. Uma arte embotada, sem qualquer implicação fora de sua reprodução industrial, as vultuosas transações com multinacionais e a venda de um discurso barato. Quando estive em Berlim em 2016 e soube que nas homenagens à queda do Muro (um monumento tão político do século passado, sobretudo em sua ruína), era um ursinho colorido do Romero Britto que representava o panteão brasileiro, a minha vontade era de gritar “DESCULPA!” na Alexanderplatz. Porque é esse o nível de constrangimento que sua arte impõe, não há nada além de um sorriso débil, como dos presidentes que ele costuma pintar.
Romero Britto dobrou o mercado da arte na marra. Não há um crítico que se autorize a escrever sobre ele, tamanho é o consenso do constrangimento em relação ao seu nome. Não há uma galeria que não perca em valores reais, caso se aventure a expor uma de suas obras. E ainda assim ele sustenta o título de maior artista já licenciado da História. Seu ateliê é uma fábrica, de lá saem cadernos, canecas, copos. Entre seus compradores estão presidentes, celebridades de Hollywood, a família Bolsonaro.
Jair Bolsonaro, Michele Bolsonaro e, o sempre amigo das famílias, Romero Britto. Fonte: Folha de São Paulo.
O centro do seu trabalho é o setor financeiro. A capacidade de articulação e reprodutibilidade de uma “arte”, que para absorver tamanho esvaziamento simbólico, só pode também ela ser um objeto esvaziado, sem qualquer valor simbólico além da cifra. O seu consenso está no preço, na possibilidade de administrar um circuito financeiro que justifica a compra de uma obra sua como o passaporte do parque new rich de Miami. Uma cidade, que apesar de todo seu embotamento, também se deixa assinar em seus cubanos, mexicanos, salvadorenhos. E também aí se amplia o senso de justiça: Madeleine é uma latina, provável que faça parte de uma Miami que enriqueceu às custas de muitas renúncias e trabalho, enfrentando preconceito, incertezas eleitorais quanto aos seus direitos, e agora, os novos ricos e sua arrogância. Seu restaurante vende pratos a preços populares, seus empregados são seus parentes (e ela está disposta a defendê-los, nem que seja quebrando mais de 20 mil reais), seu negócio se comunica com o lugar de onde ela saiu antes de enriquecer. Não digo que Madeleine seja uma heroína, ou tampouco consciente de sua própria classe. Mas Madeleine espatifa uma Miami na frente de outra Miami.
E também Madeleine se impõe nessa narrativa como um verdadeiro coringa. Assistindo ao canal Meteoro no Youtube, em que falava sobre o episódio de Romero Britto, a artista e sócia do canal, Ana Lesnovski, diz algo muito interessante:
Quando você diz “eu comprei esse objeto artístico, e ele me pertence e eu faço com ele o que eu quiser”, você está destituindo esse objeto do seu valor simbólico. Ele vale só como uma tela com um monte de tinta dentro. No caso do Romero Britto, qual o valor simbólico que está associado às obras dele? Com frequência, um valor de classe, de poder de compra, do “eu posso comprar, a minha classe permite”. Só vale até o objeto estar completamente esmigalhado no chão. [2]
De uma maneira intempestiva, por motivos mais do que justos, Madeleine, distraidamente, nos dá essa bola. Quebrando a Big Apple de 26 mil reais no chão, na frente do artista, ela devolve a ele a sua própria perversão. Agora, não vale nada.
A ironia de tudo isso. Da própria Madeleine em reconhecer nesse gesto disruptivo toda uma raiva contra uma classe que ela então frequentava, ou quis frequentar com a aquisição da obra. O circuito da obra em si, dos milhares de reais aos cacos no lixo. Da tentativa falha (sempre falha) do artista em amparar sua obra: resta no fim uma cara icônica de constrangimento. Do nosso regozijo frente a tudo isso, parte no que redime, parte no que também nos autoriza perversos.
Na minha imaginação delirante, antes do fim deste texto, Romero Britto convoca uma coletiva internacional de imprensa e se revela: no fundo se tratava de uma performance, idealizada por ele mesmo, em que depois de 20 anos de carreira sonsa ele resolve admitir na cara da burguesia e do governo Trump que era tudo um pastiche, um deboche sobre o mercado da arte. O ato final era destruir a maçã mercantil, Madeleine (que atire a primeira pedra!), como uma Eva apocalíptica, repõe todo o sentido daquela que seria a performance mais longa e lucrativa da História da Arte.
Mas não. Ele emite uma frígida nota de esclarecimento, adota um tom de isso é coisa de gente que inveja que eu sou rhyco! e depois de duas semanas o meme é esquecido e as papelarias abastecidas de palhaços e arlequins felizes. Contudo, isso deixa uma brecha. E elas importam. Até lá, seguiremos tentando ampará-lo, no nosso nítido constrangimento.
O Urso Best Buddies Friendship, de Romero Britto, em Berlim. Uma obra patrocinada pela fundação da família Kennedy, dos Estados Unidos.
Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2020
Notas
[1] GULLAR, Ferreira. Relâmpagos, 2 edição, 2007, Cosac Naify. Página 15.
[2] Episódio Romero Britto é arte? https://www.youtube.com/watch?v=m_xUIXZHkVw
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