por Flávio Morgado
"Narcissus", Roberto Ferri, óleo s/ tela, 2017
(Escrever com Barthes. Escrever a partir de Barthes. Política de philia, gesto ético de convocação. Uma espécie de fala atravessada. Uma permissão justa da desordem na única concessão de voz possível a se querer enunciar o amor: a voz perdida é a voz herdada.)
*
Três planos de abismo ao amor
mas você deu um passo incerto
porém necessário no meio da noite e
o amor que guiou este passo
te salva
Roberto Bolaño
1.Me abismo
(ABISMAR-SE. Lufada de aniquilamento que atinge o sujeito apaixonado por desespero ou por excesso de satisfação)
Tomar este primeiro verbete de Barthes em “Fragmentos do discurso amoroso”, como quem cita por amor ao desterro do contexto (Benjamin), como quem cita pelo amor ao desdobramento e ao fundo abismal das possibilidades da leitura. Ama a filosofia quem não encerra a resposta. Ama a humanidade, a aporia.
Me abismo como verbo e substantivo. Movimento e rosto.
Me abismo no sentido de abismar: provocar espanto (condição singular e criativa do Eu). Me abismo como condição fundamental do encontro. O Outro como a permanência do desconhecido institui a minha vontade de investigação sobre ele. Me debruço sobre o Outro: tão próximo (diz a velocidade do desejo), tão íngreme em seu mistério. Salto.
O abismo substantivo. O abismo singular. O mapa de meu aniquilamento traço com ternura. Tateio a luz desejante do escuro e sigo. Velo minha morte aberta em nome dessa diluição etérea, construo esse túmulo comum e convido.
Os enganos platônicos e o idealismo romântico me induzem à possibilidade da cópula totalizante. Me aniquilo para me confundir com o mistério. Me jogo nesse abismo porque só ele comunica. A praça do amor é numa cidade perdida. É no desgoverno que o encontro se torna possível. O tecido do susto é quem trama. “Distraídos, venceremos” (Leminski). A ilusão ameniza a insistência. O exagero é a tipografia do amor.
Não evito o abismo. Desejo. Cópula, transa, pulsão de morte orgástica: “é doce morrer no mar” (Caymmi). Surdo à Sócrates no banquete, o apaixonado é flaneur, meteco, da cidade que ama. Me abismo se não for tudo abismo. Tragediógrafo, o apaixonado caminha em direção ao inesperado. Desmaio para não sufocar. Aniquilamento oportuno. A queda espreita: é êxtase.
2. Fricção
(ação de friccionar; atrito, esfregação.
atrito resultante de dois corpos que se esfregam; atrição.)
A linguagem do amor alcança termos dermatológicos. Não posso possuir, nem estar, “na pele do outro”, mas é nessa impossibilidade que fricciono. Esse não que é uma porta ao possível, essa impossibilidade que é comunicação. Nesse encontro que o estranho é erótico. Nas nossas ranhuras, nossas saliências e diferenças que aumenta o ponto de contato (fricção) dessas peles da linguagem amorosa. Uma pele nunca lisa, opaca..., mas porosa, úmida, reconquistada no toque.
A ânsia de dizer como a vontade de tocar. O que temos de prévio é o curioso e o Outro, todo um mistério. Portas a outras portas, no Outro, seus significantes são móbiles num furacão; o toque do amor é delicado, curioso, polissêmico, impossível reciprocidade que restitui uma recompensa: não acertando, não deixo de tentar.
O rosto do Outro é esse indício de uma exterioridade infinita (como dizia Levinas). Assinatura inacessível, templo de memórias e fábrica de estranhamentos. O amor suplementa. Intersecção de um vazio impronunciável.
O rosto amado é a singularidade da narrativa do encontro. A cicatriz no rosto amado é a diferença que o identifica. A atenção aos débeis detalhes do rosto amado, tomá-lo pela cicatriz, pela diferença, é dar a totalidade de sua singularidade. Reconhecer um primeiro vestígio da alteridade. Rastrear a ranhura, a saliência, que nos abre à fricção.
Toda nudez é inédita. O amor, para seu justo acordo tácito, perscruta a alteridade em seu ponto de demência (Deleuze). Onde o Outro não se fecha, extravasa e transborda; onde o Outro é totalmente aporia, por isso um abismo, por isso indecidível (Derrida) e conceitualmente móvel, que é preciso e, somente por isso justo, o salto. Só o abismo justifica a queda. O outro se enuncia no susto. É em seu ponto cego que o amor o escuta. Como é em sua pele desconhecida que o toque inaugura e renomeia o amor.
3. Outrar-se
(Tornar-se Outro. Condição impossível, por isso bela, de uma metamorfose intraduzível. Aniquilamento do Eu não pressuposto na empatia narcísica. Prática fundamental de Fernando Pessoa.)
Tornar-se Outro para não estar a sós. Tornar-se Outro pela partícula “se”, por si, pelo reflexivo: pelo bem de sentir e iludir-se em conter o Outro. Ter a cor de um amor contido: violeta. Contenção de um vazio intransferível, refletir sendo Outro, como quem assume a interrogação da própria matéria sobre si. Assumir o maiúsculo no Outro, como quem o dá um nome próprio e, por isso, tem o direito de chamá-lo.
Alternar a vez do carrasco, ser a humildade do algoz. Ensaiar o Outro em sua peça indeclamável. Pintar Carlota três vezes, como fez Werther, e nenhuma prestar. Narrar todas as tentativas. Destruir o rosto amado, como fazia Picasso, para conhecer todas as quinas. Ter o coração desnudado em cada fracasso. Insistir, porque a unidade sufoca.
Outrar como um verbo, que sendo movimento, assume caráter ético. Outrar contra a bula de Narciso. Porque Narciso é um corpo liso, que sem as ranhuras não permite friccionar. Quer um jogo de espelhos que não permite uma terceira margem disforme e precipita em abismo de poça vaidosa. A condenação de Narciso é o raso. É a queda que não atravessa o Eu e apenas desfigura o rosto como rastro de uma queda superficial. Narciso não tem abismos. Troféu erótico de sua própria narrativa, o Outro coadjuva sua masturbação elaborada. O corpo narcísico não goza.
O corpo espectral do Outro me reanima; seu corpo mundano invade à surpresa de uma posse regozijada no rapto. Vasculho o corpo amado como quem pudesse explicar a causa mecânica de minha emoção. Aposto no dispêndio dos sentidos e assisto o clímax com a extravagância de uma aurora boreal. O Outro é meu exagero. Transbordamento que readmite a margem. Uma nesga de vida a mais. Essa diluição que tolera o real.
Performance "The other: rest energy" (1980) de Marina Abramovic e Ulay
Rio de janeiro, dia 4 de julho de 2020
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