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Música experimental, mercado e feminismo: Entrevista com Angela Novaes, do selo Brava

por Pérola Mathias





Na coluna do mês passado escrevi sobre os valores, em sua imensa maioria absurdos, das entradas dos grandes festivias de música que se apresentam aqui no Brasil. Financiados por grandes empresas, sejam elas ou não do ramo do entretenimento, e muito visados por marcas em busca de ações de publicidade, esses festivais se tornaram datas a serem destacadas nos calendários das grandes cidades, movimentando o turismo e o público jovem interessado em música ou naquele lifestyle.


Por outro lado, as principais capitais (mas não só) do Brasil contam com cenas independentes de um estilo musical que é considerado específico de um nicho restrito de ouvintes e produtores. É a chamada, de forma quase sempre controversa, música experimental. Uma música para a qual é preciso estar disposto a uma audição atenta, aberta ao ruído, ao improviso, ao incômodo, ao que o músico apresenta visualmente, seja através do uso não convencional de seu instrumento, ou usando objetos não convencionalmente musicais, bem como expressões visuais ou corporais de/para sua linguagem sonora. Há selos, produtoras, coletivos e festivais de música experimental expressivos em São Paulo e Rio Janeiro, mas também em Belo Horizonte, Salvador, Curitiba, Porto Alegre, Recife, dentre outras cidades (e trabalhos acadêmicos como os de Mario Del Nunzio, Tânia Neiva e Bethânia Brandão, por exemplo, que mapeiam essas “cenas” melhor do que eu poderia apontar aqui).


O selo e produtora Brava me chama atenção dentro desse cenário por ter uma presença forte nas produções contemporâneas, contemplando uma ampla gama de artistas, linguagens e formatos artísticos, tendo quase 10 anos de existência e a direção de Ângela Novaes, sua fundadora. Consta no catálogo da Brava, por exemplo, o duo Rádio Diáspora, Bruno Trchmnn, Marcos Campello, God Pussy em parceria com Em Extinção (Rayra Costa), Marco Scarassatti e Nelson Pinton, os americanos Bill Nace (do duo Body/Head, com Kim Gordon, e Tim Dahl, do Lydia Lunch Retrovirus), dentre muitos outros.


Trago esse mês uma entrevista com a Ânglea Novaes, em que conversamos sobre o surgimento do selo e produtora, como se delinea sua curadoria, as especificidades do mercado underground e como o meio musical (refletindo a estrutura social como um todo) é prioritariamente masculino. Além da vontade que já tinha de conversar com Ângela sobre o catálogo da Brava, dois outros acontecimentos me levaram a realizar a entrevista com ela justamente nesse mês.


O primeiro foi a realização do Women’s Music Event, que acontece todo ano e tem como objetivo discutir a participação feminina no mercado musical, abrangendo os diversos papeis exercidos no meio e a relação do mercado com a questão de gênero, dialogando com os mais diferentes nichos de estilo e público. Me chamou atenção que a música experimental não tenha sido citada ou constasse da programação com mesas redondas, palestras e oficinas, mesmo sendo uma música que, a meu ver, tem se expandido, apesar das inúmeras dificuldades.


O segundo foi que, concomitante ao WME, esteve em cartaz o 14º In-Edit, Festival Internacional de Documentário Musical, que exibiu tanto o filme com a musa do pós-punk e performer Lydia Lunch, “The war is never over”; e o documentário-ficção sobre a compositora inglesa Delia Derbyshire, que sua conta a história e seu pioneirismo na música eletroacústica. Delia, que também era matemática, passou por inúmeras situações de machismo e apenas recentemente teve reconhecida sua autoria da música-tema da série Doctor Who, de 1963, uma de suas composições mais famosas.


Segue abaixo a entrevista com Ângela.





Pérola Mathias: Como surgiu o selo e produtora Brava? Como e por que você começou esse trabalho?


Ângela Novaes: A Brava eu criei em 2013, quando deixei a produtora na qual trabalhava, a Norópolis, para me dedicar mais à essa sonoridade que transita entre o experimental, a improvisação e a ruidagem.


A Norópolis eu concebi em 2008 em parceria com um amigo, responsável pela Submarine Records, selo para o qual eu colaborava desde 2002. A produtora surgiu como uma consequência natural da necessidade de fazermos circular os grupos/artistas e seus lançamentos, e acabou se ampliando a mais nomes que não constavam no selo.


A Submarine eu conheci através do meu trabalho na Diesel, rádio online que desenvolvi com 2 amigos em 2000, em Belo Horizonte, dedicada à transmissão de grupos/artistas brasileiros de música independente e/ou experimental.


Então a Brava é essa construção de todos esses anos de experiências.. Sigo trabalhando atualmente com alguns nomes que veiculávamos na rádio, mais grupos/artistas se juntaram e a coisa toda foi se expandindo em torno da vontade de difusão da música que eu curtia.



PM: Como você avalia a possibilidade de desenvolvimento dos projetos como os festivais, o lançamento de discos, curadorias nos últimos anos, tendo em vista o tamanho do mercado para a música experimental e de improviso?


AN: Me parece que o mercado para esse tipo de som aqui no Brasil ainda é incapaz de se auto sustentar de forma independente, sendo necessário ir atrás de associações com marcas, instituições e aprovações em editais. Sem isso fica praticamente improvável conseguir remunerar toda rede necessária para que tudo aconteça com boa estrutura, sejam apresentações ou lançamentos de material físico. Não é raro os envolvidos com festivais, lançamentos de discos e curadorias de forma independente, e mesmo os artistas, tirarem seu sustento de outros trabalhos que não tenham relação com a música que lidam.


PM: O catálogo da Brava inclui obras e projetos dos principais artistas que trabalham com a música experimental em São Paulo, no Rio de Janeiro, mas também nomes de peso dos Estados Unidos. Além disso, a Brava tem trabalhado com os principais festivais que acontecem em São Paulo, como produzindo os álbuns "Ao Vivo" do Jazz na Fábrica, do Sesc, Festival Bigorna, a série Exploratórios que rolou no Sesc Pinheiros etc. Como você direciona sua curadoria de projetos e artistas?


AN: Se eu ouço e gosto e está dentro da estética com a qual trabalho e o grupo/artista está aberto ao tipo de diálogo que posso oferecer, colaboramos. Trabalho com artistas da América do Sul, Europa e Nordeste do Brasil, também. Como lido com esse amplo recorte do cenário contemporâneo da música experimental, são pessoas em diferentes momentos em suas carreiras e com direcionamentos sonoros bem diversificados, então cada proposta é sempre caso a caso.. posso ir atrás de um espaço pelo tipo de som que estou envolvendo num projeto, pela estrutura que uma apresentação requer, pelo tipo de estética que circula por ali ou por ele simplesmente estar aberto a nos receber bem. Do outro lado, se algum festival, produtor ou casa me procura para uma curadoria, tento pensar no direcionamento que estão lidando e por vezes vou atrás de artistas com os quais ainda não havia trabalhado antes, também. É essa busca por equacionar para cada grupo/artista a proposta mais interessante para aquela dada situação, tipo de som, público, verba, etc.


Obs: as produções nas quais me envolvi que acabaram sendo lançadas pelo Selo SESC se deram quando eu ainda estava na Norópolis ou colaborando em alguma parceria a convite daquela produtora. A Brava nunca se envolveu em lançamentos pelo Selo SESC.



PM: A música experimental dialoga com várias outras linguagens artísticas, desde a dança, a performance, o audiovisual, as artes plásticas e ocupa lugares que nem sempre a música tem espaço ou destaque, como galerias e museus. A arte contemporânea, em geral, tem esse caráter "híbrido", como é trabalhar com essa produção a partir do formato de um selo?


AN: Pelo selo procuro entender junto aos grupos/artistas o que podemos trazer no enredo do álbum que se agregue ao áudio, por exemplo se eles têm algum vídeo, imagem ou texto que possa casar com o lançamento. Alguns já chegam com uma ideia audiovisual bem desenvolvida.


Mas não me incomoda em nada que um álbum seja somente áudio ('somente' na falta de uma palavra melhor).. cada grupo/artista suscita uma conversa bem específica, trabalho com pessoas com propostas estéticas bastante diversificadas, então para cada um tento pensar qual a melhor forma de desenvolvermos sua trama. Se o formato dessa trama está entregue num belo áudio, por mim perfeito.


Tem sido mais habitual mesclar essas fronteiras através da produtora do que do selo, buscando espaços para além de casas de show e produzindo apresentações que comportem também performances com esse caráter híbrido que você citou - um álbum que saiu 'somente' em áudio pode trazer ao vivo uma apresentação que dialogue com outras linguagens artísticas.



PM: O mercado em geral é bem masculino e tem muitos selos e casas comandadas por homens, ainda que tenhamos mulheres que se destacam no cenário. Você enfrenta ou enfentou alguma dificuldade com relação a isso?


AN: Claro, desde ter que lidar com o clássico 'chama seu chefe', mesmo em espaços que mantém um discurso de igualdade, a ter minhas propostas indevidamente 'apropriadas' por homens, dentre eles inclusive alguns com os quais trabalho, que aprenderam a fazer de conta que a ideia não partiu de você, acredito por saberem que num confronto têm bem mais chances de levarem o crédito do que uma mulher. Sem contar a famosa invisibilização, que faz parecer que há ainda menos mulheres atuantes no circuito do que de fato há.


Esse cenário musical é parte de um todo maior, que é bem machista.. ainda que os homens que atuam nele se expressem sonoramente de formas menos convencionais, muitos ainda seguem pensando e agindo dentro dos padrões convencionados por esse todo maior. infelizmente nem sempre a vida imita a arte rs muitos artistas ostentam um discurso descontruidão que ainda é só para redes sociais.


Acho que em paralelo a combater as ignorâncias do dia a dia talvez seja interessante também procurarmos nos atentar pras raízes de suas fundações. O que vai acontecendo se ficamos focados apenas em 'lutar contra o inimigo macho' é a comercialização das 'heroínas fêmeas', essas 'raras e sobrenaturais mulheres, oh, tão diferentes da mulher comum', como produtos nesse mesmo mercado equivocado. A meu ver, estamos todos inseridos no mesmo sistema falido. E é este que precisamos urgentemente reestruturar junto a mulheres, pretos, indígenas, gays, queers e, sim, homens.



PM: Você considera que a música experimental seja nichada e que tenha um público restrito porque é "difícil" ou mais hermética que outras linguagens musicais, porque seja menos, digamos, mercadológicas ou porque há pouco espaço para o desenvolvimento do formato? Porque acaba que festivais como o próprio Sesc Jazz, o Novas Frequências, o Música Estranha e outros acabam tendo sempre um público satisfatório e tem de alguma forma crescido, né?


AN: Hmm.. difícil mesmo entender porque as pessoas seguem preferindo ouvir ao que são mais imediatamente expostas do que pesquisarem por si mesmas um sem número de sonoridades que poderiam lhes agradar. Do jabá aos algoritmos, passando pelas atualmente tão faladas lavagens de dinheiro via contratações artísticas governamentais superfaturadas, acho que as pessoas vão sendo massivamente expostas a modismos descartáveis para que a roda mercadológica continue girando. Se o experimental cai na moda, gira igual, acredito. Não está no mercado porque é mais difícil de ouvir ou é mais difícil de ouvir porque não está no mercado?


Claro que não estou negando o tipo específico de escuta e dedicação necessárias a esse tipo de som. Mas, como você mesma colocou, alguns festivais estão tendo um crescente interesse de público, então talvez seja também porque com maiores verbas se consiga chegar à uma maior divulgação e à estruturas e equipamentos para apresentar esse tipo de som de uma forma digna aos artistas e atraente a um público menos iniciado.


Aho que vale lembrar que também tem bastante agente nesse meio interessado em manter a música underground, como underground, em oposição à lógica das grandes marcas e mercados e corporações e órgãos governamentais, e que não há nada de errado nisso, pelo contrário. Uma vez que a maioria dos artistas desse segmento está mais focada em se expressar livremente do que criar um produto de entretenimento vendável, não há que se preocupar em ser hermético demais ou mercadológico de menos. Nem todo mundo que está fora quer entrar. E aí voltamos aos espaços independentes com estruturas muitas vezes precárias e pequenos selos e produtoras sem fins lucrativos que vão sempre recebê-los de braços abertos para fazerem essa roda girar menos quadrada. Cabe também ao público que frequenta esses espaços perceber a mesma qualidade artística presente ali do que em qualquer outro com assentos assinados por designers renomados.


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