uma entrevista entre Flávio Morgado e João Gabriel Madeira Pontes
O ex-juiz, ex-político, ex-ministro e ex-celebridade Sérgio Moro
2016 não está tão longe assim. Apesar de toda a avalanche política que varreu o país, reposicionando todo o espectro ideológico e catapultando figuras da mais alta cafonice ao cenário nacional: como esquecer a dicção botoxiana de Alvaro Dias, a falta de boca do Temer? Mas nada para mim supera, a audácia em forma de gravata borboleta do ex-juiz Sérgio Moro.
O malandro tava na crista da onda, era capa da Revista Quem, o Homem do Ano, o "já-eleito" herói nacional: a presidência era questão de tempo. E como naquelas profecias que competem aos mais sagazes escorpianos, em seu interrogatório, Lula lançou a quizila: "Hoje o senhor se protege por uma toga e um cargo de servidor federal. Suas pretensões não enganam, e amanhã, seu juiz, quando buscar a sua vaga eleitoral, pense nisso. A briga é sempre de cachorro grande!"
Depois do abandono da magistratura, afirmando ainda mais todo seu intuito político desde o início da Operação, Moro foi se tornar ministro de Bolsonaro. Chegou com status de super-Ministro, aparentemente teria carta branca para tocar umas das pautas mais valiosas do bolsonarismo, a Segurança Pública; mas saiu pouco mais de um ano depois, humilhado publicamente numa reunião de ministros que acabou vazando, prometeu vingança e não conseguiu o mínimo cacife para tornar-se adversário eleitoral nem de Lula, sua obsessão, nem de Bolsonaro, o antigo patrão, e agora desafeto.
Migrou de partidos como se fosse maior do que eles, e sentiu na pele a sanha das velhas raposas da República. Achou que seria o candidato da Globo, acabou sendo apresentado pelo Podemos do plastificado Álvaro Dias, e por uma ironia imensa, trocaria de barco, na ambição de mais visibilidade, e seria barrado na porta do partido por Luciano Bivar, até ontem, um inexpressivo presidente do PL, partido que Bolsonaro alavancou.
Restou buscar qualquer foro privilegiado. Cogitou o Senado, mas nem foi atendido pelos líderes do partido. Sobrou então o pleito para Deputado Federal por São Paulo.
O tema é espinhoso, e eu não poderia de convocar meu "ministro do supremo", e poeta de mão cheia, João Gabriel Madeira Pontes.
[João Gabriel Madeira Pontes é doutorando e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor de Democracia Militante em Tempos de Crise (Lumen Juris, 2020), atua como advogado em litígios estratégicos perante o Supremo Tribunal Federal. Em literatura, já publicou os livros de poesia Indiscrição (Kazuá, 2016), Saúvas Avulsas (Garupa, 2019) e Manobra de Heimlich (7Letras, 2021)]
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Leia a entrevista:
FM - Saindo dessa querela política entre o ex-juiz Moro e o Partido dos Trabalhadores, mas sem deixar de levar ela em consideração, a atuação política do juiz abriu um precedente altamente perigoso ao país, sobretudo em um momento de tantos ataques à integridade das instituições republicanas. Como você lê a atuação dele, e mais do que isso, o julgamento do Supremo que o condena por sua parcialidade?
JG - O Moro se afastou de todos os parâmetros que a Constituição estabelece para a atuação judicial em uma república democrática. Em outras palavras, deixou de ser um juiz – isto é, um burocrata que tem como papel a aplicação imparcial da lei para a resolução de conflitos – para agir como um agente político, no sentido mais básico do termo. Em qualquer democracia consolidada, as condutas do Moro seriam acompanhadas com espanto: um juiz que coordena membros da acusação nos processos que estão sob a sua própria responsabilidade, que condena sem provas o principal candidato à presidência da República no pleito de 2018, impedindo a sua eleição, e que acaba aceitando o convite para se tornar ministro do governo politicamente beneficiado por aquela condenação. Esse roteiro, do ponto de vista jurídico, parece saído de um filme de terror.
É importante perceber que a união do Moro com o Bolsonaro não se deu por acaso. A Operação Lava Lato colocou em funcionamento uma máquina de persecução penal insensível a claras violações de garantias processuais básicas, com o objetivo de mobilizar a utopia de um país livre da corrupção e, assim, fazer avançar a agenda (anti)política dos seus principais idealizadores. De maneira parecida, o projeto do Bolsonaro versou-se na língua da ordem que, para ser instituída, dispensa a observância ao que diz a lei, porque consiste no resultado prometido, mas intencionalmente adiado, de um jogo que a tudo pretende destruir, inclusive o direito. Juntos, lavajatismo e bolsonarismo levaram ao centro da vida política brasileira o que a população das periferias urbanas sempre sofreu na pele: de um lado, o tratamento ideologicamente orientado da Justiça para fins espúrios, com a conivência da opinião pública, da mídia tradicional e das instituições de supervisão e controle; de outro lado, a brutalidade do ethos policialesco e milicianizado.
Moro e Bolsonaro se afastaram um do outro não por divergências de princípio, mas porque os seus interesses políticos pessoais, em determinado momento, entraram em conflito. Bolsonaro passou a promover o desmonte da Lava Jato para se juntar ao Centrão e sobreviver, enquanto Moro percebeu que o presidente tinha outros credores a pagar antes de cumprir a promessa que lhe fizera na época da eleição: um assento no Supremo Tribunal Federal, com a aposentaria do Celso de Mello ou do Marco Aurélio. De todo modo, Moro e Bolsonaro são faces da mesma moeda, disso não há mais dúvidas. A própria esposa do Moro deixou tudo bem claro ao afirmar que via nos dois "uma coisa só".
E é a partir dessa mesma chave de análise, esssencialmente política em vez de jurídica, que se deve entender o julgamento do STF que declarou a parcialidade do Moro. Quando a Corte se deparou com os primeiros processos oriundos da Lava Jato, já havia fortes indícios de ilegalidade. Por exemplo, a questão da incompetência do Moro, que fundamentou a decisão monocrática proferida pelo Fachin para anular as condenações do Lula, tinha sido alegada pela defesa de vários réus. Contudo, o Tribunal abraçou a operação naquele primeiro momento, tendo cada ministro o seu próprio motivo para fazê-lo. Havia aqueles que realmente acreditavam no discurso anticorrupção do Moro e havia aqueles que viam na Lava Jato uma oportunidade para facilitar o caminho dos seus próprios aliados políticos na época em que a operação ainda se restringia a membros do Partido dos Trabalhadores.
O jogo efetivamente muda por duas razões. Em primeiro lugar, os vazamentos publicados pelo Intercept – em iniciativa que ficaria popularmente conhecida como “Vaza Jato” – alteram a percepção de muitas pessoas sobre a integridade do Moro, contribuindo, assim, para se criar um clima diferente dentro do STF, embora alguns ministros ainda se mantenham fiéis à agenda lavajatista. Em segundo lugar, e talvez mais importante, o próprio Tribunal e os seus membros passam a ser alvos constantes de ataques do presidente que a Lava Jato ajudou a eleger. Daí surge um senso de autopreservação coletiva, misturado à compreensão, ainda que difusa e tardia, de que o sistema de Justiça, os maiores órgãos de imprensa e parte significativa da sociedade civil ajudaram a criar um monstro que, pelo bem da democracia constitucional, precisa ser controlado. A meu ver, a declaração da parcialidade do Moro, considerando os seus efeitos imediatos para as eleições deste ano, também deve ser lida a partir desse contexto de sobrevivência institucional.
FM - Você traz um ponto importante que é o ponto de convergência entre as ideias de Bolsonaro e Moro, principalmente no início do mandato presidencial. E a verdade é que o pouco tempo em que Moro ficou a frente do Ministério, a única coisa que podemos ter algum indício das suas intenções foi a sua anexação do COAF à pasta do Ministério da Justiça, um gesto claramente lavajatista. Partindo desse ponto da sua análise, em um eventual casamento menos turbulento, o que era possível esperar da atuação do Moro enquanto ministro?
JG- Acho que as propostas defendidas pelo Moro enquanto esteve no governo já servem como uma boa amostra do que seria a sua gestão caso o relacionamento com o Bolsonaro não tivesse se desgastado: ataque a direitos fundamentais sob a roupagem de melhoria no combate à criminalidade. A sua ideia de aumentar o elenco de excludentes de ilicitude para abarcar casos em que o agente atua com medo, surpresa ou violenta emoção é paradigmática. Todos sabemos qual seria a consequência perversa dessa medida, em um país onde as polícias matam negros e pobres como moscas, sob as justificativas mais estapafúrdias. Não há nenhum estudo sério que relacione maior letalidade policial com aumento de segurança pública, mas, para o Moro (assim como para o Bolsonaro), o que importa é apaziguar a sede punitivista e a ansiedade de status de determinados setores sociais por meio de projetos dessa natureza.
É importante deixar claro que a Lava Jato, como movimento jurídico-político, não se restringe ao âmbito do enfrentamento à corrupção, que é, de fato, um problema crônico no Brasil e que precisa ser combatida, sempre dentro dos limites impostos pela Constituição. A Lava Jato também se encaixa em um cenário de degradação da democracia representativa, no qual grande parcela da população brasileira passa a ver a classe política como incapaz, ou pior, desinteressada em dar soluções efetivas para questões sociais complexas, como a crise da ética pública e o aprofundamento da sensação de insegurança. Ocorre que a resposta lavajatista não passa de um teatro de sombras, que, ao invés de contribuir para desatar os nós, aperta-os ainda mais. Nesse contexto, o Moro-ministro era apenas uma atualização do Moro-juiz.
Moro em sua posse como ministro de Bolsonaro
FM - E ainda sobre a sua atuação política, algo que me parece muito claro é que Moro, depois que resolve largar a magistratura e aceitar ser ministro de Bolsonaro, assume uma postura “kamikaze” em relação as suas ambições. Porque ou ele partiu de uma confiança extrema de que tinha uma aceitação popular suficiente para colocá-lo politicamente onde quisesse, ou de fato não soube medir o tamanho da sua vaidade. Partindo da premissa de que a Lava Jato abre uma fissura institucional, de um lado em relação ao próprio jurídico, uma vez que ficou claro ser uma operação persecutória, e por outro, porque essa perseguição, na pior das hipóteses, criminalizou a figura do político de uma forma, que, no mínimo, quando ele precisasse se apoiar nessa mesma classe, que ontem ele julgava, ela iria esperar o momento certo de devorá-lo, em que medida há um erro estratégico de Moro, e mais importante do que isso tudo: em que medida é possível pensar o efeito dessa criminalização da política com a Lava Jato?
JG - Foram muitos os erros estratégicos cometidos pelos protagonistas da crise que se instalou no país desde, pelo menos, 2013. Quando os tucanos embarcaram no plano golpista do Aécio, pensando que sairiam mais fortes do processo de destituição da Dilma, teve-se um erro capital. Quando a intelligentsia liberal brasileira pressupôs que o impeachment de 2016 uniria um país absolutamente fragmentado, como se fosse possível emular o movimento que tirou o Collor do poder em um contexto político radicalmente diverso, houve outro erro de cálculo gravíssimo. Quando os principais membros das instituições de controle acharam que Bolsonaro, caso eleito, não passaria de um acidente de percurso em uma democracia que já apresentava graves sinais de fraqueza, o erro descambou para o paroxismo, e é a Constituição que está pagando a conta.
Nesse panorama, acho possível dizer que Moro também cometeu um erro estratégico ao largar a magistratura e abraçar, de maneira definitiva, a carreira política, mesmo não tendo traquejo, perspicácia ou apoio para tanto. Porém, isso não faz dele uma vítima das circunstâncias, muito pelo contrário. Moro sabia o que estava fazendo quando era juiz da Lava Jato, estava plenamente consciente do papel ilegítimo que cumpria no impeachment de 2016 e nas eleições de 2018, e deu as mãos ao bolsonarismo assim que teve oportunidade. O que Moro talvez não imaginasse é que Bolsonaro tinha planos próprios e que, para colocá-los em prática, seria capaz de entregar a cabeça daquele que tanto contribuiu para a sua eleição. E, nesse aspecto, a vaidade do Moro certamente o cegou. Afinal, quando se é adorado pela população e caracterizado pela grande mídia como um herói brasileiro, com filmes e séries em sua homenagem, o que sobra é complexo de superioridade.
De toda maneira, o legado da Lava Jato para a política democrática no Brasil é profundamente cruel. Em primeiro lugar, porque pavimentou o caminho para a eleição da figura mais tosca e nefasta da história da nossa república à Presidência. Em segundo lugar, porque permitiu que o país fosse entregue aos piores segmentos do Congresso Nacional, das Forças Armadas e de instituições de controle importantes como a Procuradoria-Geral da República, hoje um "puxadinho" do Palácio do Planalto. E, em terceiro lugar, porque contribuiu para que a relevante pauta da ética pública fosse sequestrada pela direita autoritária, que hoje se vende como a última fronteira de defesa da moralidade na política, muito embora não tenha credenciais para isso.
Como se pode perceber, tenho reservas quanto a certo uso do argumento da criminalização da política, que me parece, muitas vezes, querer negar a realidade do nosso país. A corrupção, dentro e fora do Estado brasileiro, existe, é grave e atinge os mais diversos campos da vida coletiva. Cabe, assim, aos órgãos competentes tentarem enfrentar esse fenômeno. A questão é buscar o ponto de equilíbrio em que o combate à corrupção não descamba para a arbitrariedade, com o apoio de agentes de Estado, da imprensa e da opinião pública. Em última análise, é o abuso disfarçado de legalidade que coloca em xeque tanto o funcionamento das instituições democráticas, quanto o processo de enraizamento dos valores constitucionais entre os cidadãos, independentemente das suas preferências eleitorais. E é justamente por isso que os setores progressistas não podem ceder a pauta do combate à corrupção ao monopólio de lideranças autoritárias que, se pudessem, fechariam o Congresso e o STF e mandariam todos os seus opositores para a cadeia.
A meu ver, o que existe de mais verdadeiro por trás da hipótese da criminalização da política é que, para ter adesão social, o lavajatismo precisou instrumentalizar e potencializar o discurso segundo o qual todo político profissional é, invariavelmente, corrupto e, contra as “aves de rapina” de Brasília, deve-se mobilizar uma vanguarda de funcionários públicos não eleitos supostamente incorruptíveis. Essa ficção maniqueísta e messiânica é, de fato, perigosa. De um lado, porque não condiz com a realidade: nem a classe política tradicional é um antro de bandidos, nem a burocracia da Justiça é um altar de santos. De outro lado, porque transmite a falsa mensagem de que haveria salvação fora da política, como se a saída para os nossos problemas não dependesse de mecanismos de participação popular e de espaços de representação democrática. Na minha opinião, é nesse sentido que o processo de criminalização da política, levado a cabo pela Lava Jato, deve ser compreendido e, pelo bem da democracia, enfrentado.
FM - Agora pensando mais o sistema jurídico como um todo, principalmente a sua maior instância, o STF. Um dos aspectos interessantes de 2016 pra cá, com a evidente politização dos magistrados, é que, embora já saibamos que o STF, por excelência, organiza-se de maneira política, afinal é preciso fazer muita para ser nomeado, foi a primeira vez que a mídia passou, quase que de maneira geral, a tratar o Tribunal como também uma instância política e inserido na mesma volatilidade de posicionamentos e pressões das redes sociais, por exemplo. Pensando de um ponto mais amplo, saindo do personalismo que toda essa confusão gosta de promover, como instituição isso fere a integridade do Supremo, não só porque escancara a mais alta instância jurídica como mais um palco de brigas de bastidores, mas porque me parece ser esse o "zeitgeist" no Brasil desde 2018: tornar oco e frágil qualquer discurso institucional fora da bravata bolsonarista. Como pensar as consequências a curto e longo prazo dessa mudança de postura em relação ao Supremo? E em que medida o próprio Tribunal corrobora com a sua fragilidade?
JG - Institucionalmente, o Supremo ocupa um lugar muito peculiar na dança entre Estado e sociedade. Trata-se de órgão não representativo ao qual cabe o importantíssimo papel de proteger princípios muito sensíveis, como os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático. Por isso, o Tribunal, apesar de composto por juízes não eleitos, precisa, muitas vezes, decidir contra a vontade das maiorias de plantão. Costuma-se, inclusive, falar que o STF, assim como as demais cortes constitucionais, exerce uma função contramajoritária muito relevante para o bom funcionamento da democracia, aqui entendida não como mera expressão da vontade geral, mas como um regime em que o governo da maioria deve conviver com os direitos de minorias políticas, econômicas, sociais e culturais. Nessa linha, ao contrário do que muitas pessoas pensam e anseiam, não cabe ao Supremo ouvir as vozes das ruas; há outros órgãos e autoridades estatais que cumprem tal papel. E é dessa profunda incompreensão acerca das atribuições do STF que nasce, em grande parte, a insatisfação quanto ao trabalho da Corte.
Da promulgação da Constituição até meados dos anos 2000, porém, o debate sobre a tensão entre o papel contramajoritário do STF e o atendimento à opinião pública estava limitado, principalmente, aos círculos acadêmicos. Isso porque, naquela época, o Supremo era uma instituição muito mais discreta, à qual não se costumava dar tanta atenção, nem mesmo nos veículos de mídia. Tal cenário começa a mudar quando o STF passa a decidir casos constitucionais muito relevantes, como, por exemplo, a questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo. A partir desse momento, o Supremo se torna objeto de maior interesse por parte da sociedade e da imprensa. Toda essa atenção cresce ainda mais quando o STF passa, sobretudo com o julgamento do Mensalão, a decidir a vida e o destino de figuras políticas importantes do país. De simples nota no rodapé dos jornais, o Supremo se vê ocupando a primeira página. Contudo, o aumento da exposição do STF não foi acompanhado por um amadurecimento da compreensão social acerca das funções da Corte. O que as pessoas queriam era assistir às brigas entre o Gilmar Mendes e o Joaquim Barbosa, televisionadas ao vivo pela TV Justiça. Aliás, embora tenha cumprido o papel essencial de conferir maior transparência às decisões do Supremo, a TV Justiça também contribuiu para a espetacularização dos seus julgamentos e para a celebrização – positiva e negativa – dos seus ministros.
Nesse caminho, o próprio STF também se perdeu. O que era para ser um tribunal coeso, de uma voz só, revelou-se uma corte dividida por intrigas pessoais e carente de racionalidade decisória. O perfil do Supremo se torna ainda mais caótico devido ao excesso de “monocratização”: ao invés de optarem por levar os casos ao Plenário, os ministros passam a proferir, com frequência cada vez maior, decisões singulares, que, muitas vezes, alteram o andamento do jogo político. O problema é que, quanto mais os ministros deixam de lado a colegialidade para apostar no poder da sua própria caneta, maiores são as chances de se ter decisões divergentes para casos semelhantes, proferidas por juízes que compõem o mesmo tribunal. É isso que explica, por exemplo, por que o Gilmar impediu que o Lula assumisse a Casa Civil no governo Dilma sob o argumento de desvio de finalidade e, pouquíssimo tempo depois, o Celso de Mello permitiu que o Moreira Franco exercesse o mesmo cargo na gestão Temer, ainda que houvesse suspeitas de igual natureza. A monocratização, além disso, torna as decisões excessivamente pessoais: não foi o STF, como instituição, que soltou ou prendeu este ou aquele deputado, foi o Ministro Fulano, ou o Ministro Sicrano, ligado a este ou a aquele grupo político. Essa personalização ganha as manchetes dos jornais e influencia profundamente a opinião popular sobre a Corte – para o bem e para o mal.
Na mesma linha, pode-se citar outras práticas absolutamente impróprias, adotadas por ministros do Supremo. Os pedidos de vista de duração eterna, para trancar o debate e favorecer interesses próprios ou de aliados; as evidentes causas de suspeição, decorrentes de laços de amizade ou de inimizade com partes processuais, que não são reconhecidas; as tentativas de se aproximar politicamente de chefes de outros poderes, sob o pretexto de fortalecer o “diálogo institucional”; as manifestações feitas fora dos autos sobre casos que serão julgados pela Corte no futuro; as notas plantadas na imprensa para desacreditar colegas de Plenário etc. Todas essas são condutas que, no fim das contas, desafiam parâmetros de ética judicial e ajudam a degradar a imagem do Tribunal perante a opinião pública.
A mais grave consequência disso, para o STF e para o país, é a perda do capital político necessário ao bom exercício da defesa da Constituição, tão essencial nesta quadra histórica sombria em que vivemos. Levando-se em conta que a tarefa de proteger os direitos fundamentais e a democracia envolve, muitas vezes, agir contra as vontades mais imediatas das maiorias, é fundamental que a Corte angarie prestígio entre os cidadãos brasileiros. E isso só ocorre quando o Supremo se faz respeitar como instituição que deve, mais que ser, parecer isenta. Como nenhum órgão do Estado existe no vazio, a concretização desse ideal objetivo de imparcialidade depende dos próprios ministros, que precisam, por isso, afastar-se de tentações pessoais e cultivar virtudes importantes para qualquer juiz constitucional, notadamente a discrição. Caso contrário, as fraquezas e as fissuras do Tribunal continuarão sendo escrutinadas, expostas, exploradas.
De todo modo, a meu ver, este é um momento em que defender o Supremo, apesar dos seus inúmeros defeitos, é defender a democracia brasileira. Assim como toda autoridade pública, o STF deve ser criticado, com o objetivo de se contribuir para o seu aperfeiçoamento. No entanto, não se pode confundir a crítica ao modo de funcionamento da instituição com o ataque à sua legitimidade constitucional. A extrema direita não quer um tribunal constitucional mais forte e altivo, muito pelo contrário: quer uma Suprema Corte cooptada ou fechada, em detrimento do regime democrático. Por isso fico perplexo quando, em meio às graves investidas que o Bolsonaro, os militares e os seus asseclas praticam diariamente contra o STF, ouço alguém dizer que o grande problema do Brasil, hoje, é o Supremo. Sendo sincero, quem pensa dessa forma ou tem sérios problemas cognitivos, ou está mal-intencionado.
FM - E pra fechar: durante toda a Lava Jato, não só Moro, mas os procuradores, distribuíram loas à Operação Mãos Limpas (investigação parecida que levou a destituição de inúmeros partidos na Itália, mas que empurrou Berlusconi ao poder). Claro que toda essa elegia é feita sem levar em conta as piores consequências para a Itália, que em alguma medida também rolaram no Brasil, que foi a inserção dos “outsiders” na política. O que também é outro mito, porque não é possível chamar um Dória, um Berlusconi, e sobretudo um Bolsonaro, de outsiders, se não são raposas velhas da República, são do mercado, e no capitalismo isso se mistura sem nenhum constrangimento. Até hoje a Itália lida com essas consequências, foi rebaixada a um subúrbio econômico na União Europeia e viu a ascensão do fascismo com tudo. Nesse sentido, já é tarde para o Brasil fazer essa autocrítica? E numa eventual vitória do Lula e do bloco da esquerda, quais são as prerrogativas possíveis e legais para evitar que a República volte a essa instabilidade devido a um desacordo entre os seus poderes?
JG - O cenário é gravíssimo, mas ainda não atingimos o ponto sem retorno, felizmente. A propósito, as eleições deste ano são a grande oportunidade para o Brasil, como comunidade política, começar a fazer a autocrítica à qual você se refere. Em outubro, decidiremos se ainda queremos concretizar juntos o sonho de uma sociedade mais livre, justa e igualitária, ou se estamos dispostos a renunciar a qualquer padrão de decência coletiva em prol de um pesadelo autoritário. Pelo andar das pesquisas, estamos no caminho certo. Dessa forma, se Bolsonaro for derrotado – e o resultado das urnas, devidamente respeitado –, existem inúmeros desafios de curto, médio e longo prazo que devemos encarar para que a nossa democracia não retroaja outra vez. Não vou me alongar muito nesse tema para não aborrecer o leitor, mas ouso destacar que o principal desses desafios, na minha opinião, é lidar com a militarização do Brasil, fruto do projeto de generais ambiciosos, do nosso processo incompleto de transição da ditadura para a democracia e da falta de vontade da sociedade em debater a sério as falhas da política brasileira de defesa nacional. Não é admissível que, depois de tantos anos, a república continue sendo ameaçada por Forças Armadas insubordinadas ao poder civil, mas isso é assunto para outra conversa.
Alvaro Dias do PODEMOS pode abrigar Moro em sua República de Curitiba
NOTA EDITORIAL: Apegado à Maringá, o ex-juiz solicitou o domicílio em São Paulo comprovando um hotel e um vínculo empregatício que foi exercido virtualmente. Não deu.
E esse parece ser o fim mais melancólico que o ex-juiz, que no auge da fama ia de gravata borboleta a eventos da Revista Caras e chegou a sugerir Wagner Moura como o ator que deveria interpretá-lo num eventual filme, poderia supor. Moro tinha certeza que era um sucesso de bilheteria. Mas o destino é duro: amanhã deve embarcar para o Paraná, sem salário, sem capital político, sem foro e com uma bagagem cheia, mas cheia, de cagaço.
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