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No reino do fim

um conto de Pérola Mathias



SOPHIE - BIPP




A porta de metal com trava velha do clube só se abriu depois do meu terceiro chute. A adrenalina fazia meu coração pular rumo ao queixo. Mesmo com a rua deserta, o eco do barulho estridente podia me delatar. Meu estômago doía enquanto eu pensava no meu cantil de vodca e na luz azul neon. Mas antes de seguir o impulso de pular a grade que cerca o jardim que leva até a porta do meu espaço de dança favorito na cidade, esperei uns minutos perto da árvore do outro lado da rua vazia. Nenhuma respiração era audível, fora a minha. Até as cigarras devem ter morrido, pensei. Sentia que isso não era tão estranho quanto deveria ser.


Eu vivo entre ruínas desde que nasci. Assim como todo mundo que vive em uma cidade, seja de 500 mil ou 10 milhões de habitantes. Muros de concretos que desabam por ou sem querer; asfaltos gastos mesmo quando novos; fábricas em combustão que colapsam e dão lugar a outras, sempre tóxicas; gritos de euforia ou de fome por toda a parte; corpos que rastejam descoordenados; britadeiras amortecem ouvidos desprotegidos. Na primeira vez que fui a um clube de dança, aos quinze anos, descobri o único lugar em que minha cabeça encontrou o silêncio, enquanto meu corpo descia uma eterna rampa de tobogã. Todo habitante urbano vive entre o caos e a solitude.


Foram várias as vezes em que menti para minha mãe dizendo que iria em acampamentos da escola e virei a noite dançando. Depois da maioridade, apenas comecei a falar “vou dançar”. Aí fui morar fora e passei a não precisar dizer nada para ninguém. Via minha mãe às vezes nas quartas-feiras à noite, às vezes para almoçar no final de semana... ou quando nós duas podíamos mesmo. Não criamos o hábito de ter um dia certo para isso. Ela não era uma pessoa muito sociável, com milhares de amigos – se é que alguém tem muitos amigos na vida adulta –, mas se dava um drink por dia. No mês com hora extra, ela arriscava ir a um bistrô. Os anos da minha mãe podem ser divididos pelo drink que ela escolheu em cada noite, raramente tomando o mesmo duas vezes seguidas. Eles duravam o tempo necessário para ler três capítulos de um livro, fosse “Crime e Castigo” ou “O Idiota”, não importava.


Eu passei o último ano todo dedicada a desenhar no ateliê da faculdade. E quando a noite chegava, me ocupava de descobrir onde poderia escutar um vinil completo enquanto tomava água com limão. Quase como minha mãe. Nos finais de semana, escondia um cantil com vodca por dentro do cós da calça e entrava nos clubes de dança. Eu fiz isso por pelo menos três anos. Alguns rostos eram sempre os mesmos. Não que eu me importasse de querer ou não falar com alguém de forma constante, mas eles estavam lá, era um fato. Um dia eu estava saindo do banheiro com a mão dentro da calça, terminando de arrumar meu cantil e uma garota que retocava o batom, visivelmente mais velha do que eu, se virou de costas para o espelho da pia e passou o braço pela porta da cabine sanitária, me encarando. A música que vinha abafada lá da pista de dança com batidas aceleradas e graves que se entrelaçavam quase a ponto de não deixar perceber quando uma começava e outra terminava me deixaram plantada de volta na frente dela com um ar de normalidade. Ela desabotoou minha calça dando um passo comigo para perto do vaso, o suficiente para a porta da cabine se fechar de novo, e girou sua língua dentro da minha boca com a mesma velocidade com que seus dedos, embaixo, se mexiam. Quando eu gozei, ela deu um gole da minha bebida e me devolveu a garrafa.


_ Agora você já sabe o que fazer na próxima.


Isso foi antes de reconhecer no campus em que eu estudava um rosto que me era comum sob a luz azul e a do estrobo dos porões que eu circulava nos finais de semana, Leo. Ele passava por mim sentada no banco com mesa de concreto do jardim e dizia “E aí?”. Era o suficiente para irmos juntos nos sentar na grama, um pouco mais afastados, e falar por alguns minutos sobre misturar cores para a paleta perfeita de tintas ou sobre músicas novas e velhas, sabendo que quando voltássemos às pistas os sons seriam outros, por isso nossa única expectativa consistia em ir de novo.


A necessidade que não sinto de falar por horas a fio veio da minha mãe. Ela foi a primeira a morrer pela doença desconhecida que tornou nossa cidade uma espécie de condomínio da milícia abandonado. De um dia para o outro, já não podíamos mais sair de casa sem imprimir as listas de controle de movimento e os itens de mercado discriminados. Minha mãe não pediu para que ficássemos juntas, não fazia seu tipo convidar alguém para assistir filme dividindo um pote de sorvete com duas colheres.


_ Tereza, chamei a emergência. Há dois dias que minhas idas ao banheiro não melhoram, devo estar desidratada. Agora sinto uma falta de ar, também. Não quero que você vá me ver, a não ser que seja o hospital te ligando.


_ Mas você vai ficar com seu celular o tempo todo, né?


Foi o médico que me ligou oito dias depois. Uma desidratação causada por infecção foi irreversível. Eu peguei minhas coisas e fui para a casa dela de volta. Mas tudo por ali era sufocante, as cortinas brancas de crepe na sala, o sofá gordo de courino marrom, as roupas dela que eu não iria usar. Pela janela da sala eu via famílias e mais famílias negociando com policiais nas barricadas para poderem ir para o interior. A duzentos quilômetros da nossa cidade havia uma extensa área rural, sítios e fazendas, muitos deles comportando condomínios de campo. Os que tinham propriedade, saíram.


Os lixos do centro antes revirados e espalhados pelas ilhas que dividiam as pistas das avenidas agora restavam secos em quantidade quase nula. Não havia mais prostitutas, nem michês, nem travestis, nem ratos circulando. Não havia mais pobres. Nos restos de jornais velhos e empoeirados que voavam, as imagens mostravam famílias nessas mesmas ilhas, dispostas a comerem até a grama seca que tinha restado.


Eu deixava as luzes de casa desligadas dia e noite. A casa era modesta e discreta o suficiente para não ser saqueada. Minha mãe nunca havia passado uma tinta no muro cinza da frente desde que meu pai foi embora, no meu aniversário de seis anos. No dia que ela morreu, passei uma rajada do spray preto que eu carregava na mochila, sem pensar muito no que fazia, mas talvez sinalizando um luto que deu a necessária cara assustadora que eu precisava para sobreviver ali. Aparência que eu aprimorei jogando a televisão e uns outros eletrodomésticos enrolados em lençóis na calçada.


Pela fresta da porta da frente, o barulho dos passos, cavalgadas e carros indicavam a fuga e o esvaziamento da cidade, como se ela tivesse tido uma quinzena de bombardeios intensos, mas sem nenhuma explosão. Eu passava o dia na parte debaixo da casa e me trancava do lado de cima à noite, para que nenhuma luz pudesse me fazer algum tipo de sombra. A despensa da minha mãe durou mais do que a existência dos mercados. Quando restavam apenas duas sardinhas e uns goles de gin, nem os guardas estavam mais de campana ou vivos. Decidi que era hora de sair.


Mesmo de madrugada, a cidade estava amarela da cor dos tijolos esfacelados que davam forma aos seus prédios quase sempre feios. Nos primeiros quarteirões, nenhum sinal de que um resto de comida enlatada teria sobrado por ali. Senti uma vontade imensa de dançar. A imagem da primeira garota que me dedou no banheiro do clube me veio à cabeça. Será que ela não estaria por lá? Segui nessa direção.


Depois de arrombar velha porta de metal, finalmente atravessei, pé ante pé, o corredor do clube que levava até a pista e, atrás dela, o bar, de um lado, e o banheiro, de outro. Tateei à minha esquerda o balcão onde pedíamos bebidas. Com meio pulo, me sentei sobre ele para esperar até que o olho se acostumasse com o escuro de um lugar fechado de novo e eu pudesse apreciar o vulto da pista vazia. Eu balançava minhas pernas balbuciando “Kingdom of Ends”: This is all, nothing left. Em breve, nem eu mesma.


_ Porra, Tereza!!!!


Eu virei a cabeça para trás ainda sem ver nada. Eu não esperava escutar uma voz, muito menos dizendo o meu nome.


_ Se tu não tivesse começado a cantar, teria levado um tiro.


_ E desde quando você usa arma de trapper?


_ Peguei do cara da minha república quando ele vacilou.


Era Leo, me apontando uma glock. Ele deu um suspiro com a mão esquerda no peito, deixando a arma no balcão e senti ele se aproximando:


_ Não imaginei nem que tu tivesse viva, quanto mais que um dia fosse aparecer logo aqui.


_ Você tá aqui desde quando?


_ Aqui o som era legal e tudo, né, mas o dono do prédio é um puta de um playba que foi pras montanhas. Ele deu uns estoques pros funcionários, deixou parecer que tinha esvaziado aqui, mas eu já sacava que tinha umas caixas de importação no subsolo que ele misturava com bebida falsificada pra fazer render o bar. Esperei ele trancar o lugar e montei meu bunker, porque falso ou não, sobrou foi coisa.


_ E você tá vivendo de que, se nem luz tem aqui pra fotossíntese?


L pegou minha mão para me guiar no escuro. Em cima das antigas pias do banheiro tinha uma escada improvisada que dava para uma espécie de laje 3x3 em cima da pista. Ela era cercada por extensões do telhado das outras partes do clube, então não podia ser vista da rua.


_ Uma hora pararam os helicópteros e eu comecei a arrumar aqui em cima. Quando a comida acabou, virei um tatuzão da madrugada e fui conseguindo umas paradas, umas plantas, racionei a água pras raízes. E mais um monte de coisa que tá aí, mas levou tempo.


_ E você dança?


_ Não foi simples me estabelecer aqui, mas vem cá.


Descemos de novo pela escada que dava no corredor do banheiro e voltamos para o quadrado interno central. Alguns vinis tinham ficado para trás, largados na estante das bebidas do bar. Sophie, Nina Kraviz, o clássico Grace Jones. Mesmo se tivesse onde tocá-los, seria arriscado fazer barulho e chamar atenção. Fechei os olhos e tentei visualizar a rampa alta, larga e em ondas, com faixas coloridas nas quais eu podia deslizar virtualmente com os braços abertos sentindo o abdômen gelar quando estava na pista. Leo encostou na minha boca com o bico redondo da garrafa quadrada de um Jack Daniel’s semi cheio. Enquanto eu bebia, ele puxou um novo ritmo de dança, dando pequenos pulinhos repetidos para cada lado. Revezamos nosso ritmo em completo silêncio, tocando os discos só na cabeça. As palavras demoraram para ter necessidade de vir à tona e nos lembrou do momento em que estávamos acostumados a ir ao banheiro nas noites anteriores àquele esvaziamento total do espaço, quando muito mais do que só dedos costumavam a entrar por debaixo das minhas calças. A mão de Leo tapando a minha boca mostrava um antigo reflexo seu, enquanto minhas costas subiam e desciam, escorregando pela divisão de alumínio dos sanitários.




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