por Pollyana Quintella
Neta de uma mulher que foi escravizada e filha de trabalhadores rurais, Maria Auxiliadora nasceu em Campo Belo, Minas Gerais, região historicamente conhecida pela ocupação de quilombos e comunidades menos favorecidas. Aos três anos de idade, migrou para São Paulo, onde viveu em mais de um endereço. Ao percorrer suas narrativas biográficas, não é raro encontrar leituras que situam sua produção em contextos de sociabilidade coletiva. Primeiro em relação à sua própria família, a “família Silva de artistas afro-brasileiros”, constituída por nada menos que dezoito irmãos e marcada eminentemente pela vocação artística. “Todos pintavam, criavam e produziam no quintal da habitação coletiva”[1], alega a nota biográfica escrita por Artur Santoro. Lélia Coelho Frota, a crítica responsável por sistematizar parte da produção dita “popular” nos anos 1970, diria que sobrevivia ali um “forte espírito de união interna (...) para preservar a sua integridade no sentido restrito, diante das forças atuantes da urbanização”.[2]
Além disso, a história costuma vincular Auxiliadora ao grupo de artistas plásticos em torno de Solano Trindade, no Embu das Artes. Um dos organizadores do I Congresso Afro-Brasileiro (1934) e fundador do Teatro Popular Brasileiro (TPB), cuja melhor fase foi vivenciada no próprio Embu, Trindade serviu de referência para artistas mobilizados em assumir e valorizar a cultura e resistência negra. O contato de Auxiliadora com o grupo fora facilitado pelo seu irmão Vicente de Paula, naquela altura parceiro de Raquel Trindade, filha de Solano. Por fim, a artista seria associada ainda ao grupo de artistas da Praça da República, onde passou a expor a partir de 1968 até a sua morte, em 1974, com apenas 39 anos, em decorrência de um câncer. Nesse breve e intenso período, multiplicam-se as exposições, salões e Bienais assinalados com a participação da artista. Em 1970, o encontro com o crítico Mário Schenberg, a partir da mediação de Raquel Trindade, tornou-se decisivo para consolidar a carreira de Auxiliadora, apesar do relativo ostracismo que sua obra enfrentou a partir de meados da década de 1980. É ele, Schenberg, que a apresentou a Alan Fisher, cônsul dos Estados Unidos que organiza sua primeira exposição individual na Mini Galeria USIS; e Werner Arnhold, o marchand e colecionador que levou o trabalho de Auxiliadora para galerias na Europa e nos Estados Unidos.
Toda a história da artista, entretanto, é uma constante negociação entre caber e não caber. Mesmo em relação à família, Auxiliadora fazia questão de manifestar certa diferença em relação aos irmãos:
Eles falava que eu devia estudar só. Como a pintura de Sebastião [irmão] sempre foi muito diferente, com muita pesquisa, ele não entendia primitivo naquela época. E ele achava que a minha pintura era assim muito malfeita e que eu tinha que entrar na escola para estudar. (...) Mas eu não via pintor nenhum nem via livro, quer dizer que isso foi uma coisa pura, saída de dentro de mim mesmo.[3]
Depois, em relação ao grupo do Embu, ela logo se afastaria, ao relatar sua decepção com um certo excesso de comercialização da produção artística na feira local, “agora não dá mais, agora misturaram muitas coisas, aquelas coisas fabricadas, muito fabricadas,”[4] diria. Não desejo reivindicar com isso que sua obra seja fruto de qualquer excepcionalidade única, alimentando mais uma vez o mito da genialidade que tanto desserviço prestou à compreensão dos fenômenos artísticos ao longo do século XX (inclusive no que tange à compreensão do “primitivo” ou “popular”, supostamente dotados de uma sensibilidade inata, mais pura e mais verdadeira, nada além de exercícios de fetichização da “diferença”, cuja finalidade é alimentar políticas de controle e exclusão, isto é, manter os outros rotulados e apartados. Foi Clarival do Prado Valladares quem constatou, ainda em 1968, que:
A maior frequência de oportunidades para artistas de cor ocorre quando estes se identificam a determinado tipo de produção, permitido e aplaudido pelo público consumidor. E esta permissão e aplauso se referem à denominada arte primitiva, situada em termos de docilidade, de poeticidade anódina, na dose exata em que a pintura naïf deve comportar-se no conjunto das coleções ou das decorações de ambientes privados de aparente clima cultural.[5]
De modo contrário, a potência de Auxiliadora está na capacidade de simultaneamente pertencer e despertencer: sua obra é fruto de um trânsito constante entre tradição e modernidade, o rural e o urbano, moda e cultura pop, religiosidade e sincretismo, gênero e raça, singularidade e coletividade, espaço público e privado, entre outros binômios mais ou menos harmoniosos. E por isso, é e não é arte popular, é e não é arte afro-brasileira, o que faz com que sua força resida justamente na dificuldade de categorizá-la. Para constatar isso, porém, é preciso reconhecer o caráter ativo, crítico e autoconsciente de seu corpus de trabalho, o exato oposto das compreensões em torno do que seja a ingenuidade naïf e seus correlatos.
Nesse entrar e sair, Auxiliadora afirmou sua obra enquanto produção de vitalidade. São muitas as cenas que posicionam o lazer e o prazer enquanto elementos centrais, tão presentes nas gafieiras, sambas, bailes de carnaval, namoricos e paqueras de toda ordem, mas também em situações de trabalho feliz, espécie de imagem contrária às condições à que a comunidade negra estava submetida no labor no campo e na cidade. Lembremos que, naquela altura, tais situações não eram apenas expressão musical ou cultural de um determinado grupo, mas instrumento de luta de afirmação da existência e subjetividade negras no seio da sociedade brasileira. É assim que vemos os trabalhadores representados por Auxiliadora, integrados à terra e exercendo um cultivo algo sadio, por vezes também cantando, dançando e se divertindo: são todos anônimos, mas senhores de suas próprias vidas. Vejamos que Auxiliadora não quer representar nenhuma pobreza positivada ou idealizada. Enquanto trabalham, seus personagens ostentam modelitos fashion, estampas bem cuidadas, babados, rendas e penteados avolumados cheios de textura, misto de memória das histórias da família, gosto pela moda (Auxiliadora aprendeu a bordar com sua mãe com apenas nove anos de idade, e desejava “estudar para modelista”,[6] todas as suas fotografias esbanjam um meticuloso esmero com a própria aparência) e desejo por uma outra comunidade — grandeza alheia aos desígnios do mercado. Aliás, tanto a vida quanto a obra de Maria Auxiliadora clamam por uma leitura em torno da ideia de comunhão, espécie de quilombismo. Lembremos de Abdias Nascimento, para quem “Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial.”[7] O que constatamos com essas imagens é que “um futuro de melhor qualidade para a população afro-brasileira só poderá ocorrer pelo esforço enérgico de organização e mobilização coletiva”.[8] Ao conjugar diferentes cenas ao mesmo tempo, as pinturas da artista sinalizam uma simultaneidade não linear que é própria da experiência da coletividade.
A técnica barata de Auxiliadora — misto de tinta a óleo nacional, massa Wanda, comumente utilizada em reparos domésticos e, vez ou outra, seus próprios fios de cabelo — é ponto de partida para construir um outro mundo possível, cujo espaço para o sonho e a fabulação está não apenas garantido como plenamente investido. Mário Schenberg chamaria atenção, no seu texto de 1970 a respeito da artista, para a expressiva “vibração cromática” de suas telas, marcada sobretudo pela presença de cores puras de alto contraste, com pouca exploração da tonalidade e, por consequência, pouca ou nenhuma perspectiva. Sua planaridade, ou profundidade rasa, para ser mais precisa, fez-se singular na medida em que se aliou ao relevo tridimensional conquistado pelo uso da massa Wanda. Nessa equação, Auxiliadora sustentou um modo próprio de pintar, uma dicção visual sua, por assim dizer. A desigualdade econômica, o estigma da inferioridade, o preconceito moral e religioso, entre outras discriminações raciais, são deslocados, expostos e suspendidos para anunciar o fim do mundo como o conhecemos, tomando aqui emprestado a poderosa expressão de Denise Ferreira da Silva.
E para falar de dignidade, é preciso mencionar sua preocupação com a representação de ritos ligados às religiões afro-brasileiras. No depoimento para Lélia Coelho Frota, Auxiliadora relata seu vínculo, ainda que conflituoso, com o candomblé através da prática de seus pais e pelo fato de ter frequentado com a mãe o candomblé de Zé Baiano, terreiro localizado na região de Cachoeirinha, em São Paulo, do qual se afastou depois de um tempo pois havia ali “muita mistificação”.[9] Em algumas pinturas, graças aos balões de diálogos (típicos da pop arte e das histórias em quadrinhos), também identificamos a conjugação de referências distintas e sincréticas em ambientes fechados, o que reflete a vulnerabilidade e o confinamento de tais práticas religiosas naquela altura, como Roberto Conduru já havia observado.[10] Sabe-se que durante a ditadura militar, a umbanda, por exemplo, expandiu seu campo de intervenção e foi finalmente reconhecida como religião no censo oficial.[11] Trata-se de um período em que as religiões de matriz africana são constantemente positivadas pelo Estado que, orientado pelo mito da democracia racial freyreana, as reconhece enquanto expressões da cultura nacional e da “brasilidade”. Se por um lado isso ajudou a legitimar e valorizar tais práticas, por outro foi também um momento de intensificação dos mecanismos de controle e normatização dos terreiros e, consequentemente, de camadas mais populares da sociedade. No dia a dia, persistia o preconceito, o cerceamento e a discriminação aos rituais e seus praticantes. Alerto, porém, que Auxiliadora também representou rituais afro-brasileiros em espaços abertos. Seu interesse em registrar esses fenômenos culturais vem carregado de fabulação e, mais uma vez, o que se conjuga é um acordo entre sonho e realidade.
Eis o cerne da questão: a obra de Maria Auxiliadora reflete as condições para uma vida plena. Há um céu estrelado para cada casal, um batuque para cada festa, uma renda para cada mulher, um milho para cada galinha, uma morte digna para cada doente (o que não significa que não haja espaço para dramas de novela, brigas, tragédias e enterros tristes). Tal plenitude também se manifesta no modo como a artista tende a impregnar sua superfície pictórica de gosto decorativo — sintoma de sua vocação lírica. Flores, motivos vegetais, estampas, padrões geométricos, tudo é pretexto para ornamentar as superfícies do mundo. Se o decorativismo dispersa a atenção e institui ritmo à composição, também nos indica que há capricho em toda e cada parte. Mesmo por isso, nenhuma dessas obras carece de dignidade, nem mesmo aquelas do fim da vida, que apresentam cenas mais difíceis e dramáticas, quando a artista retratou a si mesma enquanto doente. Estamos diante de uma obra que corresponde e desafia nossas expectativas, simultaneamente. Onde se espera ingenuidade e tradição, há moda, cidade e malícia. Onde se espera trabalho produtivo, há lazer, diversão e descanso. Onde se espera pureza religiosa, há sincretismo, mistura e contaminação. Vou me repetir, mas a ênfase faz-se necessária: Maria Auxiliadora nos ajuda a imaginar e produzir um mundo cuja centralidade é a vida.
Capoeira, 1970
Notas
[1] SANTORO, Artur. Nota Biográfica. In: Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, São Paulo: MASP, 2018, p.231 [2] FROTA, Lélia Coelho. Mitopoética de 9 artistas brasileiros. Rio de Janeiro: Funarte, 1978, p.69 [3] Ibid., p. 77 [4] Ibid., p. 69 [5] VALLADARES, Clarival do Prado. "O negro brasileiro nas artes plásticas". Cadernos Brasileiros, ano X. Rio de Janeiro, maio-julho, 1968. In: Catálogo Mostra do Redescobrimento – Brasil 500. São Paulo: Associação Brasil 500 anos, Artes Visuais, p. 101 [6] Ibid., p. 76 [7]NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980, p.31 [8]NASCIMENTO, Abdias do. Op., cit., p. 32 [9]FROTA, Lélia Coelho. Op., cit., p. 79 [10]CONDURU, Roberto. "Renovar a pintura, remodelar a macumba". In: Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, São Paulo: MASP, 2018. p. 71 [11]Entre 1964 e 1969, a umbanda cresceu 324% no Brasil, segundo dados do IBGE.
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