por Flávio Morgado
Museu do Prado, Narciso pintado por Jan Cossiers
Continuando essa série de três textos em torno do narcisismo que nos assola, hoje falaremos do que escolhi chamar “os mercadores de sofismas”, termo que tentarei deixar claro ao longo da explicação.
De antemão, vamos tentar definir o termo “sofisma”. De acordo com o dicionário, sofisma é um argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa.
Vou me apegar ao “deliberadamente enganosa”, já que o cinismo tem tão bem nos traduzido.
Os sofistas eram grupos de pensadores na Grécia Antiga que viajavam de cidade em cidade realizando discursos públicos para atrair jovens aprendizes, de quem cobravam taxas para oferecer-lhes educação. Platão será o primeiro filósofo a atribuir à prática sofista o charlatanismo, a enganação hábil. Já que para o filósofo grego, atento ao estatuto da verdade, ela jamais poderia ser concebida como um mero jogo persuasivo e ser mercantilizada, tal falácia, valia aos sofistas o título de não-cidadãos da Pólis. Afinal é a pólis essa abstração ética de um bem comum em consenso com a verdade filosófica. O sofista é o inimigo dessa premissa. Porque pior que a mentira é a ilusão da verdade. São mecanismos bem diferentes.
A relatividade proposta pelos sofistas é o que para Sócrates, por exemplo, tornaria fácil a prática da “erística”, a saber, a tentativa de alcançar sucesso em qualquer debate. Os políticos são exímios sofistas, as escolas (mercantilizando a virtude) são sofistas. Narciso, se palestrasse, seria um sofista. Alguém cujo centro do debate não é o encontro ou o consenso, alguém cujo lastro da verdade não é mais raso do que o ímpeto de uma breve vitória discursiva, que sempre o reafirme. Como vimos no primeiro texto: tudo a ele é espelho.
Todo esse preâmbulo para tentar aqui entender como todo esse momento que estamos passando: que passa pelas fake News, pela hegemonia da pós-verdade e a espiritualização do capitalismo como sinais latentes da nossa falência ética.
Em “A sociedade da transparência”, Byung-Chul Han, filósofo contemporâneo sul-coreano, afirma que estamos vivendo uma sociedade completamente adoecida em sua busca surda pela “positividade”. Abre assim ele o livro:
“As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação”.
Ou seja, a busca irracional por essa positividade discursiva é, por exemplo, a condição discursiva do silenciamento de verdades incontornáveis, como a luta de classes. Como a implicação social, como o entendimento da engrenagem em suas mais sutis dentadas.
E é aí que mora o veneno. É aí que o capitalismo, ainda que continue contraditório em suas estruturas (condenadas a autodestruição), triunfa em sua forma mais eficaz: quando ele passa a cinicamente se espiritualizar, a enraizar esse sofisma que nos convença.
Pensemos em situações dessa espiritualização cínica:
1- Um trabalhador assalariado não precisa ter lido Marx para entender que a sua força de trabalho é o lucro do patrão, não precisa ter se formado em Sociologia para entender que a distribuição do que é produzido com seu suor é absolutamente desigual. Mas ele precisa ter implicação sobre a sua própria classe para não emular cegamente a vida patronal. Por exemplo, um ex-funcionário que pega seus esteios trabalhistas e compra uma franquia, na esperança de que se torne agora um patrão, é de uma ingenuidade terrível. Porque é nesse sofisma da libertação, e perceba como a própria ideia de franquia é venenosa: ela não pressupõe a originalidade, e nem sequer a criação de um projeto de vida, com quatrocentos mil, o Subway ou Spoleto decoram a sua caixa de gesso no shopping, onde agora tranquilamente você pode andar de camisa polo-patrão e sem nenhum direito trabalhista enquanto queima seus auxílios com essa ideia linda da exploração de si mesmo. Olha que bonito: tá patrão! Agora tem menos tempo para a família, para os sonhos próprios e já pode com prazer desmerecer um funcionário como em outrora fora ele. Ou seja, não se fecha um ciclo de conscientização, fecha-se um ciclo de emulação do abuso patronal, na face mais sombria do capital, contra si mesmo e de forma “positiva”.
2- Quem nunca tentou ser convencido com os conceitos de “capitalismo consciente”, “consumo consciente”? E quem, ao ser convencido, não se deu conta de que era a mesma merda e que rapidamente basta substituir o termo “consciente” por “culpado” e tudo ganha um sentido outro. Porque de fato não é proibido produzir uma camisa autoral e querer vender ela a um preço que considere justo, afinal paga quem quer e quem pode. O problema é tentar se convencer de uma “arte” (estatuto não tão simples de se atingir) ou de uma espiritualização do produto, que em si não traz nenhuma mudança na rota capitalista, mas a torna “positiva” e essa “positividade” agregada ao seu valor de venda. Então fica mais ou menos assim: camisa da C&A, produzida na China sob condições de semi-escravidão, oitenta reais para os não constrangidos. Camisa da marca da Cicrana, com nome de natureza, prometendo sua “essência e seu consumo consciente”, cento e cinquenta reais para os constrangidos (o constrangimento está embutido no valor). Muda nada. Continua uma linha de exploração, continua uma relação de classes, continua um mercado delineado pelo preço. O que mudou foi que o antigo aluno da ESPM, franqueador e herdeiro, agora meteu um dread e acende incenso.
3- Quem já foi em lugares como Chapada dos Veadeiros ou mesmo Ubatuba, onde morei, é obrigado a lidar com essa classe média branca não implicada da maneira mais dolorosa possível. Porque são verdadeiros paraísos, a mentira fica só por conta da galera. Herdeiros que esquecem que ecologia sem luta de classes se chama jardinagem. Gente que sobe as aldeias indígenas de Jeep e filma sua boa ação para postar no coletivo e dizer que acham os índios pouco ecológicos (?!). Gente que ocupa a zona rica da cidade, condenando os índios e os quilombolas ao sertão e à ausência da empatia. Uma empatia de lastro narcísico, onde qualquer purê de batata que aprenderam com os índios já acham que são pajés. Gente que derruba rituais, que só anda entre si, que replica egoísmo em tudo que faz. São bruxos, fadas, borboletas, duendes, magos, mas sobretudo, guardiões da boa mesada ou da velha culpa capitalista. É nessas que um suco vira poção, uma cozinha vira alquimia, um brinco vira amuleto e toda essa magia é cobrada no boleto. É a transcendência da compra. É cruel. Cruel porque é a mesma burguesia se moldando a sua falência discursiva, só que como de costume, apropriando-se de discursos que não se implica para não perder o lucro. Ninguém quer botar energia numa reforma agrária, ninguém quer escutar as demandas de uma aldeia sem fotos no Instagram. Aulas e mais aulas de “comunicação não-violenta”, para aprender a dizer “licença, seu índio, vou faturar em cima do seu rito”.
Em meio à pandemia, a atriz inaugura uma loja chamada de "Vir.Us."
Byung-Chul Han ainda arremata no livro: “quem se volta contra só por meio do positivo não tem espírito”. Basta uma breve visita às redes sociais desses “seres evoluídos” para sair deprimido com um feed meticulosamente organizado em fotos e frases estéreis, porém de efeito positivo. Eles estão a par do mundo, estão às voltas com sua grandeza espiritual e tentam melhorar a nossa sociedade com seus produtos positivos e pouco acessíveis. O templo dessa religiosidade é seu feed:
“Seu valor é medido apenas pela quantidade e velocidade da troca de informações, sendo que a massa de comunicação também eleva seu valor econômico e vereditos negativos a prejudicam. Com like surge uma comunicação conectiva muito mais rápida que o dislike”
Curioso, que tamanha potência espiritual não encontre nem seu proselitismo de forma orgânica. Em geral são perfis com captação de seguidores, uma espécie de “testemunhas de Jeová dos cristais”, estrategicamente pensada sua descrição (“canceriana, filha de Oxum, da tribo Guarani-Kaiwoá, mãe do Rudá, positive vibration”) e sua estética “lisa”. Uma estética que nunca agride, como também não nos tira de onde estamos. São coisas “bonitinhas”, positivas, objetos não implicados (e já fica aí a primeira dica para chamar alguma coisa de arte). O objeto artístico é sempre uma pergunta: uma inquisição da matéria sobre si mesma, sobre a linguagem, sobre política, seja o que for, o objeto de arte é polissêmico, é necessariamente implicado. Ele não decora, ele não agrega. Ele se impõe.
Essa reflexão dia desses me fez cair na parábola dos “vendilhões do templo”, talvez a única aparição bíblica de Cristo usando sua força física contra alguém. Malandro perdoou até quem o pôs na cruz, mas não conseguiu não sentar o cacete naqueles que, da maneira mais perversa, mercantilizavam a palavra de seu Pai. E veja como essa parábola é tão aplicável hoje, seja no movimento quase de startup de algumas igrejas neopentecostais ou nessa apropriação cínica dessa classe média. Vender a semente que cura o Covid ou achar que um trauma vai ser reparado sem análise e a partir do uso mercadológico de cristais (que aprofunda nossa exploração mineradora) ou de ritos de povos que continuam a ser exterminados é tão igual ou pior, porque se pressupõe benevolência quando se entrega só vaidade. É por isso que esse texto repõe os princípios de Platão, a ira de Cristo e a cólera de Byung-Chul Han, porque o fascismo está no canto do cisne, e como o problema da Pólis está para além da alteridade, e do cristianismo para além dos romanos, arrumar a casa após o Bolsonarismo não será fácil. O capitalismo resiste no narcisismo, resiste na ilusão de uma verdade que, mais do que apaziguar, vela os reais males da sociedade enquanto eles podem manter suas velhas práticas num estratagema culpado e de pós-verdade. Em tempo, a espiritualidade é um fardo, não um feed. Será preciso empurrar Narciso no lago.
Rio de Janeiro, 20 de junho de 2020
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