por Pollyana Quintella
Mano Penalva é um artista que percorre as ruas. Se seu ateliê, na região central de São Paulo, é o laboratório que permite fundir e rearranjar coisas e enunciados que nunca antes haviam sido postos em diálogo, é precisamente no espaço entre o ateliê e o mundo que reside o coração de sua produção. Uma viagem de táxi pode ser o gatilho para uma nova série, assim como uma ida ao mercado popular, uma conversa com um camelô, ou uma mirada mais atenciosa às embalagens ou caçambas de lixo. Andar é seu modo de produzir uma escuta ao que as coisas dizem. Voltar ao ateliê é seu modo de colocá-las para conversar.
Em sua mais recente produção, jogo, trabalho e imaginação política assumem acordos variados, entremeados por uma miríade de sentidos simbólicos e mediações materiais. O artista dialoga sobretudo com as miçangas de madeira que revestem, em diferentes composições, os bancos dos automóveis conduzidos por motoristas profissionais no Brasil e em diversas partes do mundo. Além do explícito apelo estético, os encostos de miçanga auxiliam na manutenção de uma boa postura, na ativação da circulação sanguínea através de certa competência massageadora e na ventilação entre o corpo e o banco, em busca de bem-estar. Trata-se, em síntese, de uma tecnologia de saber popular que responde à precarização desses profissionais destituídos de regulamentação legal, submetidos a jornadas exaustivas de trabalho que condicionam seu corpo a coreografias viciadas. Ironicamente, ao aliviar os danos desse excesso, esses encostos garantem que sua produtividade seja ainda mais maximizada, convertendo-se a um só tempo em auxílio e empecilho.
Retículo, 2022, Fabric, acrylic blanket, eyelets, wooden beads, ribbon, aluminum hook and iron ring, 236 x 157 x 255 cm
Se em produções anteriores, como nas séries Ventana, Alpendre e Tudo Passa, o material era tratado em diálogo mais direto com os léxicos da casa e da arquitetura, agora as miçangas assumem novas configurações, em interação com tecidos utilizados para estofar carros de diferentes estilos, demarcando um novo momento na obra do artista. Além do primeiro contraste entre o aspecto artesanal e duro da madeira e o caráter sintético e macio dos tecidos, Penalva explora composições de contorno gráfico e acentuada geometria lírica, e que dialogam com uma série de signos de diferentes imaginários culturais. Diante deles, somos capazes de identificar símbolos de cunho afro diaspórico ligados aos orixás do candomblé, olhos gregos, yin-yangs e caracóis, setas e vetores, por vezes fazendo lembrar penduricalhos e amuletos que fornecem não apenas proteção e dimensão ritual, mas também identidade para esses carros e seus proprietários. A presença de ilhoses e argolas (que permitem ao público intervir e reconfigurar tais composições, rememorando a dança de linhas presente no jogo cama-de-gato), afirma o traço ornamental dessas obras, seu interesse pelo adorno como recurso de produção de singularidade. Suas cordas são como terços e colares, teias entre o sagrado e o profano, enquanto seus títulos cosmológicos buscam suspender e superar a cotidianidade do trabalho, a banalidade do estofado, para nos projetar para cima – esfera própria dos sonhos e utopias, território do porvir.
Lume, 2022, Tecido, manta acrílica, ilhós, miçangas de madeira, fitilho, gancho de alumínio, argola de ferro, 184 x 158 x 12 cm
Porém, como de costume na produção do artista, tais discussões se insinuam de maneira dialética, ou melhor, polifônica. Penalva dispensa enunciados totalitários e unívocos que possam almejar efeitos de conclusão moral, antes se acerca do problema produzindo uma intervenção prismática; uma trança de relações de diferentes escalas, do macro ao micro, e é nesse contexto que as miçangas de madeira ganham conotações distintas. Em Caça, a substituição da pele de caça pelo encosto de bolinhas tece um elogio da labuta, situando-a como troféu (como na máxima weberiana, "o trabalho dignifica o homem") ou, numa perspectiva mais perversa, figurando o próprio trabalhador enquanto presa. Nas Camas, ao contrário, as bolinhas que serviriam para maximizar a produção de um corpo hábil em repetir gestos assumem o lugar de convite para que o espectador descondicione sua postura no espaço expositivo, trocando a posição vertical pela horizontal e experimentando, ele próprio, uma lúdica cama de gato. O imperativo da visão dá lugar ao desejo de explorar o mundo com o corpo inteiro, afirmando valores avessos à produtividade mensurável. Creio que sejam trabalhos oportunos para refletir sobre o modo como a arte tem sido consumida enquanto capital cognitivo, tragada por um consumo rápido e excessivo de dados e narrativas e, simultaneamente, atravessada pela dificuldade em projetar sentidos simbólicos mais coletivos para o presente (afinal, por que o nosso tempo, marcado pela profusão e eficiência técnica das imagens, é também o tempo de crise de imaginação?). As Camas não dicotomizam a relação entre experiência e informação, pois sua episteme é epidérmica. Se estão constituídas pelas discussões sócio-culturais pontuadas acima, elas também nos convocam a conjugar a dimensão simbólica com a dimensão real; a representação com a vivência, algo vinculado à certa tradição da arte brasileira, interessada, sobretudo desde os seus programas construtivos dos anos 1940 e 1950, em explorar o potencial político de proposições mais abertas e experimentais, voltadas a produzir uma consciência corporal capaz de negociar entre o individual e o social.
A caça, 2016, Assentos de carro de miçangas de madeira, 270 x 160 cm
Há ainda as Camas-de-gato, que vem reforçar o interesse do artista pelo jogo como modalidade de ensaio das relações sociais, o lúdico como operação simultaneamente política e poética, recurso de experimentação e oxigenação da linguagem. No caso específico das camas-de-gato, duas pessoas manipulam uma linha de barbante para explorar formas e armações sequenciais, cada uma partindo da anterior, elevando seu nível de complexidade. Trata-se de uma dinâmica que envolve, a um só tempo, cooperação e competição, espécie de metáfora do jogo social. A cada etapa, a linha tramada sugere princípios de figurabilidade que recebem nomes variados, a depender de seu contexto cultural (berço, vela, estrada, entre tantos outros…), e funcionam como desenhos espaciais provisórios, exercícios de imaginação prestes a se reconfigurar. O que Penalva faz, por sua vez, é recompor, com miçangas de madeira, algumas dessas figuras em escala agigantada, substituindo a dimensão doméstica da mão pelo confronto do corpo com o espaço. Para quem conhece o jogo, essas composições tendem a acionar memórias infantis e afetivas, fazendo referência ao próprio ato físico. Em alguma medida, falamos aqui de um elogio da mão que especula e forja realidades, mede o espaço e preenche a natureza de forças propositivas. O brincar, assim como a prática artística, é capaz de transformar coisas simples em experiências dotadas de potencialidade simbólica, ao propor novas perspectivas sobre o mundo e suas tensões.
Falamos aqui de um conjunto que explora as disputas simbólicas contidas em materiais e exercícios estéticos cotidianos e a construção de saberes formais em contextos não eruditos. Entre a dimensão técnica e a discussão sócio-cultural, cabe dizer que Mano Penalva aposta no arejamento dos sentidos para nos permitir esticar, quem sabe, os horizontes negociáveis do possível.
Desenho III, Cama de Gato, miçangass de madeira e fitilho, 238 x 134 cm
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